Os invisíveis para a indústria farmacêutica

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09 Junho 2014

Elas são pouco comentadas ao redor do mundo, apesar de serem conhecidas há muito tempo. Elas causam um enorme sofrimento, mas passam quase que por invisíveis, tanto por se encontrarem presentes nos ambientes pobres das áreas rurais e favelas urbanas, quanto por afetarem populações consideradas irrelevantes – afetando profundamente física, sócio e economicamente a vida de mais de um bilhão de pessoas e, clamando entre essas, mais de meio milhão todos os anos.

A reportagem é de Vinicius Gomes, publicada pela Revista Fórum, 06-06-2014.

Por todas essas razões, elas foram classificadas como Doenças Tropicais Negligenciadas, ou apenas doenças negligenciadas. Existem 17 delas, com suas transmissões variando de bactérias, parasitas e infecções virais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), são 149 países e territórios onde elas são endêmicas. Algumas das doenças são transmitidas tanto por vetores (insetos), como a doença de Chagas, a malária, leishmaniose e a dengue, quanto de pessoa para pessoa, como tuberculose e hanseníase.

E é exatamente pelo fato de que os impactos dessas doenças, que afetam tantas pessoas e, ainda assim continuam tão ignoradas, que dá essas doenças – e seus pacientes – o status de “negligenciadas”; termo originalmente proposto na década de 1970 por um programa da Fundação Rockefeller como “The great neglected diseases”.

Segundo Lúcia Brum, médica brasileira e consultora em doenças emergentes pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF) no escritório do Rio de Janeiro, a principal razão para isso é a falta de investimento em pesquisa e desenvolvimento de drogas que poderiam melhorar a situações dos afetados: “As companhias farmacêuticas trabalham segundo a lógica de mercado, não pelos critérios da necessidade da população.”

Lutando pelos esquecidos

Lógica de mercado. Essa, de fato, parece competir contra as próprias doenças, pelo posto de grande “inimigo” das populações pobres que sofrem com as doenças negligenciadas.

Uma amostra sobre a “lógica de mercado” das companhias farmacêuticas pôde ser observado recentemente com a fala do executivo chefe da Bayer, Marijn Dekkers: “Nós não desenvolvemos este produto para o mercado indiano, sejamos honestos. Nós desenvolvemos este produto para os pacientes do Ocidente que podem pagar por ele”. O produto no caso era o Nexavar, para o tratamento de câncer avançado do rim e do fígado.

A terrível franqueza do executivo pode ser classificada como um dos raros relances de como realmente funciona o pensamento dessa indústria, que prefere desenvolver medicamentos para, por exemplo, obesidade, colesterol ou impotência, os quais possibilitarão retorno financeiro.

Considerando que as doenças negligenciadas são definidas como um conjunto de males associados à situação de pobreza, as precárias condições de vida e as iniquidades em saúde, a “lógica de mercado” simplesmente tende a desvalorizar todas essas pessoas por conta de não serem pacientes que poderiam pagar pelos produtos desenvolvidos pela indústria farmacêutica.

De acordo com Lucien Potet, conselheiro político para doenças negligenciadas da MSF, em Paris, “as regras para o financiamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D) não são adequadas para priorizar as doenças que afetam os pobres, precisamente pelo fato de essas companhias saberem muito bem que não serão capazes de vender seus produtos por um alto valor, assim sendo, os lucros serão limitados”.

Mesmo com o progresso científico ter gerado, nos últimos 30 anos, inúmeros avanços na área médica, contribuindo para um aumento substancial na expectativa e melhora de vida, essas doenças – que muitas vezes podem ser prevenidas, tratadas e curadas – e seus pacientes continuam “esquecidos”.

“Quase 90% do que se investe hoje na saúde em termos de desenvolvimento não é direcionado para doenças que matam meio milhão de pessoas ao ano, apenas 2% dos recursos que se investem vão para essas doenças. Que afetam uma a cada sete pessoas, alguma coisa está errada”, critica a doutora Brum.

Considerando esse cenário, foi criada a iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla em inglês). Quando a MSF foi laureada com o Prêmio Nobel da Paz, em 1999, ela destinou os recursos recebidos para o desenvolvimento de um modelo alternativo de P&D de novos medicamentos para tratar as doenças negligenciadas, o DNDi.

Arquitetada para reduzir os custos nesse desenvolvimento e garantir o acesso aos pacientes, o DNDi funciona como uma coalizão de sete instituições de diferentes países: a Fundação Oswaldo Cruz do Brasil, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica da Índia, o Instituto de Pesquisas Médicas do Quênia, o Ministério da Saúde da Malásia, Instituto Pasteur da França e a organização internacional dedicada à pesquisa – o Programa Especial para Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais (TDR), além da própria MSF.

Ela está sediada em Genebra, no entanto, a organização também está presente com escritórios regionais em quatro países que podem ser considerados como estando na linha de frente no combate às doenças negligenciadas: Quênia, Malásia, Índia e Brasil. Por sinal, estes dois últimos são aqueles que têm mais a contribuir com a melhora no quadro.

As quatro principais doenças negligenciadas (DNDi)

Segundo Potet, “existem muitos pacientes vivendo com as doenças tropicais negligenciadas no Brasil e na Índia. Ao mesmo tempo, esses países contam com uma forte capacidade farmacêutica e sólidas instituições de pesquisa. Eles deveriam priorizar mais pesquisas para essas doenças que afetam sua própria população”.

Ainda de acordo com ele, isso já está acontecendo, mas ainda assim é necessário um maior envolvimento dos respectivos governos: “Os pacientes vivem principalmente em áreas rurais com parcos recursos para sobrevivência, o que inclui diversos dos países mais pobres do mundo, mas também afetam comunidades em países com economias fortes, exatamente como o Brasil ou a Índia”.

Por uma melhora nas pesquisas e desenvolvimento

Além da criação da DNDi, da presença da MSF e de tantas outras instituições que trabalham no esforço para a conscientização dos governos para a necessidade urgente de combater e tratar as doenças negligenciadas, um envolvimento sério das companhias farmacêuticas para a pesquisa e desenvolvimento de produtos ainda é o maior desafio. Buscando alternativas que circundem a “lógica de mercado”, Lucien Potet sugere que é necessário se estabelecer novos mecanismos de financiamento a fim de atrair essas empresas a desenvolverem novos tratamentos para essas “doenças de pobres”.

“Premiações poderiam ser um bom instrumento”, argumenta Potet. “Basicamente, as empresas receberiam aquilo que chama de ‘preço fixado inalterável’ (algo em torno de dois milhões de dólares, por exemplo), se ela desenvolver novos tratamentos baratos e eficientes para uma doença negligenciada específica. As características dos produtos seriam definidas de antemão e o prêmio seria entregue à primeira companhia que desenvolvesse as drogas que fossem de encontro a essas características”. Em troca, a companhia se comprometeria a oferecer o tratamento a um preço baixo, anteriormente definido.

Além de tudo, o problema em não investir nas pesquisas é o risco do aumento da resistência dessas doenças que seriam mais difíceis de serem tratadas no futuro. “Muitas doenças negligenciadas, incluindo a doença de Chagas ou leishmaniose, são infecciosas e os tratamentos existentes ainda são antigos. Existe uma necessidade de desenvolvermos novas drogas para essas doenças com o intuito de se reduzir o risco de novas epidemias com patogenias resistentes”, afirma Potet.

Usando como exemplo a própria dificuldade dos profissionais de saúde que vão a esses lugares, Brum fala sobre como a “ciência falha”, dadas as dificuldades em termos de ferramentas para o diagnóstico e tratamento das comunidades afetadas: “Existe uma frustração enorme dos médicos, pois não “basta chegar”. Nós vamos ao terreno, que é o campo de trabalho e são locais de difícil acesso, se atravessa o mato, anda em lombo de jumento, chega-se lá e não se tem as ferramentas necessárias”.

As “ferramentas” podem ser traduzidas como a maioria dos diagnósticos e tratamentos disponíveis para doença do sono, leishmaniose visceral e doença de Chagas – por exemplo – serem antiquadas, devido à, novamente, falta de investimento em pesquisa e desenvolvimento, além da necessidade de um estafe treinado e um grande suporte logístico.

Pacientes e família negligenciadas

Dez anos depois dessa estatística, a indústria farmacêutica continua destinando apenas 2% de seus investimentos para as doenças que afetam a vida de mais de 1 bilhão de pessoas (DNDi)
A doutora Brum já realizou projetos e trabalhos de treinamento no México e na Bolívia pela organização para o combate à doença de Chagas, uma vez que o Brasil é um pioneiro em pesquisas de doenças tropicais.

No entanto, de acordo com Brum, o Brasil ainda tem uma estimativa de um milhão a dois milhões de infectados – sendo a região Amazônica o maior foco de concentração da doença no Brasil, principalmente pela infecção por alimentos contaminados, como caldo de cana e açaí: nesses casos, os insetos são moídos juntamente com os alimentos e são ingeridos.

Outro ponto levantado pela doutora Brum é a questão do impacto que a medicina define como “Biopsciosocioambiental”, que é a relação das implicações psicológicas, sociais e culturais que a doença causa com todos os afetados, não só os pacientes, mas também suas famílias: “As doenças negligenciadas, por afetarem populações vulneráveis, causam uma série de impactos que vão além apenas do paciente em si, toda a família acaba se tornando vítima também”.

Para Potet, isso resulta em um aprofundamento da pobreza em que essas famílias já vivem, que afetam desde a criança que, uma vez contaminada, não consegue marcar presença regular nas escolas, até os adultos, que não conseguem trabalhar e assim continuar a gerar renda para a casa.

Como maneira de reforçar o coro das organizações e instituições que pedem maior atenção às doenças negligenciadas, criou-se, em Olinda (PE), a Federação Internacional das Pessoas de Doenças de Chagas. O grande objetivo também é dar voz a quem realmente interessa esse combate, os pacientes e suas famílias.

“Existe um ciclo de silêncio que precisa ser quebrado em relação a essas doenças e para isso a mobilização dos pacientes é fundamental, pois durante muito tempo médicos e organizações falaram por eles. Com a federação eles podem ter uma voz própria”, resumiu o boliviano Manuel Gutierrez, que descobriu estar infectado somente após o nascimento de seu primeiro filho.

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