A verdade, se possível, sobre Pio XII

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03 Março 2020

"Pacelli não foi nem implícita nem explicitamente um defensor das políticas genocidas ou um espectador indulgente diante de sua perpetração. E, ao contrário das teses daqueles que gostariam que ele fosse culpado de tudo, Pio XII diante do Holocausto se parece terrivelmente com todos os outros católicos: o que representa um problema primorosamente histórico", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 02-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Hoje (02-03-2020) serão abertos os arquivos do Vaticano relativos ao pontificado de Pio XII (1939-1958). Um dia agitado para os dois populosos grupos divididos quanto à posição da igreja católica diante do Holocausto. O primeiro grupo é aquele que transformou a questão "dos dilemas e silêncios de Pio XII" (para usar o título de um famoso livro de Giovanni Miccoli) na caricatura anti-histórica do "papa de Hitler". Porque não há dúvida sobre o fato de o Papa Pacelli ter escolhido o "silêncio" sobre os judeus. Que em público nunca tenha pronunciado a palavra "judeus" durante a guerra é um fato. É certo que ele nunca deu curso àquela virada que estava engendrando seu antecessor ao publicar uma encíclica contra o racismo. Mas não por isso ele pode ser transformado em um defensor do plano genocida dos nazistas e dos fascistas.

Seu silêncio é encorpado: tão encorpado que ele pergunta ao clérigo que se tornaria seu sucessor: "O que o mundo pensa do meu silêncio sobre o comportamento dos alemães?" Mas esse silêncio não se identifica com a indiferença total ou a absoluta inação diante do extermínio: se existe a convicção de poder adiar a ação ou reduzi-la à depreciação, é porque prevalece a convicção de que o "verdadeiro" perigo era o comunismo soviético e que diante dele o totalitarismo na Europa Ocidental fosse um mal pelo qual o internacionalismo soviético era responsável. Em suma, Pacelli não foi nem implícita nem explicitamente um defensor das políticas genocidas ou um espectador indulgente diante de sua perpetração. E, ao contrário das teses daqueles que gostariam que ele fosse culpado de tudo, Pio XII diante do Holocausto se parece terrivelmente com todos os outros católicos: o que representa um problema primorosamente histórico.

O segundo grupo de fãs é o que desenhou a caricatura simétrica do "papa que salvou os judeus", esta também uma caricatura. Porque Pio XII não salvou os judeus: não salvou seis milhões, nem cinco, nem quatro, nem mesmo três e – se forem excluídos aqueles da URSS - nem dois. Talvez ele tenha favorecido ou pensado de favorecer a ação de socorro implementada por conventos e casas religiosas, tanto em Roma quanto em outros países. Ou deixou que ela continuasse, em uma prática que alguns interpretaram como uma vocação para os filhos da Eterna Aliança, e outros como uma implementação daquele direito de asilo que seria invocado após a guerra por aqueles que ajudaram a fugir os criminosos de guerra.

É possível - mesmo que os arquivos nem sempre sejam o local onde se encontram confissões - que ele realmente pensasse que se retirar dos protestos públicos seria uma maneira de permitir a ação daqueles que, com o risco de suas vidas, esconderam em vez de denunciar, ajudaram a fugir em vez de entregar, protegeram em vez de assassinar os judeus. E se várias autoridades políticas de um Israel apoiado pela URSS o elogiaram após a guerra, é precisamente porque temiam com razão que o Papa de Roma pudesse deslizar novamente a uma distância que os sobreviventes reunidos na Terra de seus pais se relembravam de quão perigoso havia sido: porque evocadora daquele antissemitismo profundo e religioso, que hoje está na moda chamar de "antijudaísmo", como se fosse uma meia virtude e não um pecado.

Com a abertura dos arquivos do Vaticano, fãs e caricaturas cairão. Os novos papéis exigirão as ferramentas próprias do trabalho histórico. Não aparecerá o análogo da "pistola fumegante" dos thrillers policiais: porque a história não é um thriller. Não haverá o pedaço de papel que levará à vitória a equipe do "papa de Hitler" ou do "papa que salvou os judeus": porque tal documento não existe. A complexidade do governo pontifício, em suma, pode ter conservado em alguma pasta juízos esclarecedores ou capazes de antedatar hipóteses de trabalho sugestivas: mas o processo de aquisição de uma verdade histórica tem cadências diferentes dos furos jornalísticos.

Uma questão historiográfica interessante diz respeito ao que Pacelli viu e ao que ele não viu. De fato, Pio XII, como muitos outros, não conseguiu identificar a especificidade do Holocausto dentro da grande catástrofe da guerra. Ele não conseguiu distingui-lo nem mesmo do massacre ao gueto de Roma, em 16 de outubro de 1943, e da perseguição de todos os outros judeus vendidos pelos italianos às polícias nazista e fascista. O moralista poderá tecer sobre isso várias considerações. Mas o historiador está interessado em entender por que o papa se comporta como tantos e tantos se comportam como o papa.

Os novos documentos do arquivo nos permitirão entender a posição do pontífice e da sua corte em momentos históricos cruciais. Como, por exemplo, no momento em que os Aliados (a quem o pontífice só poderia considerar como quatro inimigos, sendo a URSS comunista, a França laica, a Inglaterra cismática e os EUA protestantes ...) se tornarem donos de uma Europa na qual ele sonha ver renascer a cristandade.

Ou na Assembleia Constituinte Italiana, onde os "professorini" apoiados por Dell'Acqua e Montini conseguem obter um beneplácito à Constituição que não possuía as características confessionais e autoritárias que os jesuítas da Civiltà Cattolica queriam.

Ou ainda os grandes atos do magistério de Pio XII e na repressão da nouvelle théologie que atingirá as inteligências mais profundas da Igreja dos anos 1950 (Congar, Chenu, de Lubac etc.) e terá um impacto tal a impedir a publicação da tese de um jovem e desconhecido padre como Joseph Ratzinger. E talvez seja nessa área do arquivo do pós-guerra que também poderão ser encontradas informações importantes para entender o que Pacelli não entendeu sobre a tentativa de genocídio antijudaico.

Se poderá entender por que a máquina do Vaticano, com seu consenso, pense em dispor o retorno ao grande rabinato de Israel das crianças judias que ficaram órfãs e foram salvas na França por instituições e famílias católicas. E se poderá entender sua posição sobre Israel e os primeiros israelenses de 1948, cuja derrota e expulsão pela mão árabe Pacelli previa, quando no final da guerra era o que havia para se preocupar.

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