O enigma de Ulisses, herói narcisista que escolheu o Outro. Artigo de Massimo Recalcati

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17 Setembro 2016

"Ulisses não é vítima da soberba do próprio Eu, não é seduzido pelo poder do próprio intelecto, mas é aquele que sabe se salvar porque renuncia ao próprio prestígio, até mesmo ao próprio nome, à própria individualidade, como acontece na aventura com o Cíclope. É apenas se fazendo Ninguém que o herói consegue evitar a vingança dos Cíclopes invocada pela ira de Polifemo cegado."

A opinião é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 11-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Ulisses é o herói da mitologia que, talvez mais do que todos, encarnou a tendência humana ao ultrapassamento de todos os tabus. Ao contrário de Édipo, o filho que, diante do excesso de verdade (não é rei, mas parricida, não é marido, mas filho da rainha, não é pai, mas irmão dos seus filhos), afunda na culpa, Ulisses encarna o impulso positivo do conhecimento que sabe transformar cada obstáculo em um estímulo para continuar a sua busca.

Acaso não nos reconhecemos todos nesse impulso, pergunta-se Roberto Benigni comentando com o seu faro habitual o extraordinário canto XXVI da Comédia de Dante, que, precisamente em Ulisses, tem o seu maior protagonista? Não estamos todos nós divididos entre a ânsia de conhecer o desconhecido e a atração nostálgica às nossas raízes, o solo familiar, a nossa identidade, Itaca?

A interpretação dantesca do desejo de Ulisses, porém, parece pender em sentido único essa divisão: nem o pai Laertes, nem o filho Telêmaco, nem a esposa Penélope e nem mesmo a própria terra são capazes de aquietar o irrequieto desejo de conhecimento de Ulisses. O seu "louco voo" coincide, portanto, com a sua máxima culpa (mas não foi a mesma de Édipo?): o conhecimento não respeita o seu limite humano, não reconhece a sua insuficiência.

De acordo com Dante, este é o núcleo do drama de Ulisses: o hybris do vencedor de Troia é, de fato, para o sumo poeta, tragicamente culpado. "Coloco-me no alto mar aberto", declara o Ulisses dantesco, para enfatizar a independência soberana da sua vontade. O nostálgico retorno para Itaca é, então, apenas um pretexto para satisfazer a sua curiosidade irrefreável, a sua fome de experiência?

Segundo Dante, a sua viagem está destinada à morte, porque ele não sabe captar o senso do limite, que é acima de tudo o senso dos próprios limites. Ulisses, assim como Édipo, negligencia a indicação socrática: "Conhece-te a ti mesmo". Um busca o culpado fora de si mesmo, o outro busca a satisfação por mares desconhecidos, sem qualquer capacidade de recolher-se em si mesmo.

A verdadeira culpa de Ulisses, ainda de acordo com Dante, não é o estratagema fraudulento do cavalo de Troia, mas a soberba de querer acessar o inacessível, de desafiar com a própria inteligência o mistério da vida e da morte, de não saber nunca realizar o próprio desejo fatalmente destinado à insatisfação perpétua.

Por essa razão, Dante, no fim do Canto XXVI, imaginar que a morte de Ulisses acontece justamente no momento em que ele ultrapassa o tabu das colunas de Hércules, aventurando-se em uma viagem impossível, destinado ao naufrágio ("até que o mar foi sobre nós fechado" [na tradução de Italo Eugenio Mauro]).

Na representação dantesca, Ulisses luta com um problema narcisista que nunca lhe permitiria abrir mão do próprio Eu. Em total contraste com esse retrato, Elias Canetti, em Masse e potere, indica o fascínio de Ulisses em uma dimensão completamente diferente.

No centro do seu brevíssimo retrato, está a imagem da diminuição. Ulisses não é vítima da soberba do próprio Eu, não é seduzido pelo poder do próprio intelecto, mas é aquele que sabe se salvar porque renuncia ao próprio prestígio, até mesmo ao próprio nome, à própria individualidade, como acontece na aventura com o Cíclope. É apenas se fazendo Ninguém que o herói consegue evitar a vingança dos Cíclopes invocada pela ira de Polifemo cegado.

Nessa mesma linha, também encontramos uma extraordinária leitura de Heidegger em um breve texto intitulado Aletheia, contido em "Ensaios e discursos". A cena é a de Ulisses que assiste ao relato da Guerra de Troia do cantor Demódoco no palácio dos reis dos Feácios. A cada passo da narrativa que lhe lembra o atroz resultado da sua astúcia, atingido pela emoção, ele esconde a própria cabeça para chorar em segredo.

Quão diferente é essa imagem de Ulisses da imagem dantesca do "louco voo"? Ulisses não encarna, aqui, o impulso indomável ao conhecimento do mundo, mas sim o valor daquilo que permanece escondido, que não aparece. O exato oposto da orgulhosa afirmação narcisista de si que Dante lhe imputa.

No meio de uma festa, Ulisses, o exilado, o sem pátria, o náufrago, se retira em solidão no pranto e na vergonha. O saber aqui não é poder, mas, se quiser ter qualquer relação com a verdade, deve saber recuar.

Não é essa outra versão de Ulisses que entra em atrito com aquela mais conhecida que o consagrou como herói trágico e soberbo do conhecimento? Esse gesto de contenção não está em contraste com o orgulho daquele que ultrapassa toda a proibição?

Eis todo o valor do passo atrás, do renunciar ao nome próprio, da diminuição na qual Canetti também insiste.

Não seria, talvez, por causa dessa capacidade de se subtrair à presença, que Ulisses pode rejeitar a oferta de Calipso que, em troca do seu amor, está disposta a lhe prometer a vida eterna? O que possibilita que Ulisses, o soberbo, escolha retornar para Penélope, para o seu filho Telêmaco e para a sua terra?

Nessa escolha, Ulisses – como aconteceu com a corte dos Feácios – se revela como um sujeito capaz de reconhecer a profunda dívida que o liga ao Outro. Ele não apaga Penélope, não se esquece de Telêmaco, não olvida Laertes. O que mais importa não é a vida eterna, o ultrapassamento da morte, mas sim a vida do amor que quer permanecer fiel à sua promessa.

Esse outro Ulisses, obviamente, não apaga o Ulisses do desejo infinito e da curiosidade insaciável que Dante esculpiu de modo permanente, mas, ao contrário, exalta com ainda mais força a divisão trágica que o atravessa.

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