Como combater a crise climática? Uma oportunidade única em um século

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27 Setembro 2019

“Não tenho receio em admitir que não vejo a crise climática como algo separado das crises mais locais geradas pelo mercado e que documentei ao longo dos anos. O que agora é diferente é a escala e o alcance da tragédia: está em jogo o único lar da humanidade. Sempre tive um tremendo senso de urgência sobre a necessidade de mudar para um modelo econômico radicalmente mais humano. Mas, essa urgência agora adquire uma qualidade diferente, porque o que está acontecendo é que estamos vivos justamente no último momento possível, no qual mudar de rumo pode significar salvar vidas em uma escala verdadeiramente inimaginável”, escreve Naomi Klein, jornalista e pesquisadora canadense de grande influência no movimento antiglobalização e no socialismo democrático, em artigo extraído de seu último livro On Fire e publicado por Viento Sur, 25-09-2019. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Em meados de março, numa sexta-feira, cheios de emoção e desafio, em um ato de evasão escolar, saíram das escolas como pequenos riachos. Essas pequenas correntes desembocaram em grandes avenidas e ruas, onde se juntaram a outros fluxos de crianças e adolescentes cantando. Logo os riachos fluíram para os rios: 100.000 corpos em Milão, 40.000 em Paris, 150.000 em Montreal. Os cartazes de papelão balançavam nas ondas humanas: “Não existe planeta b!”, “Não queime nosso futuro!”, “A casa está em chamas!”

Em Moçambique, não houve greve estudantil. Em 15 de março, todo o país estava se preparando para enfrentar o ciclone Idai, uma das piores tempestades da história da África, que levou as pessoas a se refugiarem nas pontas das árvores, enquanto as águas subiam e acabavam matando mais de 1.000 pessoas. E então, apenas seis semanas depois, enquanto os escombros ainda estavam sendo limpos, Moçambique seria atingido pelo ciclone Kenneth, outra tempestade sem precedentes.

Em qualquer parte do mundo em que se viva, essa geração tem algo em comum: é a primeira para quem a mudança climática em escala planetária não é uma ameaça futura, mas uma realidade muito presente. Os oceanos estão aquecendo 40% mais rápido do que o previsto pela Organização das Nações Unidas, há cinco anos. E um estudo exaustivo sobre a situação do Ártico, publicado em abril de 2019, na Environmental Research Letters, e dirigido pelo renomado glaciólogo Jason Box, descobriu que o gelo em suas distintas variantes está derretendo tão rapidamente que, "nesse momento, o sistema biofísico do Ártico está se afastando de seu estado no século XX para uma situação sem precedentes, com implicações dentro e fora do Ártico”.

Em maio de 2019, a Plataforma Intergovernamental Científico-normativa sobre Diversidade Biológica e Serviços dos Ecossistemas publicou um relatório sobre a surpreendente perda de vida selvagem em todo o mundo e alertou que um milhão de espécies de animais e plantas correm risco de extinção. “A saúde dos ecossistemas dos quais dependemos e de todas as outras espécies está se deteriorando mais rapidamente do que nunca”, disse seu presidente, Robert Watson. “Estamos destruindo os fundamentos da economia, os meios de vida, a segurança alimentar, a saúde e a qualidade de vida em todo o mundo. Perdemos tempo. Nós devemos agir já."

Faz mais de três décadas que governos e cientistas começaram a se reunir oficialmente para discutir a necessidade de reduzir as emissões de gases do efeito estufa, a fim de evitar os perigos do descontrole climático. Desde então, ouvimos inúmeras chamadas à ação que falam de “filhos”, “netos” e “gerações futuras”. No entanto, as emissões globais de CO2 aumentaram mais de 40% e continuam aumentando. O planeta aqueceu cerca de 1°C desde que começamos a queimar carvão em escala industrial e a temperatura média está em processo de aumentar até quatro vezes esse nível, antes do final do século. A última vez que houve tal quantidade de CO2 na atmosfera, o ser humano não existia.

O que acontece com esses filhos e netos e as gerações vindouras que se invoca de forma tão promiscua? Não é mais um simples recurso retórico. Agora estão falando (gritando e batendo) deles. Ao contrário de muitos adultos em posições de responsabilidade, ainda não foram adestrados para mascarar os profundos dilemas de nossa época em uma linguagem burocrática e incompreensível. Entendem que estão lutando pelo direito fundamental de viver plenamente suas vidas, vidas em que não estão, como diz Alexandria Villaseñor, de 13 anos, “fugindo dos desastres”.

Nesse dia, em março de 2019, os organizadores estimaram que houve cerca de 2.100 greves climáticas juvenis em 125 países, com a participação de 1,6 milhão de jovens. É uma conquista importante para um movimento iniciado oito meses antes, com uma adolescente que decidiu fazer greve na escola de Estocolmo, na Suécia: Greta Thunberg.

A onda de mobilização juvenil que eclodiu em março de 2019 não é apenas fruto, por mais extraordinário que seja, de uma menina e sua maneira particular de ver o mundo. Thunberg disse desde o início que se inspirou em outro grupo de adolescentes que enfrentavam um problema diferente para proteger seu futuro: os estudantes de Parkland, na Flórida, que lideraram uma onda de greves nacionais para exigir controles mais fortes sobre a posse de armas, depois que 17 pessoas foram assassinadas em sua escola, em fevereiro de 2018.

Tampouco Thunberg é a primeira pessoa com uma grande lucidez moral a gritar “Fogo!”, diante da crise climática. Vozes semelhantes emergiram em múltiplas ocasiões, nas últimas décadas. De fato, é uma espécie de ritual nas cúpulas anuais da ONU sobre mudanças climáticas. Contudo, talvez porque essas vozes tenham vindo de cidades das Filipinas, Ilhas Marshall e Sudão do Sul, seus toques de alarme foram histórias de um dia, se é que foram. Thunberg também se apressa em apontar que as greves climáticas foram o resultado de milhares de líderes estudantis, professores e organizações de apoio, muitos dos quais há anos estão fazendo soar o alarme sobre as mudanças climáticas.

Durante uma década e meia, desde que reportava de Nova Orleans, com água na cintura, após o furacão Katrina, tenho tentado descobrir o que está interferindo no instinto básico de sobrevivência da humanidade. Por que tantos de nós não estamos agindo como se nossa casa estivesse em chamas, quando realmente está? Escrevi livros, fiz filmes, ofereci inúmeras palestras e cofundei uma organização (The Leap) dedicada, de uma maneira ou de outra, a explorar essa questão e tentar ajudar a situar nossa resposta coletiva ao nível da crise climática.

Para mim, estava claro desde o princípio que as teorias dominantes sobre como havíamos aterrissado nesse fio de navalha eram completamente insuficientes. Dizia-se que não estávamos agindo porque os políticos estavam presos em ciclos eleitorais de curto prazo, porque as mudanças climáticas pareciam muito distantes, porque detê-las era muito custoso e porque ainda não haviam chegado tecnologias limpas. Havia alguma verdade em todas as explicações, mas com o passar do tempo perderam toda a credibilidade.

A crise não estava muito longe, estava batendo em nossas portas. O preço dos painéis solares despencou e agora compete com o dos combustíveis fósseis. A tecnologia limpa e energias renováveis criam muito mais empregos que carvão, petróleo e gás. Quanto aos custos supostamente proibitivos, foram reunidos bilhões para guerras intermináveis, resgates bancários e subsídios a combustíveis fósseis, nos mesmos anos em que os cofres ficaram praticamente vazios para a transição climática. Tinha que haver algo mais.

É por isso que, ao longo desses anos, propus explorar outros tipos de barreiras: algumas econômicas, algumas ideológicas, mas outras relacionadas com histórias profundas sobre o direito de certas pessoas de dominar a terra e as pessoas que vivem mais próximas delas, histórias que sustentam a cultura ocidental contemporânea. E analisei as diferentes respostas que poderiam servir para derrubar por terra essas narrativas, ideologias e interesses econômicos, respostas que entrelaçam crises aparentemente díspares (econômicas, sociais, ecológicas e democráticas) em uma história comum de transformação civilizacional. Agora mesmo, esse tipo de visão ousada é cada vez mais manifestada em um New Deal verde.

Porque na medida em que avança nossa crise, também está mudando algo profundo e a uma velocidade que me surpreende. Os movimentos sociais se levantam para declarar, de baixo, a emergência popular. Além da proliferação de greves estudantis, vimos o surgimento da iniciativa Extinction Rebelion, que impulsionou uma onda de ações não-violentas diretas de desobediência civil, como o fechamento de grandes áreas do centro de Londres. Poucos dias após suas ações mais dramáticas, em abril de 2019, o País de Gales e a Escócia declararam uma situação de emergência climática e, pouco depois o parlamento britânico, sob pressão de partidos da oposição, fizeram o mesmo.

Nos Estados Unidos, vimos a ascensão meteórica do Movimento Sunrise, que entrou na cena política quando ocupou o escritório de Nancy Pelosi [presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos], a democrata mais poderosa de Washington DC, uma semana depois de seu partido recuperar a Câmara dos Deputados, nas eleições de meio de mandato, em 2018. Pediram ao Congresso que adotasse imediatamente um projeto de descarbonização, tão ambicioso em sua implementação e escopo quanto o New Deal de Franklin D. Roosevelt, o amplo pacote de políticas destinadas a combater a pobreza da Grande Depressão e o desastre ecológico do Dust Bowl.

A ideia na qual se baseia o New Deal verde é simples: no processo de transformação da infraestrutura de nossas sociedades no ritmo e no nível exigido pelos cientistas, a humanidade tem apenas uma chance em um século de modificar um modelo econômico que está falhando com a maioria das pessoas e em múltiplas frentes. Porque os fatores que estão destruindo nosso planeta também estão destruindo a vida das pessoas de muitas outras formas: desde a estagnação salarial a enormes desigualdades, a destruição de serviços públicos, a ascensão da supremacia branca e o colapso de nossa ecologia e da informação. Desafiar as forças subjacentes é uma oportunidade para resolver várias crises entrelaçadas ao mesmo tempo.

Tentando resolver a crise climática, podemos criar centenas de milhões de bons empregos em todo o mundo, investir nas comunidades e nações mais sistematicamente excluídas, garantir assistência médica, cuidar de crianças e muito mais. O resultado dessas transformações seriam economias construídas para proteger e regenerar os sistemas que sustentam a vida do planeta e para respeitar e sustentar as pessoas que deles dependem.

Essa visão não é nova. Suas origens remontam a movimentos sociais em áreas ecologicamente devastadas do Equador e Nigéria, bem como a comunidades de cor altamente contaminadas nos Estados Unidos. O novo agora é que, nos Estados Unidos, na Europa e em outros lugares há um bloco de políticos, alguns com apenas uma dúzia de anos mais velhos do que os jovens ativistas climáticos nas ruas, prontos para traduzir em políticas a urgência da crise climática e conectar entre si as múltiplas crises do nosso tempo.

A mais proeminente entre essa nova classe política é Alexandria Ocasio-Cortez, que, com 29 anos, se tornou a mulher mais jovem eleita no Congresso dos Estados Unidos. A apresentação de um New Deal verde estava alinhada com o programa que impulsionou. Hoje, em plena competição para liderar o Partido Democrata, a maioria dos principais candidatos à presidência afirma apoiá-lo: Bernie Sanders, Elizabeth Warren, Kamala Harris e Cory Booker. Enquanto isso, foi subscrito por 105 membros da Câmara e do Senado.

A ideia está se espalhando por todo o mundo, com a coalizão European Spring lançando um novo acordo ecológico para a Europa, em janeiro de 2019, e uma ampla coalizão ecológica no Canadá (o líder do novo partido democrata adotou o projeto, embora não em toda sua dimensão, como um de seus planos políticos). O mesmo acontece no Reino Unido, onde o Partido Trabalhista está em plenas negociações para adotar uma plataforma no estilo do New Deal verde.

Às vezes, nós que defendemos tal tipo de plataforma transformadora somos acusados de usá-la para promover uma agenda socialista e anticapitalista prévia a nossa posição sobre a crise climática. Minha resposta é simples. Ao longo da minha vida adulta, estive envolvida em movimentos que enfrentam inúmeras formas em que, em sua busca cruel por lucros, os sistemas econômicos atuais destroem a vida das pessoas e a paisagem. ‘No Logo’, publicado há 20 anos, relatou os custos humanos e ecológicos da globalização corporativa, desde as oficinas de exploração na Indonésia até os campos de petróleo do Delta do Níger. Vi adolescentes sendo tratados como máquinas para fabricar nossas máquinas, e montanhas e florestas transformadas em pilhas de lixo para ser feito petróleo, carvão e metais subterrâneos.

Não era possível negar os impactos dolorosos, inclusive letais, destas práticas. Simplesmente se argumentava que eram o custo necessário de um sistema que estava criando tanta riqueza que finalmente os benefícios seriam para melhorar a vida de quase todos no planeta. No entanto, o que aconteceu é que a indiferença à vida que foi expressa na exploração de trabalhadores e trabalhadoras individuais nas fábricas e na destruição de montanhas e rios se acumulou para engolir todo o nosso planeta, transformando as terras férteis em salinas, belas ilhas em escombros e drenando os recifes que outrora brilhavam com vida e cor.

Não tenho receio em admitir que não vejo a crise climática como algo separado das crises mais locais geradas pelo mercado e que documentei ao longo dos anos. O que agora é diferente é a escala e o alcance da tragédia: está em jogo o único lar da humanidade. Sempre tive um tremendo senso de urgência sobre a necessidade de mudar para um modelo econômico radicalmente mais humano. Mas, essa urgência agora adquire uma qualidade diferente, porque o que está acontecendo é que estamos vivos justamente no último momento possível, no qual mudar de rumo pode significar salvar vidas em uma escala verdadeiramente inimaginável.

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