Convivialidade – caminhar em direção a outros conhecimentos, outros mundos. Entrevista especial com Sergio Costa

Refugiados do Mali reconstroem a vida no Níger - Duas crianças malinenses em frente ao abrigo híbrido que se tornou sua casa no campo de refugiados de Tabareybarey, no Níger. O campo abriga quase 8,6 mil refugiados do Mali | Foto: Acnur das Américas

Por: Ricardo Machado | 16 Dezembro 2021

 

Pensar o mundo contemporâneo é atravessar as fronteiras do conhecimento acadêmico em direção a outras experiências de vida e de formas de vida. “Se não juntarmos nossas pesquisas aos conhecimentos de ativistas, movimentos sociais, movimentos e conhecimentos indígenas — chamados de conhecimentos tradicionais —, nós não vamos conseguir entender o mundo contemporâneo”, propõe Sergio Costa, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Uma forma em que a sociedade não fosse orientada pela racionalidade instrumental em que cada um siga só seus interesses próprios, mas, sobretudo, uma sociedade baseada na solidariedade”, complementa.

 

A partir da perspectiva da convivialidade, proposta desenvolvida por Ivan Illich, busca-se superar as dicotomias clássicas – natureza e cultura – que organizaram as formas de pensar as sociedades desde a modernidade. “Com a convivialidade abre-se a possibilidade de incorporar essa multiplicidade de formas sociais que queremos entender e, com o perdão da redundância, conviver em absoluta liberdade com essas diferentes formas sociais”, analisa. “Todos aqueles que acreditam na ciência contemporânea sabem que não podemos seguir da maneira como estamos vivendo e como vivemos até agora. É preciso, de fato, uma inflexão radical nas formas de vida consideradas modernas. Isso não implica uma volta ao passado, mas um salto para o futuro. Esse salto é necessariamente um movimento de superação do antropocentrismo, de restabelecimento de outras formas de convivência com a natureza, de que sejamos capazes de nos percebermos como parte do planeta, não como seus colonizadores”, defende.

 

O contexto no qual estamos inseridos tornou incontornável a relação entre o aquecimento global e a desigualdade, complexificando ainda mais o enfrentamento destes desafios. “Ao colocar em paralelo e como co-constitutivos a ideia de convivialidade junto à desigualdade, pretendemos dizer que vivemos em sociedades desiguais e em relações desiguais com a natureza”, descreve Costa. “Portanto, ao pensar um programa de transformação da sociedade é preciso pensar como, no mesmo movimento, atingir os dois objetivos: 1) construir formas mais igualitárias e adequadas de convivência; 2) combater toda a violência e as formas de opressão vinculadas à desigualdade”, conclui.

 

Sergio Costa (Foto: Mecila)

Sergio Costa é professor de Sociologia na Freie Universität Berlin (Universidade Livre de Berlim, Alemanha). Ao lado de Marcos Nobre, é diretor do Mecila – Maria Sibylla Merian International Centre for Advanced Studies in the Humanities and Social Sciences Conviviality-Inequality in Latin America –, centro que estuda formas passadas e presentes de convívio social, político e cultural na América Latina e no Caribe. O termo convivialidade (conviviality) é empregado no centro como um conceito analítico para descrever formas de convívio em contextos específicos caracterizados por profunda diversidade e desigualdade. Também é editor da série Global Entangled Inequalities: Exploring Global Asymmetries, pela editora Routledge. Realizou seu doutorado em Sociologia na Freie Universität Berlin, onde também obteve o título de Livre Docente em 2005, com a pesquisa Do Atlântico Norte ao Atlântico Negro: Teoria Social, Antirracismo e Cosmopolitismo (2007, em alemão).

 

Entrevista originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 19-12-2020.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – De que forma a convivência entre diferentes tradições teóricas, antropológicas e sociológicas se tornou uma questão fundamental atualmente?

Sergio Costa — É preciso dizer que as tradições de pesquisa até agora têm se mostrado insuficientes para responder a desafios e questões empíricas que são muito complexas e atravessam fronteiras entre disciplinas. Portanto, a interdisciplinaridade deixou de ser uma opção e tornou-se uma necessidade primordial. Isso significa que precisamos buscar superar alguns pontos cegos das ciências sociais e humanas, como, por exemplo, a separação entre seres humanos e natureza, a separação entre corpo e cultura, entre outras distinções.

Se não superarmos isso, efetivamente não vamos entender questões que dizem respeito não só a relações entre humanos, mas também a relações entre humanos e não humanos, como animais, plantas, artefatos e espíritos. Para isso é necessário até mesmo mais que a interdisciplinaridade, eu diria que é necessária uma transdisciplinaridade para que possamos superar não só as fronteiras das disciplinas existentes, mas uma fronteira fundamental que é a fronteira entre o conhecimento científico e não científico. Ou seja, se não juntarmos nossas pesquisas aos conhecimentos de ativistas, movimentos sociais, movimentos e conhecimentos indígenas – chamados de conhecimentos tradicionais –, nós não vamos conseguir entender o mundo contemporâneo.

 

 

IHU On-Line – Qual a importância de se defender esta pluralidade de visões de mundo em um contexto cuja escalada da direita radical visa justamente interditar esse debate?

Sergio Costa — O momento contemporâneo tornou ainda mais urgente superar as fronteiras entre disciplinas, entre conhecimento acadêmico e não acadêmico, no sentido de integrar movimentos sociais e ativismo político como formas legítimas, autênticas e originais de produção de conhecimento. Isto é, considerar isso no momento contemporâneo, não só no Brasil, mas em diferentes partes do mundo, em que parece que estamos vivendo um momento de caça às bruxas, de tudo o que foi construído como avanço em termos de maior igualdade entre pessoas de diferentes preferências, desde sexualidade até grupos étnicos e formas de vida. Ou seja, apesar de tudo o que foi feito no esforço de tornar o mundo mais igual, parece que, neste momento, estamos vivendo um retrocesso muito arriscado e perigoso. De fato, é muito preocupante voltarmos à situação de maior desigualdade, antes que tenhamos chegado a uma igualdade mais ampla e substantiva. Há o risco — e está havendo efetivamente — de retrocesso a uma situação de desigualdade que tínhamos antes dos avanços dos últimos anos e décadas.

 

IHU On-Line – Como Ivan Illich e seu conceito de convivialidade se inserem nesse contexto e nesse debate?

Sergio Costa — Ivan Illich [1] foi um pioneiro como filósofo, teólogo e educador austríaco, mas que viveu em diferentes partes do mundo. Ele realizou um trabalho importante na cidade de Cuernavaca, no México, onde existia um centro intercultural de documentação em que se reuniam versões e movimentos intelectuais progressistas de diversas partes do mundo no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Então foi, naquele momento, um centro em que se juntava o que havia de mais progressista e interessante acontecendo na Europa com o que havia de mais interessante e progressista ocorrendo na América Latina e nas Américas naquela ocasião.

No livro publicado em 1973 chamado Tools for Conviviality (Fontana/Collins: 1973), que foi traduzido para diversas línguas, Ivan Illich propõe a superação de uma forma unidimensional de lidar com a sociedade e com o meio ambiente. Isto é, entendendo que era preciso criar o que ele chamava de um intercurso, ou seja, uma forma mais adequada de lidar com as pessoas na sociedade e suas relações com o meio ambiente. Que forma era essa? Uma forma em que a sociedade não fosse orientada pela racionalidade instrumental em que cada um siga só seus interesses próprios, mas, sobretudo, uma sociedade baseada na solidariedade. Nas relações com a natureza propunha uma relação de respeitabilidade, muito além do que se discute hoje sobre o paradigma da sustentabilidade, com respeito aos seres não humanos que povoam a natureza.

 

 

Qual é a importância disso hoje? Ela é múltipla. Esse debate teve desdobramentos. No campo da cultura ele se tornou uma forma muito interessante de crítica, tanto ao nacionalismo quanto ao multiculturalismo, na medida em que a convivialidade implica o respeito absoluto das diferenças nas relações, mas cujo vetor de interação, respeitando tais diferenças, está na possibilidade do comum. Esse é um debate muito presente nos estudos sobre migração na Europa, mas também em outras partes do mundo, na medida em que há uma ameaça de assimilação dos imigrantes em que têm que prevalecer as identidades nacionais.

Esse paradigma mostra que efetivamente formas de convivência com respeito à diferença já existem no cotidiano das sociedades e é preciso investir nessas formas. Esse é um campo fundamental. Outro campo fundamental em que as ideias de Illich tem se desenvolvido é na superação da dicotomia entre sociedade e natureza, mostrando que não só as formas de vida humanas precisam considerar os seres não humanos, mas entendendo que as próprias tecnologias não têm que ser baseadas sempre numa competição e numa superação da natureza. Para que sejam, efetivamente, tecnologias de longa duração, é preciso que elas interajam com a natureza. Por exemplo, em vez de usar pesticida, pode-se usar outros agentes biológicos capazes de neutralizar as ervas daninhas sem que se destrua a vida naquele espaço em que se quer ter uma determinada cultura. Esse é um campo em que a ideia da convivialidade tem se manifestado com muita força e é um campo muito profícuo de pesquisa que vem se expandindo nos últimos anos.

 

IHU On-Line – Em que sentido o conceito de convivialidade substitui o de sociedade?

Sergio Costa — Essa ideia já está no debate há algum tempo. Se tomarmos, por exemplo, a antropologia da Amazônia, alguns autores afirmam que a ideia de sociedade – sobretudo a construída pelas ciências sociais em que se assume e estabelece como precondição a separação entre atores e estruturas sociais, as esferas da ação e das instituições – é insuficiente. O que se observa nas sociedades amazônicas é um espaço de convivência em que não há separação entre uma esfera de produção das normas e outra da produção da vida, ou seja, é a vida social que perpassa todas essas dimensões sem as distinções assumidas pelas teorias sociológicas e sociais tradicionais – distinções como público e privado, moral e leis. Portanto, o conceito de sociedade das ciências sociais modernas tem um conjunto de pressupostos que tornam a ideia de sociedade somente aplicável a um grupo muito restrito. A ideia de convivialidade amplia o espectro ao não se fixar nessas divisões e se interessar pelas relações sociais efetivamente existentes, o que não implica em interações somente entre humanos, mas entre humanos e não humanos.

É por isso que nas comunidades amazônicas os espíritos de antepassados têm uma presença importantíssima nessas sociedades. Então, como conceito, com a convivialidade abre-se a possibilidade de incorporar essa multiplicidade de formas sociais que queremos entender e, com o perdão da redundância, conviver em absoluta liberdade com essas diferentes formas sociais.

 

 

IHU On-Line – Qual a importância de superar uma visão demasiadamente antropocêntrica e sociocêntrica do mundo?

Sergio Costa — O antropocentrismo nos levará à absoluta impossibilidade de vida no planeta se seguirmos os mesmos parâmetros que estamos seguindo até agora. Ao centrarmos de fato na criação de condições de vida para os humanos sem levar em consideração os demais seres vivos neste planeta, nós estamos tornando-o, cada vez mais, menos habitável para os seres humanos.

Voltar-se para si mesmo e somente para si mesmo, que é o gesto do antropocentrismo, nos levou a uma rua sem saída. Descontados os terraplanistas, os que não acreditam nos avanços da ciência, todos aqueles que acreditam na ciência contemporânea sabem que não podemos seguir da maneira como estamos vivendo e como vivemos até agora. É preciso, de fato, uma inflexão radical nas formas de vida consideradas modernas. Isso não implica uma volta ao passado, mas um salto para o futuro. Esse salto é necessariamente um movimento de superação do antropocentrismo, de restabelecimento de outras formas de convivência com a natureza, de que sejamos capazes de nos percebermos como parte do planeta, não como seus colonizadores.

O sociocentrismo é um retorno às formas tradicionais de definição da sociedade, em oposição, por exemplo, à comunidade, na conhecida fórmula de Ferdinand Tönnies [2], “Gesellschaft und Gemeinschaft”. Nessa perspectiva, ou se tem sociedade ou se tem comunidade e isso não nos permite compreender uma parcela importante da vida social contemporânea, também vivida em pequenos grupos, e uma vida cuja base da sociedade (retomando a definição de Durkheim sobre a diferença da solidariedade mecânica e orgânica, em que esta última é propriamente a solidariedade moderna) depende, sim, de formas primárias da sociabilidade, assentada muito fortemente na vida comunitária. Portanto essas distinções que foram feitas pelas ciências sociais tradicionais não são mais sustentáveis, se é que algum dia foram. Para que possamos entender a multiplicidade das sociedades contemporâneas, é preciso superar esse conceito eurocêntrico fundado em experiências empíricas muito limitadas. Ou seja, partiu-se de um conjunto muito limitado de sociedades e criou-se uma teoria social com aspiração de validade universal. Mas se queremos construir, mesmo para ciências sociais globais, é precisar superar os males de origem das ciências sociais modernas.

 

 

IHU On-Line – Como a convivialidade converge para perspectivas econômicas não hegemônicas e ligadas às perspectivas “slow” – slow food, slow fashion, decroissence – e propõe uma crítica ao utilitarismo?

Sergio Costa — Esse ponto é fundamental porque nos coloca diante de uma distinção entre convivialismo e convivialidade. O primeiro é mais tributário da tradição francesa, e no Brasil há muitas pessoas trabalhando nessa chave. Para citar dois nomes, entre muitos outros, estão Frédéric Vandenberghe [3], da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, e Paulo Henrique Martins [4], da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

O convivialismo é um movimento teórico de crítica ao utilitarismo e um movimento político de crítica à razão instrumental, a uma leitura unilateral e unidimensional da vida social. Para esses autores, o que é sustentável em termos de longo prazo no mundo contemporâneo é somente um nível de consumo que não passe dos níveis da Europa ocidental dos anos 1970. Tudo que ultrapassar isso não é universalizável para o conjunto do mundo. Os padrões de consumo que temos hoje na Europa, nos Estados Unidos ou o de algumas classes elitizadas que temos no Brasil não são transportáveis para a sociedade mundial porque nós explodiríamos o planeta com esse nível de consumo. Quem quer continuar consumindo nesse patamar tem que admitir que se trata de um consumo para uma elite específica e que não pode ser generalizado.

Aliás, a vida na Europa ocidental dos anos 1970 era uma vida absolutamente aceitável e confortável, ou seja, ninguém precisa mais do que isso para ser feliz, pois a felicidade pode ser buscada nos prazeres espirituais, na exploração das possibilidades do corpo, na exploração das sexualidades. Mesmo para quem tem uma visão hedonista da vida, há um conjunto de possibilidades que não implicam necessariamente mais consumo, mas, sim, a exploração das possibilidades que o convívio social proporciona. Essa é uma mensagem fortíssima e central do convivialismo.

Nós insistimos um pouco na ideia de convivialidade não para fazer oposição ao convivialismo, mas para marcar o caráter analítico do nosso programa de pesquisa. Não é necessariamente uma leitura normativa do mundo, mas uma maneira de analisar as sociedades e as relações entre humanos e não humanos que, a nosso ver, está inscrita na ideia de convivialidade.

Um aspecto importante a destacar é que desde o nome do centro que estamos criando em São Paulo, o termo convivialidade aparece sempre junto com a palavra desigualdade. Isso exatamente para evitar a romantização de que superamos conflitos ou divisões, porque quando falamos de convivialidade estamos tratando de interações realmente existentes, sejam elas de competição, de cooperação, sejam até mesmo de relações violentas. Nada disso está excluído e nem pode estar excluído, obviamente, de um programa de pesquisa. Então ao colocar em paralelo e como co-constitutivos a ideia de convivialidade junto à desigualdade, pretendemos dizer que vivemos em sociedades desiguais e em relações desiguais com a natureza. Portanto, ao pensar um programa de transformação da sociedade é preciso pensar como, no mesmo movimento, atingir os dois objetivos:

1) construir formas mais igualitárias e adequadas de convivência;

2) combater toda a violência e as formas de opressão vinculadas à desigualdade.

 

 

IHU On-Line – De que forma as questões da desigualdade e das emergências climáticas se tornaram dois grandes debates e desafios contemporâneos?

Sergio Costa — Eu diria que esses debates vinham caminhando separadamente, e eles têm uma longa tradição. Isso porque a desigualdade é estudada não somente na América Latina, mas é tratada em todo o mundo desde os pais fundadores (e de fato eram “pais” porque havia poucas mães fundadoras das ciências sociais como uma marca negativa de sua origem por conta da opressão masculina); tanto em Weber [5] quanto em Marx [6] a desigualdade sempre foi uma questão fundamental.

O tema da desigualdade foi deixado de lado na América Latina nos anos 1980 e 1990, dada a concentração nos programas de reajuste estrutural com uma perda de ênfase nas políticas sociais, e, quando havia políticas sociais, elas eram focadas na pobreza, e não orientadas para promover mais igualdade. Obviamente, combatendo a pobreza se pode reduzir a desigualdade, mas as políticas de redução das desigualdades são diferentes das políticas de combate à pobreza, elas implicam uma estrutura tributária progressiva, que distribua renda, e tudo isso foi deixado de lado. O recente trabalho do Piketty [7], que não é único, mas é um marco, mostrou que houve, de fato, uma inflexão na questão da desigualdade que se tornou um debate central para a economia, a sociologia e a política.

Por outro lado, desde os anos 1970 já havia relatórios, como o Relatório Brundtland [8], que mostravam como a preocupação ambiental estava presente. A questão climática aparece mais tarde e, inicialmente, separada da questão social. Contudo, essas duas linhas de debate se cruzaram e se interseccionam de uma maneira inseparável no debate contemporâneo, de tal modo que, se falamos de mudança climática, necessariamente estamos falando de quais são os grupos que são mais afetados, quais são os grupos que podem se proteger mais ou menos da mudança climática. Portanto há, mais que uma interseção, uma interdependência não somente entre os dois campos de debate, mas justamente entre as questões substantivas que tais campos nomeiam. Não dá para pensar a mudança climática sem pensar a desigualdade social.

 

 

IHU On-Line – Nesse sentido, como fazer convergir a perspectiva da convivialidade para perspectivas teóricas do sul global, especialmente com as cosmologias e epistemologias da América Latina?

Sergio Costa — A origem do debate sobre convivialidade surgiu de um diálogo internacional muito expressivo e intenso em Cuernavaca, no México, nos anos 1960 e 1970, quando as forças progressistas da América Latina e da Europa se juntaram ali para discutir o futuro comum da humanidade. Já em sua origem é um debate que busca superar assimetrias na valoração dos distintos conhecimentos.

Seria impossível construir um centro fundamentado no paradigma da convivialidade e da desigualdade sem ter em conta que os conhecimentos produzidos contemporaneamente têm espaços e hierarquias de validação. Conhecimentos produzidos a partir de uma certa posição na chamada geopolítica global de conhecimento são, por definição, menos valorizados. O papel de um centro como o que estamos construindo, que busca efetivamente superar este tipo de assimetria na produção do conhecimento e na valorização e circulação do conhecimento, tem que, necessariamente, considerar os conhecimentos por aquilo que eles contribuem para o debate e não pelo lugar de origem. Se um texto é produzido em Harvard ou se estamos tratando de uma prática de conhecimento de uma comunidade indígena do Xingu, temos que tomar essas formas de conhecimento e seus desdobramentos naquilo que são capazes de contribuir para o debate, e não por seu lugar de origem. Sabemos há muito tempo que o conhecimento é situado, mas é preciso que num centro como esse, o lugar situado do conhecimento não se transforme em nenhum tipo de hierarquia prévia em termos de valoração do conhecimento produzido e circulado.

 

IHU On-Line – Qual tem sido o papel e o propósito do centro Mecila?

Sergio Costa — O centro Mecila foi criado a partir de um consórcio de sete instituições, três alemãs e quatro latino-americanas. Esse centro está sendo criado no escopo de uma linha de fomento aberta pelo Ministério Alemão de Educação e Ciência para criação de centros em distintas regiões do mundo. São cinco centros: um em Guadalajara, outro em São Paulo, que compõem os da América Latina; um em Acra, em Gana, na África; outro na Índia, em Nova Déli; e um na Tunísia, que ainda está sendo criado.

A premissa da criação desses centros de pesquisa é que algumas questões podem ser muito mais bem estudadas de forma descentralizada do que se estivessem sendo estudadas em um Centro nos Estados Unidos ou na Europa. Nas regiões é muito mais plausível, factível e estimulante estudar essas questões. Por isso também escolhemos essa temática da convivialidade, da desigualdade, que são temáticas privilegiadas para se estudar na América Latina, dada toda a tradição que temos de produção de conhecimento, mas também de experiências históricas, de lidar com essa tensão e co-constituição entre desigualdade e convivialidade. Da época colonial até hoje há diferentes experimentos e reflexões muito elaboradas sobre o que é conviver com a diferença, a desigualdade, questão que se torna mais acentuada no nosso momento político particularmente urgente.

 

Notas: 

[1] Ivan Illich (1926-2002): pensador e polímata austríaco. Foi autor de uma série de críticas às instituições da cultura moderna. Escreveu sobre educação, medicina, trabalho, energia, ecologia e gênero. Pensador da ecologia política, foi uma figura importante da crítica da sociedade industrial. Confira a edição 46 da IHU On-Line, de 9-12-2002, intitulada Ivan Illich, pensador radical e inovador. E, confira ainda o artigo, “Será o decrescimento a boa nova de Ivan Illich?”, de Serge Latouche, publicado nos Caderno IHU Ideias. (Nota da IHU On-Line)

[2] Ferdinand Tönnies (1855-1936): sociólogo alemão. Fez contribuições importantes para a teoria sociológica e em estudos de campo, além de ser responsável por trazer de novo Thomas Hobbes ao primeiro plano, através da publicação dos seus manuscritos. A distinção, tornada clássica, entre dois tipos básicos de organização social, a comunidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellschaft), é a contribuição mais conhecida de Tönnies. (Nota da IHU On-Line)

[3] Frédéric Vandenberghe: possui graduação em Ciências Sociais e Políticas – Rijksuniversiteit Gent (1988), Bélgica, mestrado em Sociologia – Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris (1989) e doutorado em Sociologia – Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris (1994). Ensinou em várias Universidades estrangeiras (UCLA, Manchester University, European University Institute, Brunel University London, Yale University e Université Catholique de Louvain-la-Neuve) e brasileiras (UNB, UFPE, UFRJ, IUPERJ). Atualmente é professor do Instituto de Filosofia e de Ciências Sociais na Universidade Federal de Rio de Janeiro (Nota da IHU On-Line)

[4] Paulo Henrique Novaes Martins de Albuquerque: possui mestrado em Sociologia - Universidade de Paris I; doutorado de Terceiro Ciclo em Sociologia - Université de Paris I. É professor Titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) desde 2007.  No site do IHU publicamos, entre outros textos, a entrevista especial A economia do dom e a visão de Marcel Mauss, e o artigo Brasil, Turquia… rumo ao convivialismo?.  É autor e organizador de diversas obras. Sua mais recente publicação é Imaginarios sociales y memorias: itinerarios de América Latina (Buenos Aires: Teseo/ALAS/CLACSO, 2019. v. 1. 314p), que organizou juntamente com Clara Betty Weisz Kohn. (Nota da IHU On-Line)

[5] Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos depois. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. (Nota da IHU On-Line)

[6] Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx. Também sobre o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. A entrevista Marx: os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010. A IHU On-Line preparou uma edição especial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central de O Capital, obra de Marx. A revista IHU On-Line, edição 525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões, em celebração aos 200 anos do nascimento do pensador. (Nota da IHU On-Line)

[7] Thomas Piketty (1971): economista francês, concentra seus estudos no acúmulo e desigualdade de renda. É diretor de pesquisas da École des hautes études en sciences sociales (EHESS) e professor da Escola de Economia de Paris. Seu livro best-seller, O Capital no Século XXI (São Paulo: Intrínseca, 2014), enfatiza as questões do acúmulo de renda nos últimos 250 anos e argumenta que o acúmulo de capital cresce mais rápido que a economia, o que gera desigualdade. A edição 449 da IHU On-Line, intitulada A desigualdade no século XXI. A desconstrução do mito da meritocracia, inspira-se na obra O Capital no Século XXI e circulou meses antes de a obra ser publicada no Brasil.  O IHU realizou no segundo semestre de 2016 o “Ciclo de Estudos do Livro ‘O Capital no Século XXI’ - A Estrutura da Desigualdade”, cuja programação está disponível aqui.

Recentemente, Piketty publicou “Capital et idéologie” (Seuil, 2019). A obra, embora ainda não traduzida para português, já foi abordada em textos publicados pelo IHU, na seção Notícias do Dia de seu site. Entre eles “O novo livro de Piketty devolve a economia política às suas origens. Artigo de Branko Milanović”; “Piketty: a ‘reforma agrária’ do século XXI”; Thomas Piketty: 10 recomendações para acabar com a desigualdade econômica. (Nota da IHU On-Line)

[8] Relatório Brundtland ou Nosso Futuro Comum: publicado em 1987, concebe o desenvolvimento sustentável como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. No início da década de 1980, a ONU retomou o debate das questões ambientais. Indicada pela entidade, a primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, chefiou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, para estudar o assunto. (Nota da IHU On-Line)

 

Leia mais