Por: Marcia Junges | 23 Outubro 2014
A impressão de uma mão artificial, a criação de vida sintética, o transplante completo de face, uma nova droga que ajuda a controlar a dependência de bebida alcoólica e até mesmo a invenção de medicamentos como o Viagra. Essas invenções nos mostram que algo muito sério está em curso no mundo em que vivemos. “A vida está se movendo do mistério para o mecanismo. Há uma nova ontologia molecular da vida”, observa o biólogo, psicólogo e sociólogo britânico Nikolas Rose, docente no King’s College, em Londres, Inglaterra. Trata-se de um estilo molecular de pensamento. As reflexões foram estabelecidas na conferência da manhã de quarta-feira, 22-10-2014, no XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea. A reportagem é de Márcia Junges.
Rose aprofundou a discussão de que estamos numa era de controle biológico. Em sua fala, mencionou o controle dos corpos, das almas, e a ética somática na era do controle biológico. Retomando pensamento do filósofo francês Gilles Deleuze, afirmou que deixamos a era da disciplina para nos assentarmos na era do controle. “Devemos perceber como se articulam forças de constrangimento e libertação em nosso tempo. Não estamos falando de disciplina, mas de controle nas sociedades em que vivemos”, completou.
As evidências empíricas de controle sobre o corpo são inúmeras. Lembremos, por exemplo, do episódio da clonagem da ovelha Dolly. “Em tese, podemos fazer o que queremos. A vida é limitada apenas pelas regras da lógica e da regulação ética de que impõe o que podemos ou não fazer.”
Segundo Rose, nossa ideia de vida está mudando, mutando. Contudo, as categorias de normal e patológico, na perspectiva estudada por Canguilhem, continuam sendo divisões do controle biológico ao qual estamos submetidos. Podemos trazer nosso futuro ao presente através da preempção oferecida pelas opções médicas. Fala-se, inclusive, na emergência de uma nova forma de vida, que nos transforma, e múltiplas transformações in loco dão conta disso.
Outro aspecto que gerou grande interesse na plateia foi a discussão sobre a cidadania biológica, completando aspectos como afiliações, obrigações e direitos em termos de nossa biologia. Isso é uma constante atualmente. Temos uma transformação da forma passiva de direitos para uma nova relação entre a expertise biomédica, novos modos de governo de si mesmo (na pessoa dos pioneiros éticos) e, igualmente, novas forças de exclusão e de cidadania de grupos na formação de aparatos políticos, ciência e comércio.
Além da patologia
O redesenho dos indivíduos a partir do conhecimento científico foi um dos dados de grande repercussão abordados por Nikolas Rose. Hoje são realidade ambições antes impensadas como o “scan me”, o “decode me”, o “the book of me”, “personalise me”, o “know me” e outras prudências biológicas individualizadas. Trata-se de fantasias de controle e conhecimento, pontuou o pesquisador. Uma medicina personalizada, preditiva e preventiva continua a embalar os sonhos dos sujeitos de nosso tempo. Nesse sentido, é emblemático o caso da atriz hollywoodiana Angelina Jolie, que após descobrir que, por herança genética, teria grandes probabilidades de desenvolver câncer de mama, decidiu realizar uma dupla mastectomia. “Nossa vida está repleta de uma racionalidade biopolítica saturada pelas antecipações de futuro, como esperança, expectativa, desejo e ansiedade.”
Na segunda parte de sua exposição, Nikolas Rose discutiu como as mentes também se tornaram mecanismos, a exemplo dos corpos em nosso tempo. Primeiro eram os padres e poetas os engenheiros das almas, agora são os cientistas que ocupam tal posto, advertiu. Sinal disso é que a neurociência emerge com força total no começo do século XXI. O cérebro pode ser manipulado no nível molecular, e há uma proliferação de ciências de recorte “psi”: neuropsiquiatria, neurociência, neuropolítica, neurodireito, neuroeconomia, neuromarketing, neuroeducação, entre outras.
Ao final da conferência, Rose ponderou que estamos numa era em que podemos governar nosso corpo através do nosso cérebro. Retomou as três perguntas fundamentais de Kant, provocando a plateia: “O que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar?” Um novo pastorado para a administração de nossas capacidades, retomando Michel Foucault em Segurança, território, população?
Quem é Nikolas Rose?
Nikolas Rose é professor de Sociologia e diretor do Departamento de Ciências Sociais, Saúde e Medicina do King's College de Londres. É codiretor do Centro de Biologia Sintética e Inovação (CSynBI), uma importante colaboração de pesquisa entre o King's College e o Imperial College de Londres. Biólogo, psicólogo e sociólogo, cofundou duas influentes revistas radicais nos anos 1970 e 1980, desempenhando um papel fundamental na introdução do pensamento crítico pós-estruturalista francês para o público anglófono e ajudou a desenvolver novas abordagens para a análise e a estratégia políticas.
Publicou amplamente sobre vários campos e disciplinas, e sua obra foi traduzida para 13 idiomas. É ex-editor administrativo e coeditor-chefe da revista interdisciplinar BioSocieties. Seu último livro, escrito com Joelle Abi-Rached, intitula-se Neuro: The New Brain Sciences and the Management of Life (Princeton: University Press, 2013).
Nikolas Rose concedeu uma entrevista à revista IHU On-Line, sob o título "Biopolítica e complexidade – Da cidadania biológica à ética somática" que pode ser lida aqui.
Ele igualmente concedeu uma entrevista mais longa que será publicada na próxima edição da revista IHU On-Line.
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(Fotos: Julian Kober)
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Uma nova ontologia molecular da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU