Quando Hitler se apaixonou pelas leis estadunidenses. Artigo de Siegmund Ginzberg

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05 Mai 2017

“O aspecto que mais tinha impressionado positivamente os nazistas em relação aos Estados Unidos eram as leis contra a mistura racial e aquelas para o controle da imigração. Hitler, no Mein Kampf, já tinha expressado admiração pelo pragmatismo com que os Estados Unidos tinham se decidido a acolher os ‘nórdicos’, limitar o influxo de latinos e eslavos, e barrar a imigração a chineses, filipinos e japoneses.”

A opinião é do historiador e jornalista italiano Siegmund Ginzberg, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 04-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Houve um tempo em que os nazistas olhavam para os Estados Unidos em busca de inspiração. Hitler era chanceler há nem um ano e meio, quando, em junho de 1934, os mais eminentes juristas do Reich se reuniram para projetar as famigeradas Leis de Nuremberg para a pureza da raça. A burocracia do regime conservou uma transcrição completa delas. Surpreende a atenção com que discutiram e receberam as leis anti-imigração e as leis raciais dos Estados Unidos e, em particular, aquelas que criminalizavam os casamentos “mistos”.

As leis “Sobre a proteção do sangue e da honra alemães”, que negavam aos judeus os direitos de “cidadania” normal e puniam severamente os casamentos e as relações sexuais entre judeus e cidadãos “de sangue alemão” foram emitidas em setembro de 1935. Seguiam ao pé da letra as indicações do Mein Kampf. A ideia vinha do próprio Hitler. Um livro de James Whitman, professor de direito comparado em Yale, traça minuciosamente a sua gênese e a sua implementação. Intitula-se Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law [O modelo americano de Hitler: os Estados Unidos e a criação da lei racial nazista] (Princeton University Press).

O jornal New York Times deu a notícia das leis raciais de Nuremberg dedicando o título principal não à substância antissemita das medidas, mas sim a um aspecto aparente, mas secundário: a adoção da suástica na bandeira alemã. Acontece com os melhores jornais, até mesmo nos nossos dias. “Assim Hitler responde ao insulto”, ressoava a linha de apoio. O “insulto” refere-se a um episódio de crônica de algumas semanas antes. Pelas ruas de Nova York, confrontavam-se manifestações pró e antinazistas. Quando atracou, o navio Bremen foi acolhido por alguns milhares de manifestantes antinazistas. Alguns conseguiram subir no navio e arrancar a bandeira com a suástica. Foram presos, e as autoridades dos Estados Unidos pediram desculpas a Berlim. Mas um juiz interveio para colocar as coisas no seu lugar. Ele fez com que eles fossem libertados, sentenciando que tinham retirado uma “bandeira preta da pirataria”, que representava valores “bárbaros”, exatamente o oposto dos da democracia estadunidense.

O juiz se chamava Louis Brodsky. Era de nomeação política e judeu. Ele tinha razão. De fato, porém, acabou fazendo um presente para a propaganda nazista. Justamente enquanto, na Alemanha, estava em andamento o grande show de Nuremberg.

Poucas semanas depois, atracou em Nova York outro navio alemão, gêmeo do Bremen, o Europa. Ele desembarcou 45 eminentes juristas nazistas em “viagem de estudo”. Entre eles, o doutor Ludwig Fischer, que, em 1939, seria nomeado governador da Varsóvia ocupada, criaria o Gueto onde – palavras suas, uma promessa mantida – “os judeus seriam rachados de fome e miséria”, suprimiria impiedosamente a sua insurreição, mandaria centenas de milhares deles para os campos de extermínio e, por fim, em 1947, seria enforcado como criminoso de guerra.

Os juristas nazistas ficaram entusiasmados com a acolhida por parte dos colegas estadunidenses, apesar de alguns protestos dos “judeus de sempre”. Naqueles anos 1930, os nazistas não eram os únicos interessados nos Estados Unidos, no modo como Henry Ford – alguém que, aliás, era mais violentamente antissemita do que Hitler – tinha inventado a linha de montagem, no modo como haviam criado uma formidável base industrial, no modo em que Hollywood fazia cultura de massa e também no “estilo de governo” de Roosevelt e no seu New Deal. Stalin também se interessava nisso, e até mesmo Gramsci, nos seus “Cadernos do cárcere”.

Mas o aspecto que mais tinha impressionado positivamente os nazistas eram as leis contra a mistura racial e aquelas para o controle da imigração. Hitler, no Mein Kampf, já tinha expressado admiração pelo pragmatismo com que os Estados Unidos, percebendo que o melting pot não funcionava, tinham se decidido a acolher os “nórdicos”, limitar o influxo de latinos e eslavos, e barrar a imigração a chineses, filipinos e japoneses.

“Se tivessem apenas estendido o tratamento aos não brancos e mestiços também aos judeus, a sua legislação caberia perfeitamente em nós”, observaria o infame futuro presidente do Supremo Tribunal do Reich para os crimes políticos, Roland Freisler. Com efeito, os Estados Unidos tinham sido os primeiros no mundo a renegar o compromisso de se levantar como refúgio de todos os oprimidos do mundo, consagrado na Estátua da Liberdade, para introduzir leis contra a invasão migratória de indesejáveis: asiáticos, doentes, homossexuais, idiotas, delinquentes, anarquistas e, depois, comunistas. Bem antes da proibição de Trump a muçulmanos e mexicanos.

E o pior é que essas políticas tinham um consenso de massa, assim como a promessa de ordem e de pleno emprego, de eliminação da vagabundagem, da criminalidade e da corrupção política. Um paradoxo é que, depois, o Reich importaria à força, durante a guerra, milhões de imigrantes para trabalhar como escravos. Embora em regime de estrita segregação, especialmente sexual. Estavam obcecados com a “mistura de sangue”. Relações inter-raciais eram punidas com o campo de concentração e a morte.

Certamente, havia coisas que Hitler e os nazistas odiavam nos Estados Unidos: a ideia de que os homens tinham sido criados iguais, a democracia representativa e os princípios liberais, a ideia wilsoniana da igualdade das nações, acompanhada da punição da Alemanha imposta em Versalhes. Mas admiravam outras e as colocariam em prática, levando-as às últimas consequências: a eugenia, a capacidade, igual à inglesa, de impor um império.

Hitler estava entusiasmado com o modo pelo qual, expandindo-se para o Oeste, tinham exterminado “milhões de peles-vermelhas”, e muitas vezes se referia a isso para justificar a sua política de expansão em busca de “espaço vital” a Leste.

Seria estúpido concluir a partir disso que os nazistas imitaram os Estados Unidos, ou que foram os estadunidenses que inventaram o racismo. Assim como não faz muito sentido chamar de Hitler ou de fascista a todo líder cujos sistemas de gestão nos evoquem métodos de conquista e de gestão do poder, banalidades ideológicas, horrores e, talvez, até o consenso convicto, fanático, majoritário do qual aqueles monstros gozaram em certo ponto. Mas não deixa de surpreender como os Estados Unidos puderam representar, também no século passado, tudo o que de melhor e, ao mesmo tempo, tudo o que de pior se podia imaginar.

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