Interino... E precário

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

07 Junho 2016

O novo fenômeno do golpe parlamentar consiste no sequestro do direito constitucional de um povo e sua conversão em privilégio de assalto ao poder.

O artigo é de Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, autor de vários livros e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado por CartaCapital, 07-06-2016.

Eis o artigo.

O governo de Michel Temer é juridicamente interino e politicamente precário. Falhou em completar o golpe parlamentar ao não obter a necessária obediência da oposição social à nova ordem. Os usurpadores invadiram o governo, mas não ocuparam de todo o poder.

A seção legalista da sociedade sublevou-se e o governo interino tornou-se transitório, sem saber como será o dia de amanhã. Bem pode estar desalojado ao fim do prazo de vigência desta edição de CartaCapital.

Troca o recurso da persuasão pela confissão da truculência militar com a mesma rapidez adotada no afastamento da legítima presidenta Dilma Rousseff. A cada episódio repressivo, contudo, fortalece a disposição de resistência na sociedade. Aparentemente, a cada tentativa de governar, perde poder.

Gago e tíbio, o precário governo de Michel Temer desconvida, desmente ou demite um ministro ou burocrata a cada dia. Só a miopia da sede de vingança ou a malévola esperança de esconder com sucesso os cadáveres dos traídos explicam a sem-cerimônia com que se apresentaram à plateia no dia seguinte ao golpe parlamentar, sem se dar conta da enorme decepção de muitos, que ativa ou passivamente patrocinaram o escândalo mundial de punir uma cidadã sem crime comprovado.

Que papelão começaram a desempenhar o presidente nacional da Ordem dos Advogados, o patético senador Cristovam Buarque, e até mesmo o suave ministro Luís Roberto Barroso, cruzado da tese de que só caberia ao Supremo Tribunal Federal a avaliação do rito do impedimento, ao se espantarem com a estampa do governo interino de Michel Temer.

Como assim, a surpresa? Foram incapazes de entender que o afastamento de Dilma equivalia à invasão de Temer e similares? Espanto assim manifestam as virgens desatentas às dores do coito interrompido...

O oblíquo episódio em curso escapa às bem estabelecidas análises do funcionamento e eventual crise das democracias representativas.

Está ausente a divisão entre as elites econômicas, partidárias e institucionais, variando, de crise em crise, a intensidade do estranhamento.

Aqui houve extraordinário consenso entre a esmagadora maioria do Legislativo, Tribunais de Contas, Tribunais Eleitorais e de juízes de primeira instância, com destaque para a investigação Lava Jato, e outros braços institucionais, protegidos pelo procurador-geral da República e pela maioria de ministros do STF, na proclamação de crimes imputados à presidenta Dilma Rousseff, a seu antecessor, Lula, e ao partido líder da coalizão governamental, o PT. Em auxílio ao festival, todas as associações empresariais se incorporaram ao desfile, com prêmio de melhor fantasia arrebatado pela Fiesp.

Merece registro particular o envolvimento da mídia. Não é incomum o apoio de meios de comunicação conservadores a intervenções militares ou civis contra governos populares. Peculiar foi a participação de todos no consenso pelo golpe.

Liderados pelo Sistema Globo de Comunicação, o despudor da tergiversação, omissão e tortura das notícias encarcerou a opinião pública, salva em parte pelo esforço guerrilheiro de blogues. O monopsônio fático da Rede Globo, ao oferecer boas condições materiais de trabalho e bons salários, degradou a profissão de jornalismo no Brasil, submetendo profissionais outrora respeitados à exposição, a céu aberto, dos signos de capitulação.

Deve-se à competência desses profissionais o envenenamento emocional da população, o cultivo do discurso debochado a propósito da política, o rancor à solidariedade, a celebração da vitória individual ao preço do desalento do vizinho, a que o pornográfico BBB serve de incomparável modelo. Viu-se projeção política do estado de espírito BBB na demencial sessão da Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016.

A absoluta falta de compostura dos empresários-controladores transformou o Sistema Globo de Comunicação no mais poderoso instrumento de intimidação política do mundo inteiro.

Essencialmente, o novo fenômeno do golpe parlamentar consiste no sequestro do direito constitucional de um povo e sua conversão em privilégio de assalto ao poder por maioria parlamentar. Quando é disso que se trata, o fundamental não é o quórum exigente para a decisão, mas a inexistência de vetos ao que pode ser decidido.

Impedir uma presidenta da República, deliberando que há crime onde não há, é o mesmo que consagrar a soma de que 2+2 perfazem 5.

Substitui-se a objetividade numérica, o ordenamento jurídico positivo no impedimento sem causa, para o que extenso consenso e cumplicidade dos tribunais de Justiça são necessários e insubstituíveis.

Em condições democráticas, só o poder constituinte da população, diretamente em plebiscitos ou por meio de assembleias especificamente eleitas, pode deliberar sobre o que é e o que não é. Por isso os paramentos ritualísticos de golpes parlamentares são irrelevantes. O STF, ao deliberar sobre isso, delibera sobre coisa alguma, é fuga.

Naturalmente, a lorota do 2+2=5 não se sustenta sem apoio extra. Leis e interpretações adicionais serão indispensáveis ao exercício de um governo usurpador, particularmente quando a violência institucional desnuda a causa teleológica dela: mutilação ou desativação de políticas sociais pró-populações pobres e miseráveis.

Para tanto servem a contínua cobertura dos tribunais e, se convocada, dose crescente de coação física e emocional: pancada e difamação. É o destino do precário, provisório e incerto governo de Michel Temer. Enquanto durar, evidentemente.