A espécie humana e os implantes artificiais. O que nos diz a evolução

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23 Julho 2007

Novos saberes. Alguém está procurando fixar os primeiros princípios de uma futura robô-ética. Estes são os temas do artigo de Telmo Pievani, professor de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão, publicado pelo jornal La Repubblica, 21-07-2007. Podemos suspeitar, afirma o intelectual italiano, "que o pós-humano seja, pensando bem, bem mais humano de quanto nos queira parecer".

Eis o artigo.

Um homem com duas patas sintéticas, semelhantes àquelas de um leopardo, vence de joelhos a final olímpica dos 400 metros, derrotando uma bateria de campeões anatomicamente normais: é uma notícia que teríamos classificado no campo da ficção científica até alguns anos atrás, mas que poderia tornar-se realidade em Pequim, em 2008, ou em Londres, em 2012, depois que o atletismo conheceu a emocionante história de Oscar Pistorius.

É uma notícia que, há um século e meio atrás, teria oferecido um argumento a mais à sátira contra o darwinismo, de Samuel Butler. Acabará antes ou depois que a evolução biológica, admoestava o escritor inglês, será dominada por um exército de máquinas evoluídas e conscientes. O íncubo da técnica que nos suplanta ou nos substitui pedaço por pedaço, é recorrente no imaginário científico, embora freqüentemente o tenhamos confundido com o problema, antes inextricável para um evolucionista, de distinguir o natural do artificial.

A espécie humana está inserida em contextos “artificiais” há pelo menos uma dúzia de milênios, da invenção da agricultura em diante. Para nos limitarmos ao esporte, já a utilização de uma banal substância dopante prejudica a natural retidão de uma competição esportiva. Os ecossistemas terrestres são hoje quase totalmente antropomorfizados e procuram adaptar-se fatigosamente (eles a nós e nós, vice-versa) ás perturbadoras atividades humanas. Mas, a espécie humana também é um experimento evolutivo único por outras razões: estamos em condições de modificar a identidade genética da nossa e das outras espécies: em breve seremos capazes de construir o primeiro organismo “sintético”, dotado de um genoma propositalmente selecionado; os neurocientistas dialogam com os estudiosos da inteligência artificial para entender as possíveis interações futuras entre os dois mundos.

Há quem esteja propondo fixar os primeiros princípios de uma futura “robô-ética”: precisamente, a alarmada premonição de Butler. E agora aí está Pistorius a recordar-nos o quanto sejamos “artificiais” por natureza e “naturais” por artifício. 

A questão é que um mamífero de grande porte, anatomicamente idêntico àquele que há cem mil anos combatia com uma clava – e, com 98% de DNA em comum com os chimpanzés – guia hoje uma astronave. Sabemos o que sucedeu há uns quarenta mil anos atrás, por razões talvez contingentes: tornamo-nos uma espécie mentalmente sapiens, em meio a outras espécies “diversamente sapiens”. É provável que sejamos capazes de reutilizar de modo oportunista habilidades precedentemente desenvolvidas para outras funções. Adquirimos vantagens adaptativas tão potentes a ponto de podermos equilibrar as debilidades colaterais. Mas, a inventividade humana transformou, depois, em sua volta o nicho em que nos encontramos imersos, gerando um efeito de retorno que acelerou ulteriormente a evolução cultural e tecnológica. Esta última apresenta características apenas em parte reconduzíveis às dinâmicas biológicas darwinianas: transmite-se na horizontal, como um contágio de idéias, e é muito mais rápida.

A corrida de Pistorius para dentro do futuro evoca, além disso, uma transição evolutiva mais antiga, que nos separou dos outros primos primatas: o bipedismo, uma adaptação para o deslocamento em espaços mais abertos. A locomoção bípede reduz a superfície exposta ao sol e com o tempo aumenta a poupança energética: uma invenção potente, que depois serve para todas as outras utilizações. Inauguramos assim a nossa carreira hominídea como símios da pradaria, três milhões de anos antes que o cérebro começasse a expandir-se. Tratou-se de um expediente evolutivo, adotado também por outras espécies por razões diversas, que, no entanto, nos deixou como herança alguns efeitos colaterais desagradáveis, a começar pelo mal da coluna espinal. Como sempre, a evolução remaneja o que tem à disposição e raramente o resultado é perfeito sob todos os pontos de vista. Com mais freqüência é um compromisso entre exigências contrastantes. 

A passada felina de Pistorius compensa uma grave amputação física com uma prótese tecnologicamente avançada, pensada para otimizar a função da corrida em espaços abertos. À sua maneira, integra uma evolução tecnológica individual com uma evolução biológica de espécie. Como bom sapiens, este conturbador bípede biotecnológico inventa estratégias de sobrevivência física, e de competição por via cultural. Rompe um handicap numa inédita exploração de possibilidades. 

Com aquelas duas pernas leves e ultra-resistentes de carbono composto – e um recorde pessoal de 46’’ e 56" em 400 metros – definir o sul-africano de 21 anos como um “inábil” torna-se antes anacronístico, a ponto de a Federação internacional de atletismo avaliar se não existem aí os pressupostos para considerar paradoxalmente aquelas próteses como uma vantagem sobre os adversários normais, na tentativa sempre mais árdua de delimitar os confins de uma competição “natural” entre seres humanos. 

Antes que as velhas e boas panturrilhas humanas sejam arquivadas entre as antiqualhas da história evolutiva se requer bastante tempo, mas, do ponto de vista do diversamente bípede Pistorius, a técnica, que estamos habituados a ver como o destaque de uma presumida condição biológica virgem, é, na realidade, a tentativa extrema da evolução natural em renovar-se a si mesma. O que induz a suspeitar que o pós-humano seja, pensando bem, bem mais humano de quanto nos queira parecer.

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