Um ministro "terrivelmente evangélico" no STF?

Presidente da República, Jair Bolsonaro, e a Primeira-Dama Michelle Bolsonaro, durante a Celebração Internacional 2019 “Conquistando pelos Olhos da Fé”. | Foto: Isac Nóbrega/PR

06 Agosto 2019

"Um ministro do STF não tem que ser 'terrivelmente evangélico'. Um ministro do STF tem que ser alguém que conhece a Constituição e a respeita. Tem que ser alguém com competência o bastante para ocupar uma posição na mais elevada corte de justiça do país. O fato de ser ou não evangélico jamais poderá ser motivo para ser ou não escolhido para o cargo", escreve Carlos Caldas, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas em Belo Horizonte.

Citando Lutero, em um aforismo bastante conhecido disse: “se for para me operar, prefiro um médico muçulmano a um açougueiro cristão”, Carlos Caldas conclui: "A competência, aliada à lisura e honestidade devem estar em primeiro lugar, para a escolha de qualquer pessoa para seja lá qual for o cargo. Colocar como primeiro critério de escolha a opção religiosa é o caminho para o desastre".

Eis o artigo. 

No último dia 10 de julho o Brasil foi surpreendido com (mais) uma declaração polêmica do presidente Jair Bolsonaro: ao participar de culto evangélico na Câmara dos Deputados, declarou que pretende indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF. Ele terá que indicar dois ministros para a suprema corte da justiça brasileira até o final do seu mandato, considerando que Celso de Mello e Marco Aurélio Mello se jubilarão compulsoriamente, por conta da idade (respectivamente, 2020 e 2021). Bolsonaro já havia sinalizado que pretende indicar Sergio Moro, o atual ministro da Justiça e da Segurança Pública, para uma destas vagas. A outra, conforme a mencionada declaração deverá ser para alguém que seja “terrivelmente evangélico”. A escolha das palavras é estranha: o advérbio “terrivelmente” tem a ver com “terror”, isto é, aquilo que amedronta, apavora, assusta, ameaça. Não combina com “evangélico”, que, antes de ser palavra que aponta para uma tradição identificada com o cristianismo, tem a ver com o evangelho – boa notícia – de Jesus de Nazaré.

É importante pensar no que de fato a palavra “evangélico” significa. Pois palavras, assim como o dinheiro, podem sofrer processo de inflação, e assim têm seu significado esvaziado e diminuído. John Stott (1921-2011), pastor e teólogo anglicano inglês, lembra que

O adjetivo latino evangelicus foi utilizado já no começo da história da Igreja, com referência ao evangelho. Agostinho, por exemplo, declarou que “o sangue dos cristãos é algo como a semente do fruto do evangelho” (semen fructuum evangelicorum)[1].

O mesmo Stott resgata um comentário breve, mas elucidativo, de Erasmo de Rotterdam, a respeito do termo evangelici usado pelos reformadores: conforme Erasmo, os reformadores usavam esta palavra sic enim appelari gaudent (“pois assim desejam chamar-se”)[2]. Já em 1524 Lutero usa “evangélico” para se referir aos adeptos do movimento reformador. Não é por acaso que em alemão a igreja que aderiu à proposta reformadora de Lutero é Die Evangelische Kirche in Deutschland (EKD), literalmente “Igreja Evangélica na Alemanha”[3].

Outro autor que contribui para uma compreensão do que de fato as palavras do campo semântico de “evangélico” significam é o também inglês Roger Steer, historiador do movimento evangelical. Conforme Steer, o pré-reformador “John Wycliffe [...] foi chamado, em latim, o doctor evangelicus, ao tempo de sua morte, em 1384”. O mesmo Steer afirma:

A palavra “evangelical” caiu em uso comum no tempo da Reforma: Lutero e os reformadores gostavam de descrever-se em latim como evangelici (forma reduzida de evangelici viri, “homens evangelicais”, ou em alemão como die Evangelischen [4].

O movimento evangelical – ou evangélico – é bastante fragmentado, ou seja, nunca foi monolítico. Portanto, não há entre os historiadores do movimento consenso quanto a uma tipologia abrangente o bastante para apresentar todos os grupos evangelicais. Comentando sobre a variedade de grupos que se entendem como evangelicais o falecido bispo anglicano brasileiro Robinson Cavalcanti, citou o historiador estadunidense Richard Quebedaux, que catalogou “28 diferentes tendências entre os evangelicais, que iam dos amish (menonistas pacifistas isolacionistas) aos black evangelicals e radical evangelicals [...] passando pela politicamente conservadora Maioria Moral [Moral Majority] (hoje Christian Action)”[5]. Estes diferentes grupos compartilham entre si algumas crenças básicas, como a aceitação dos quatro Solas da reforma luteranaSola gratia (“a graça somente”), Sola fide (“a fé somente”), Sola Scriptura (“a Escritura somente”) e Solus Christus (“Cristo somente”), a crença na necessidade de conversão individual a Cristo e a responsabilidade evangelística do cristão em compartilhar sua fé e esperança em Cristo.

Dentre os diversos grupos evangelicais destaca-se o que Quebedeaux chamou de “evangelicais radicais”. Este é particularmente interessante, porque embora tenha sua raiz remota no movimento de revitalização no anglicanismo britânico do século XVIII, que teve como representantes destacados nomes como o líder abolicionista William Wilbeforce, é um movimento que ganhou elaboração teórica e atuação pastoral na América Latina: o evangelicalismo radical latino-americano. O diferencial do movimento evangelical latino-americano, conforme Mark Ellingsen, está no fato que “os evangelicais radicais abraçam, talvez mais intensamente que outros, um compromisso [...] de que a ética sociocristã deve estar enraizada no testemunho bíblico e num estilo de vida regenerado”[6].

Um dos mais destacados teóricos do movimento evangelical radical latino-americano foi o teólogo porto-riquenho Orlando Costas (1942-1987)[7] . Para Costas o movimento evangelical radical latino-americano é uma práxis de fé “espiritualmente energizante e historicamente transformadora”, que recebeu influências de movimentos tão diversos quanto a “piedade mundana” calvinista do século XVI, os abolicionistas evangélicos ingleses e norte-americanos dos séculos XVIII e XIX, e, mais recentemente, os movimentos pelos direitos civis dos Estados Unidos na segunda metade do século XX [8].

Como se vê, a palavra evangélico tem uma história rica de significado. Evangélico evidentemente tem a ver com a boa notícia de Deus em Cristo Jesus. É neste sentido que Karl Barth, um dos principais teólogos do século passado, utilizou a palavra na obra pequenina, mas densa de significado, considerada seu “canto de cisne”: Introdução à teologia evangélica[9]: a teologia é evangélica não por ser alinhada de um modo ou de outro com o protestantismo, mas por ter a ver com o evangelho de Jesus.

Considerando então a profundidade de sentido da palavra evangélico e a vasta gama de grupos que a utilizam, o que será que o atual presidente do Brasil quis dizer quando afirmou que pretende indicar um ministroterrivelmente evangélico” para o STF? É bastante provável que Bolsonaro tenha em mente o estereótipo popular de “evangélico” que circula no senso comum, e que pense exatamente como ele (Bolsonaro) pensa. Afinal, grande parte do mérito da eleição de Bolsonaro se deve a um contingente de milhões de evangélicos que se enquadram perfeitamente no estereótipo popular, mas que, infelizmente, está muito distante dos sentidos bíblico e histórico do que evangélico realmente significa. Este estereótipo é na verdade uma caricatura grosseira do verdadeiro, rico e profundo significado do que, à luz da Bíblia e da história, a palavra evangélico quer dizer. Ainda mais se for um evangélico da tradição radical latino-americana. Para este tipo de evangélico em particular, a luta pelos direitos dos mais frágeis na sociedade não é “coisa de esquerdista”, mas uma obrigação que é imposta aos seguidores de Jesus pela própria Bíblia.

Um ministro do STF não tem que ser “terrivelmente evangélico”. Um ministro do STF tem que ser alguém que conhece a Constituição e a respeita. Tem que ser alguém com competência o bastante para ocupar uma posição na mais elevada corte de justiça do país. O fato de ser ou não evangélico jamais poderá ser motivo para ser ou não escolhido para o cargo. Lutero, em um aforismo bastante conhecido disse: “se for para me operar, prefiro um médico muçulmano a um açougueiro cristão”. A competência, aliada à lisura e honestidade devem estar em primeiro lugar, para a escolha de qualquer pessoa para seja lá qual for o cargo. Colocar como primeiro critério de escolha a opção religiosa é o caminho para o desastre.

Notas: 

[1] STOTT, John. Las controvérsias de Jesus. Buenos Aires: Certeza, 1975, p. 31, ênfases do autor.

[2] STOTT, op. cit., p. 32-33.

[3] A EKD é formada por igrejas luteranas propriamente, reformadas (de orientação teológica calvinista) e unidas (igrejas formadas a partir de uma fusão entre igrejas luteranas e reformadas).

[4] STEER, Roger. Guarding the Holy Fire: the Evangelicalism of John R. W. Stott, J. I. Packer and Alister McGrath. Grand Rapids: Baker, 1999, p. 10.

[5] CAVALCANTI, Robinson. Evangelicalismo, anglicanos e evangélicos. Ultimato. Maio-junho, 2000, p. 44.

[6] ELLINGSEN, Mark. The Evangelical Movement: Growth, Impact, Controversy, Dialogue. Minneapoliis: Augsburg Publishing House, 1988, p. 279.

[7] Para detalhes sobre a vida e obra de Orlando Costas, consultar CALDAS, Carlos. Orlando Costas: sua contribuição na história da teologia latino-americana. São Paulo: Vida, 2007.

[8] CALDAS, op. cit., p. 81.

[9] BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 11ª edição. São Leopoldo: Sinodal, 2013

 

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