A derrocada dos movimentos sociais na África pós-Apartheid. Entrevista especial com Tshepo Madlingozi

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13 Dezembro 2014

“Em meados da década de 1980, o ápice da nossa revolução contra o Apartheid, os movimentos sociais eram animados pela práxis do poder popular”, diz o pesquisador.

Foto: www.brasilescola.com

Em 2014 celebram-se 20 anos do fim do Apartheid, o regime de segregação racial adotado – oficialmente – de 1948 a 1994 na África do Sul. No entanto, para o sociólogo, advogado e ativista Tshepo Madlingozi, a política que emergiu do novo governo pós-apartheid ainda apresenta uma série de continuidades com o modo de governança do regime pré-1994. “A legislação pós-Apartheid não desafia fundamentalmente a natureza colonial do Estado”, alerta. “Consulta é entendida como o Estado dizendo às pessoas o que foi decidido, participação para além das instituições organizadas pelo Estado é vista como um desafio direto contra ele e, por sua vez, a brutalidade do Estado contra as atividades dos movimentos sociais é frequente”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Tshepo aponta os modos como a legislação pós-apartheid promoveu uma mudança na ação dos movimentos sociais – que migrou de uma luta por poder para uma luta por Direitos. Ou seja, ao invés de ação combativa direta, os movimentos são incitados a ir à Justiça, recorrer à Corte onde, invariavelmente, sempre perdem. “Isso significou, ideologicamente, que os movimentos sociais se transmutaram de movimentos revolucionários em grupos da sociedade civil, implementando um discurso de direitos civis a fim de obterem seus direitos; não mais poder popular, mas direitos de indivíduos suplicando ao Estado por serviços tais como prometidos na Constituição”.

Entre 2005 e 2010, Tshepo Madlingozi foi coordenador nacional de advocacia do Khulamani, um grupo de suporte às vítimas do Apartheid. Participante hoje do quadro da diretoria, ele aponta que a própria Comissão da Verdade que investigou os crimes do regime segregatório foi capaz de reconhecer e indenizar apenas 16 mil vítimas – em um país com 50 milhões de habitantes. “A legislação pós-Apartheid está desmobilizando à medida que individualiza o sofrimento; está despolitizando à medida em que transforma a problemática de 300 anos de Apartheid colonial em questões de tecnicalidades a serem resolvidas por juristas; e retira recursos da construção de movimentos e atividades de agitação popular”.

Tshepo Madlingozi é mestre em Direito e em Sociologia. Professor da Universidade de Pretória, na África do Sul, é colaborador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Lisboa, onde participa do Projeto ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas. Tshepo é coeditor de Symbols and Substance: The Role and Impact of Socio-Economic Rights Strategies in South Africa (Cambridge: University Press, 2012).

Foto: www.neues-deutschland.de

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode ser caracterizada a mudança na perspectiva dos movimentos sociais que migraram de um “discurso de poder” para um “discurso de direitos”? O que isso significa na prática?

Tshepo Madlingozi – Em meados da década de 1980, o ápice da nossa revolução contra o Apartheid, os movimentos sociais eram animados pela práxis do poder popular. O que isso significou é que essa foi a primeira vez na história da África do Sul em que a população negra das áreas urbanas decidiu agir como se o regime do Apartheid não existisse – eles não estavam indo lutar ou reivindicar um melhor tratamento por parte daquele regime mau. Ao invés disso, os movimentos decidiram tomar o seus poderes de volta e libertar-se do estado.

Ideologicamente, isso significou que o povo recusava ser interpelado/representado como vítima, mas como agentes que podiam pensar e agir. Na prática, o poder do povo manifestou-se através do estabelecimento de suas próprias estruturas de governança, tais como comitês de bairros, cortes do poder popular/revolucionário, conselhos representativos dos estudantes, etc. A era do poder popular foi derrotada no final dos anos 1980, quando o regime do Apartheid impôs uma estratégia de Assalto Total. Milhares de ativistas foram presos, as estruturas de governança popular foram destruídas e a imprensa revolucionária foi fechada.

“Os movimentos são empurrados para cortes de justiça nas quais eles têm de depender de advogados e de uma linguagem legalista para reivindicarem por serviços essenciais”.

Esse período coincidiu com aquele durante o qual o Congresso Nacional Africano, o principal partido político anti-Apartheid, estava em um processo de transição de um quase-socialismo para um discurso de direitos humanos.

Quando o CNA voltou do exílio, em 1989-1990, os movimentos sociais foram instruídos a se fortalecer e apoiar o CNA enquanto este se “preparava para governar”. Isso significou, ideologicamente, que os movimentos sociais se transmutaram de movimentos revolucionários em grupos da sociedade civil, implementando um discurso de direitos civis a fim de obterem seus direitos; não mais poder popular, mas direitos de indivíduos suplicando ao Estado por serviços tais como prometidos na Constituição. Na prática, isso significou que os “novos” movimentos sociais dos anos 2000 também tiveram que apelar às ONGs e advogados para terem acesso a seus direitos.

IHU On-Line – De que forma a legislação pós-apartheid disciplinou politicamente os movimentos sociais da África do Sul?

Tshepo Madlingozi – Em primeiro lugar, “Legislação pós-Apartheid” é uma lei da Constituição Suprema. Essa Constituição age como Deus – ela legisla sobre o que é certo e o que é errado e inunda toda a vida da África do Sul pós-Apartheid. É uma lei que diz que na “nova África do Sul” “não se lute, mas procurem-se as Cortes” para obter justiça. Os movimentos são, portanto, inevitavelmente empurrados para cortes de justiça nas quais eles têm de depender de advogados e de uma linguagem legalista para reivindicarem por serviços essenciais.

Pelo fato de que essa Constituição existe sobre a base de uma política macroeconômica neoliberal, os direitos socioeconômicos na Constituição são sempre rebaixados devido à limitação interna da maior parte desses direitos em “acessar o bem socioeconômico X dentro dos recursos disponíveis”, significando que os movimentos sempre perdem quando vão à corte. Vista desse modo, a legislação pós-Apartheid está desmobilizando à medida que individualiza o sofrimento; está despolitizando à medida que transforma a problemática de 300 anos de Apartheid colonial em questões de tecnicalidades a serem resolvidas por juristas; e retira recursos da construção de movimentos e atividades de agitação popular. Além disso, uma vez que a legislação “pós-Apartheid” não desafia fundamentalmente a natureza colonial do Estado, ela significa que há uma série de continuidades entre o modo de governança do regime pré-1994 e aquele pós-1994: consulta é entendida como o Estado dizendo às pessoas o que foi decidido (não uma democracia participativa), participação para além das instituições organizadas pelo Estado (Parlamento, Comitês Distritais), mídia, universidades, etc., é vista como um desafio direto contra o Estado e, por sua vez, a brutalidade do Estado contra as atividades dos movimentos sociais é frequente.

IHU On-Line – De que maneira o Khulumani é resultado, ao mesmo tempo, do processo de transição constitucional da África do Sul e do processo de institucionalização do ativismo humano?

Tshepo Madlingozi – O Khulumani foi criado em 1995 em resposta ao processo da Comissão de Verdade e Reconciliação e, como tal, o Khulumani foi possível pelo andamento do processo de justiça transicional em meados dos anos 1990. Ao mesmo tempo, deve-se ter em mente que os fundadores do Khulumani são pessoas que já eram ativas antes de 1990, lutando por seus direitos e pelos direitos dos membros de suas famílias.

De fato, nós, membros do Khulumani, somos “más vítimas”, no sentido de que, diferentemente do tipo de vítima que o processo da justiça transicional na África do Sul, e em todos os lugares, busca produzir – vítimas que legitimam a transição de elite; que saem às ruas todos os anos, em datas especiais, para chorar, contar suas histórias e servir como catarse para o Estado; que simplesmente querem reconhecimento e pagamento, isto é, “boas vítimas” –, as vítimas do Khulumani rejeitam as transições e mostram, como reza seu slogan, que “o passado está no presente”.

IHU On-Line – Por que a justiça transnacional, de matriz neoliberal dos países do hemisfério Norte, é incapaz de dar conta dos desafios do Sul Global? Que especificidades estão em jogo na realidade da África do Sul?

Tshepo Madlingozi – A justiça transicional é um projeto da modernidade ocidental destinado a salvar os países no Sul Global que estão “saindo” de conflitos. O objetivo é reconstruir esses países à imagem do mestre – o Norte Global. Assim como se espera que esses países adotem instituições associadas às democracias liberais ocidentais – ao invés de autodeterminação, esses países são recolonizados através desse processo. Além disso, os processos da justiça transicional visam sempre a liberalização política, um projeto que caminha junto com a liberalização econômica. Como tais, as causas estruturais de conflito nunca são consideradas: privação de terra, recursos roubados, economia desigual e Supremacia Branca permanecem intocados.

IHU On-Line – Como é o tensionamento entre os Khulumani e as multinacionais, que deram suporte ao Apartheid? Esta é a principal razão de resistência à racionalidade vinda do Norte?

Tshepo Madlingozi – O Khulumani não é contra o investimento estrangeiro por companhias multinacionais. No entanto, o Khulumani é contra companhias que ajudaram e incentivaram o cometimento de um crime contra a humanidade que foi o Apartheid. Essas companhias colheram benefícios do trabalho barato e das leis racialmente discriminatórias. A posição do Khulumani é que essas companhias devem ser responsabilizadas. Elas devem pagar a reparação pelo sofrimento que custearam. E, em vários casos, são as mesmas companhias que estão causando a miséria na República Democrática do Congo, Palestina, Colúmbia-Britânica e em outros países.

IHU On-Line – Passados 20 anos do fim do Apartheid, quais são os desafios atuais à conquista de direitos e reparação de danos às populações representadas pelo Khulumani?

Tshepo Madlingozi – Apenas 16 mil pessoas foram reconhecidas como “vítimas” do Apartheid. Isso é insano! O Apartheid colonial começou em 1652/1657 e durou, oficialmente, até 1994. E em um país de mais de 50 milhões de pessoas, apenas 16 mil serem reconhecidas como vítimas que têm direito a uma compensação de $3 mil! Em nosso banco de dados, nós temos mais de 100 mil membros. Algumas dessas pessoas ainda têm balas em seus corpos, algumas delas ainda têm cicatrizes psicológicas, elas ainda não sabem onde estão familiares que foram forçosamente desaparecidos, casas que foram queimadas ainda não foram refeitas, aqueles que foram removidos à força de suas terras não as tiveram de volta. Não tem havido qualquer reconciliação entre as pessoas brancas e negras e a África do Sul ainda é um país de supremacia branca.

“A justiça transicional é um projeto da modernidade ocidental destinado a salvar os países no Sul Global que estão “saindo” de conflitos, os reconstruindo à imagem do mestre – o Norte Global”

IHU On-Line – Quais os principais avanços à agenda dos Direitos Humanos que o Khulumani fez emergir nesses 20 anos? Qual a grande contribuição do Sul Global à racionalidade de outras partes do planeta?

Tshepo Madlingozi – O Khulumani tem ganhado em diversos casos na corte de justiça, incluindo a supressão da concessão de anistia aos perpetradores que não foram à Comissão de Verdade e Reconciliação. Suspendemos um projeto que nos proibiria de chamar de “assassinos” aqueles assassinos que receberam anistia, ganhamos o direito para que as vítimas sejam consultadas em casos em que os perpetradores do Apartheid se candidatassem à liberdade condicional. Junto com nossos parceiros no exterior, nós temos expandido a lei internacional contra desaparecimentos forçados e sobre o “direito à verdade”. Nossa maior contribuição tem sido ir a diferentes países africanos e informá-los de que o processo de justiça transicional na África do Sul tem beneficiado as elites políticas e os beneficiários do Apartheid, e dissuadi-los da adoção de tal processo em outros países. Nossa maior conquista tem sido mostrar que o “pós-conflito” é possível quando países no Sul Global adotam processos nativos de re-harmonização social, baseados em epistemologias e modos de ver não setentrionais.

Por Ricardo Machado e Andriolli Costa / Tradução: Gabriel Ferreira

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