Transfiguração, sinal e profecia da ressurreição

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15 Março 2019

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 2º Domingo da Quaresma, 17 de março (Lucas 9, 28b-36). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No primeiro domingo da Quaresma, contemplamos Jesus na sua condição humana, tentado pelo demônio no deserto e durante a sua vida (cf. Lc 4, 1-13). Neste segundo domingo, o Evangelho que nos é dado, o da transfiguração de Jesus, nos leva a confessar que, naquela sua carne mortal despojada das suas prerrogativas divinas, porque voluntária e livremente ele “esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo” (Fp 2, 7), a sua identidade profunda permanecia sendo a do Filho de Deus, e o seu destino era a glória divina (cf. Fp 2, 9-11).

Portanto, eis-nos diante deste relato testemunhada pelos três Evangelhos sinóticos (cf. Mc 9, 2-10; Mt 19, 2-9), cada um com detalhes diferentes e significativos. Lucas escreve que o evento aconteceu “oito dias depois” do dia da virada (Lc 9, 28a), isto é, o da confissão de Pedro que reconheceu e confessou Jesus como “o Cristo de Deus” (Lc 9, 20), aquele mesmo dia em que Jesus anunciou pela primeira vez a “necessitas” da sua paixão, morte e ressurreição (cf. Lc 9, 22). Justamente naquele dia, Jesus decide subir ao monte santo para dedicar-se à oração, para viver mais intensamente a relação com o Pai e esperar pela sua Palavra. Ele leva consigo os discípulos mais próximos dele, Pedro, João e Tiago, aos quais havia prometido a visão do reino de Deus antes da sua morte (cf. Lc 9, 27).

Jesus entra nesse encontro com Deus, como sempre fazia nos momentos decisivos da sua vida, exercitando-se na escuta da sua voz, da sua Palavra, para poder compreendê-la, assumi-la e conservá-la no coração e, consequentemente, poder dizer o seu “amém” a essa vontade de Deus.

A oração de Jesus está toda aqui, e assim também é a oração do cristão: não há muito a dizer a um Pai que sabe do que precisamos (cf. Mt 6, 8) e o que temos no coração, não há longos discursos a fazer (cf. Mt 6, 7), mas só é preciso responder ao Senhor com a obediência, com o “sim” assumido livremente e com grande fé amorosa.

Muitas vezes – os Evangelhos nos testemunham isto, particularmente Lucas (cf. Lc 5, 16; 6, 12; 9, 18) – Jesus buscou a solidão, a noite, a montanha, para viver essa oração assídua ao Pai; também agora, depois da confissão de Pedro, que marcou um salto na fé dos discípulos e permitiu que ele lhes entregasse o anúncio da sua morte e ressurreição, Jesus entra em oração.

Sabemos bem que a oração não muda Deus, mas nos transforma; porém, esquecemo-nos facilmente dela, porque a forma de oração pagã que quer falar a Deus, que quer curvá-lo aos nossos desejos, está nas nossas fibras de criaturas frágeis e necessitadas, prontas para fazer de Deus aquele que sempre pode nos dizer “sim”. Jesus, em vez disso, não reza assim, porque sabe que é ele que deve dizer “sim” a Deus, e não o contrário.

Pois bem, nessa escuta do Pai, nessa adesão a ele, ocorre a revelação dirigida aos três discípulos, que são assim constituídos “testemunhas da sua glória” (cf. 2Pe 1, 16): segundo o relato de Lucas, o rosto de Jesus parece “outro” (héteron), as suas vestes, radiantes de luz, cintilantes. Para nós, humanos, essa é a visão da glória: percebemos uma mudança em Jesus, contemplamos a mudança do seu aspecto, a sua forma “outra”, a sua “transfiguração” (“foi transfigurado”: Mc 9, 2; Mt 17, 2).

Independentemente da inadequação das nossas palavras, a realidade é que Jesus é percebido na sua alteridade: o homem Jesus, a quem os três discípulos seguiam como profeta e Messias, tem uma identidade outra, ainda não revelada, mas que, com esse evento, revela-se a eles momentaneamente, por alusão; em todo o caso, de modo suficiente para transformar a sua fé nele.

Aqui, não conseguimos dizer muito mais, balbuciamos, sentimo-nos na presença de um evento que pede apenas a nossa adoração. Ao longo dos séculos, os cristãos se interrogaram muito ao ler esse trecho. Na tradição oriental, chegou-se a pensar que, na verdade, Jesus permaneceu o mesmo, enquanto foram os olhos dos discípulos que sofreram uma transfiguração, até serem capazes de ler e ver o que cotidianamente não viam (cf. João Damasceno). Outros cristãos pensaram que, nesse evento, Jesus concedeu que os apóstolos vissem a sua glória, da qual havia se despojado na encarnação, glória não perdida, mas apenas “posta entre parênteses” nos dias da sua vida mortal. Outros, recentemente, preferem ver no relato da transfiguração uma antecipação pascal: seria o fruto da fé em Jesus ressuscitado, da sua identidade revelada na ressurreição e, portanto, lida a posteriori como profecia da Páscoa.

Diversas leituras, todas possíveis, que não se excluem mutuamente. Nós, com simplicidade, com olhos simples, acolhemos o mistério desse evento como revelação.

Jesus, aquele homem da Galileia, que, como profeta, tinha discípulos e falava às multidões, aquele homem precário, frágil e a caminho rumo à morte, na verdade, era o Filho de Deus, e as suas prerrogativas divinas não apareciam porque ele era verdadeira e totalmente homem. Sim, esse homem era o Filho de Deus e “nele habitava, em forma corporal, toda a plenitude da divindade” (Cl 2, 9), que na transfiguração, tornou-se visível às três testemunhas privilegiadas.

Para testemunhar essa identidade de Jesus, eis a intervenção de Moisés e Elias, na sua glória de viventes em Deus. Eles estão ao seu lado e lhe falam do seu “êxodo”, do seu fim, da sua morte que ocorrerá em breve em Jerusalém, cidade para a qual ele está a caminho: será um êxodo, uma passagem, porque o Pai o elevará à glória (cf. Lc 9, 51; 24, 51). O que Jesus anunciara como seu fim próximo em Jerusalém é confirmado como “necessitas” pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Há aqui a convergência em Jesus de todas as Escrituras de Israel, que somente nele encontram unidade e pleno cumprimento.

Para os três discípulos, esse evento aparece como um selo sobre aquele que eles seguem: o que acontecerá com ele em Jerusalém, a cidade para a qual Jesus sobe, está em conformidade com todas as Escrituras, está de acordo com a revelação de Deus dada a Israel, o povo de 'aliança.

Inadequados a esse mistério, Pedro, João e Tiago são oprimidos pelo sono, mas conseguem vencê-lo e contemplar “a glória” de Jesus e os dois homens que falam com ele sobre a sua paixão, morte e ressurreição. O peso da glória os invade, de modo que, de algum modo, eles veem o reino de Deus vindo com poder (cf. Mc 9, 1). Pedro, então, em uma espécie de êxtase, pede a Jesus que torne esse momento duradouro, como um momento de visão e não mais de fé, de bem-aventurança e não mais de fadiga, de paz e não mais de luta espiritual.

Mas, enquanto Pedro ainda está falando de modo extático, eis que vem a nuvem da Shekinah, da Presença de Deus, que os envolve com a sua sombra, despertando nos discípulos temor e tremor. Estão diante de Deus na sua esfera de vida, não na luz que ofusca, mas na nuvem que obscurece e não permite ver: sentem medo, mas não veem nada, percebem a Presença de Deus, mas não a veem. Mas eles ouvem, escutam o Deus que não se pode ver sem morrer (cf. Ex 33, 20), mas se pode escutar, precisamente como Moisés ensinara aos filhos de Israel: “O Senhor falou a vocês do meio do fogo. Vocês ouviram o som das palavras, mas não viram nenhuma forma: ouvia-se apenas uma voz” (Dt 4, 12).

A voz de Deus ressoa naquela nuvem como revelação da identidade de Jesus e, ao mesmo tempo, como tarefa para os seus discípulos: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”. O que Pedro, João e Tiago realmente escutam? Escutam o Profeta prometido por Deus através de Moisés, o Profeta a quem se deve escutar (cf. Dt 18, 15), e veem o cumprimento da profecia de Isaías sobre o anônimo Servo do Senhor, figura esperada pelos fiéis de Israel: “Eis o meu Servo, o meu Eleito” (Is 42, 1).

A revelação já é Jesus mesmo, a sua pessoa, e o grande mandamento “Escuta, Israel!” (Shema’ Jisra’el: Dt 6, 4) torna-se: “Escutem o Filho, o Eleito de Deus, escutem-no!”. A escuta da Lei e dos Profetas também deve se tornar escuta de Jesus, o Filho a quem Deus ama porque cumpre a sua vontade, de acordo com a missão recebida. Os três agora conhecem Jesus: é o Filho amado de Deus, enviado por ele para ser escutado.

Assim, no silêncio, conclui-se esse evento não facilmente narrável: Jesus está novamente sozinho com os três, que, emudecidos pelo espanto e pela adoração do mistério, não falam, não sabem contar o que viram, até depois que Jesus tenha ressuscitado dos mortos. A transfiguração é justamente sinal e profecia da ressurreição!

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