“God bless America”: o “sonho americano” do Papa Francisco

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Por: André | 25 Setembro 2015

Queriam classificá-lo como o “Papa anti-yankee”, para depois vinculá-lo à etiqueta do latino-americano populista. Pelo contrário, o Papa Francisco falou ao Congresso como amigo, mais ainda, como irmão americano, “filho deste grande continente”. Não recrimina, não condena, não mete o pau em ninguém. Entrou no coração da nação com um discurso recheado de agradecimentos poéticos, no qual exalta tudo o que há de grande, fascinante e nobre que vibra na alma e na história do povo dos Estados Unidos. Como fez na Coreia do Sul, como faz em qualquer país que visita, Francisco se apresenta pela porta da proximidade. Também usa com a superpotência global a empatia com a qual está pronto para reconhecer e exaltar os valores positivos que se encontram nas histórias e nos sentimentos de cada povo.

A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 24-09-2015. A tradução é de André Langer.

Dirigindo-se à classe política estadunidense, recorre inclusive à “captatio” de identificar quatro modelos da grandeza do coração nacional; quatro personificações indiscutíveis do “sonho americano” de que todos gostam e sobre o qual todos estão de acordo: o presidente Lincoln “guardião da liberdade”, Martin Luther King e dois filhos da Igreja católica: a sindicalista pacifista Dorothy Day e o monge da ordem cisterciense Thomas Merton.

O discurso do Papa esteve recheado de frases e imagens que entusiasmaram o patriotismo daquela que o Papa Bergoglio, citando o hino nacional, definiu como “a terra dos homens livres e casa dos valorosos”. O Papa identifica no espírito estadunidense o desejo e o culto da liberdade (começando pela liberdade religiosa, pelo espírito “de cooperação” e pela abertura à voz da fé, que “trata de fazer reluzir o que há de melhor em cada pessoa e em cada sociedade”).

Bergoglio reconheceu também que a democracia “está profundamente arraigada na alma do povo estadunidense”. Citou a Declaração da Independência segundo a qual “todos os homens são criados iguais” e aos quais o seu Criador ofereceu “certos direitos inalienáveis”, inclusive a liberdade e o direito à busca da felicidade.

Com estas palavras de longo alcance, sem forçar nada ou utilizar tons ásperos, o Papa Francisco pode chamar os políticos e a nação estadunidense para serem fiéis à própria história, para enfrentar as emergências internas, regionais e mundiais. Em relação ao tema da imigração, recordou que “nós, os povos deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque muitos de nós éramos uma vez estrangeiros. Digo isto a vocês como um filho de migrantes, sabendo que também muitos de vocês descendem de migrantes”.

Citou o estadunidense Martin Luther King e a marcha de 50 anos atrás de Selma a Montgomery, para recordar o “sonho” dos plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. Mas depois voltou a falar sobre o presente. “Milhões de pessoas chegaram a esta terra para perseguir o próprio sonho de construir um futuro de liberdade... Estou feliz”, acrescentou, “com o fato de que a América continue sendo, por muitos motivos, ‘uma terra de sonhos’”.

Sobre a emergência global do trabalho e da luta contra a pobreza não propôs receitas de importação, mas a figura da serva de Deus, Dorothy Day, a fundadora do Catholic Worker Movement, e sua paixão “pela justiça e pela causa dos oprimidos”, alimentada pelo Evangelho e pela fé. Desmentindo as polêmicas sobre o “papa pauperista”, citou a passagem da encíclica Laudato si’ em que define a atividade dos empresários como “uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos”, que “pode ser uma maneira muito fecundo de promover a região onde instala suas atividades” (n. 129).

O Papa Francisco recordou aos políticos dos Estados Unidos a nobreza do papel ao qual foram chamados: se a política deve estar verdadeiramente a serviço da pessoa humana, por consequência não pode ser escrava da economia nem das finanças. E sobre a paz e as guerras, exaltou com uma referência implícita as negociações com o Irã e Cuba, a disponibilidade demonstrada para resolver antigos conflitos, e repetiu que “um bom líder sempre opta por iniciar processos”, em vez de possuir espaços.

Tocou, além disso, com muita delicadeza em outra ferida aberta na sociedade estadunidense. Repetiu que as guerras são alimentadas pelo dinheiro manchado de sangue inocente que deriva do tráfico de armas. E citando Thomas Merton, depois de ter exaltado a contribuição que as diferentes comunidades dão à convivência nacional, recordou que “nenhum país é imune a formas de desilusão individual ou de extremismos ideológicos”, e que convém encontrar, todos juntos, o delicado equilíbrio que permite “combater a violência perpetrada em nome de uma religião, de uma ideologia ou de um sistema econômico”, e, ao mesmo tempo, defender a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais.

Com o seu discurso à alma do povo estadunidense, Bergoglio suprime as banalidades ideológicas pré-fabricadas com que certos círculos eclesiástico-midiáticos tratam de ditar a linha de interpretação de sua visita aos Estados Unidos. O Papa trata de ampliar os horizontes. Não propõe volúveis listas de “ethical issues” ou de “social issues” com os quais se deve medir as margens de convergência com a liderança política estadunidense. Não negocia bênçãos ou anátemas por espaços de poder. Não submete a inquisições ético-religiosas a sociedade secularizada dos Estados Unidos. Propõe o rosto da Igreja “especialista em humanidade”, aberta à colaboração com todos, pronta para dar valor a tudo o que há de bom e nobre na história dos seres humanos, sem se importar com a sua origem.

O Papa sugere à Igreja o critério que deve manter em sua relação com a política. Indica a via de uma missão sem ideologias, que não se encomenda a métodos ou instrumentos de grupos de pressão ético-religiosos, mas que se encontra com os homens e as mulheres estadunidenses como são, para oferecer a todos a felicidade prometida pelo Evangelho. Uma perspectiva missionária que poderia confundir os setores de lideranças eclesiais estadunidenses, empantanados em uma luta constante nas “batalhas ético-culturais”, e que durante os últimos anos se demonstraram em certas ocasiões contagiadas pela polarização político-ideológica que divide a sociedade norte-americana.

“Há outra tentação”, disse o Papa Francisco no Congresso dos Estados Unidos, com a qual é preciso ter cuidado: reduzir ou analisar tudo sob a ótica dos “bons” e dos “maus”, dos “justos e pecadores”. O mundo contemporâneo, que fere tantos de nossos irmãos e irmãs”, acrescentou o Sucessor de Pedro, “exige que enfrentemos todas as polarizações que pretendem dividi-lo em dois campos. Sabemos que, na ânsia de nos libertar do inimigo externo, podemos ser tentados a alimentar o inimigo interno. Copiar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é a melhor maneira de ocupar o seu lugar”.

O Papa falou aos políticos dos Estados Unidos, mas talvez não se referiu apenas a eles.

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