Filósofo francês René Girard foi um conservador revolucionário

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09 Novembro 2015

"Crítico literário, Girard apostou na repetição e não na diferença; antropólogo, buscou o mecanismo matriz da cultura e não a irredutível particularidade das culturas; filósofo cristão, privilegiou a especificidade antropológica e não teológica das Escrituras. Pensador inclassificável, adversário de binarismos, ele foi um conservador revolucionário, um rebelde sereno. Em suas palavras: "Posso ser definido como uma espécie de outsider", escreve João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada da UERJ, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 06-11-2015.

Eis o artigo.

René Girard nasceu em 1923, na França, e morreu na quarta-feira (4), nos Estados Unidos. Lida pelo avesso, essa frase, mera transmissão de dados biográficos, revela um traço inquietante.

Seguindo os passos paternos formou-se paleógrafo e arquivista –e, como o pai, deveria assumir o cargo de curador da Biblioteca e do Museu de Avignon.

Num gesto de distanciamento, definidor de sua personalidade, Girard reinventou-se, deixando a França em 1947 para iniciar um doutorado em história nos EUA. Depois da tese "American Opinion on France, 1940-1943", seguiu carreira no país que adotara.

Novo desvio: professor de literatura comparada, ele publicou seu primeiro livro, "Mentira Romântica e Verdade Romanesca" (1961). Nesse brilhante exercício crítico, intuiu a categoria que marcou sua obra: o desejo mimético, isto é, a centralidade do outro na determinação do eu.

Girard radiografou as metamorfoses do desejo mimético na obra de Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoiévski e Proust. Em lugar da diferença absoluta, a repetição relativa. Porém, na teoria girardiana, a mimese é matriz de rivalidade e conflito.

Noção aprofundada em seu segundo livro-chave, "A Violência e o Sagrado" (1972). Formado durante a Guerra Fria, o francês voltou a remar contra a corrente. Muitos pensadores defendiam formas não violentas de organização política. Ao contrário, Girard afirmou a onipresença da violência nos primórdios da cultura; daí a conjunção aditiva: violência e sagrado.

Mais: Girard ampliou radicalmente seu horizonte disciplinar, apropriando-se da antropologia. Contudo, valorizou a associação, à época desacreditada, entre emergência da cultura e manifestação do fenômeno religioso. 

Em seu terceiro livro fundamental, também lançado no Brasil pela É Realizações, "Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo" (1978), a rebeldia manteve-se viva. O autor afirmou a singularidade ética e epistemológica do cristianismo, em sua defesa da vítima, do menos favorecido.

Cristão praticante (mas que acolheu a mim, um estudante brasileiro ateu, sem reservas), ele poderia ter dito: "Só me interessa o que não é meu". Afinal, propôs: "Devemos concordar com os que dizem ser a Eucaristia oriunda do canibalismo arcaico".

Crítico literário, Girard apostou na repetição e não na diferença; antropólogo, buscou o mecanismo matriz da cultura e não a irredutível particularidade das culturas; filósofo cristão, privilegiou a especificidade antropológica e não teológica das Escrituras. Pensador inclassificável, adversário de binarismos, ele foi um conservador revolucionário, um rebelde sereno. Em suas palavras: "Posso ser definido como uma espécie de outsider".

No Brasil de hoje, cindido por uma intolerância sempre mais míope porque a cada dia mais dicotômica, a leitura da obra girardiana reveste-se de inesperada urgência. Atenção: uma urgência sem pressa –como os tantos paradoxos da vida e da obra de René Girard.