Conhecendo a ESMA, o maior centro argentino de tortura e extermínio

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Por: Jonas | 04 Abril 2013

Caminhar pelas ruas de Buenos Aires implica encontrar-se, de imediato, com centenas de tijolos que procuram render uma simples homenagem às vítimas da ditadura militar. Aí, em tal lugar, vivia alguém que sequestraram, botaram no bagageiro de um carro e que se afundou para sempre num poço de silêncio. Tudo isso ocorreu ontem, como aquele que diz, entre 1976 e 1983. Um pouco que alguém afine os ouvidos, acabará escutando alguém que conta como foi a noite em que chegou a patota – o grupo de capangas – em certa rua e levou beltrano, enquanto o medo paralisava todos os vizinhos. A maior parte dessas pessoas foi levada para a ESMA, a Escola Mecânica da Armada. Por isso é quase uma obrigação moral visitá-la.

O relato é de Francisco Peregil, publicado no jornal El País, 02-04-2013. A tradução é do Cepat.

No entanto, que ninguém pense em aparecer ali de repente, como fez um servidor há sete anos, e para completar, num dia festivo. Existem visitas acompanhadas gratuitas, mas é necessário ligar antes (00-54-11-4704-7538, de fora da Argentina) ou solicitar a vez por meio do correio eletrônico (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.). Cuidado com as expectativas, porque não se vê nada nesse poço. Não é um parque temático.

Descreve-se como eram os capuzes, mas não se vê um único capuz, nem picana, nem bala de canhão como as que faziam os presos carregarem. E, no entanto, centenas de histórias continuam irrompendo do poço sinistro. Por exemplo, a senadora da oposição socialista argentina, Norma Morandini, não soube até o último dia 9 de dezembro, depois de 35 anos, se os seus dois irmãos, Néstor e Cristina, provavelmente foram vistos ali pela última vez. Muitos títulos de jornais apontam para a ESMA e a continuarão apontando durante muito tempo. Centenas de ruas conduzem para esse lugar. Desta forma, vou contar sobre o que encontrei no sábado, dia 30 de março, às 11h00s, numa visita guiada de duas horas.

A primeira coisa que surpreende é a pequenez. Era o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura militar argentina. De fora, na Rua Libertador, parece ser o que realmente é: um prédio tão grande como 17 campos de futebol, com mais de uma dúzia de edifícios. Entretanto, o lugar no qual se escondia as vítimas era apenas um edifício ao fundo e à esquerda. O “Casino de los Oficiales”. Esse foi o autêntico poço.

Ao chegar, na espera, pode-se distrair com um folheto editado pelo “Espaço Memória e Direitos Humanos”, o organismo que administra a ex-ESMA, onde você é informado sobre os pormenores do terceiro julgamento da grande causa da ESMA. Muito brevemente: uma vez concluídos os processos de 2007 e 2001, no último mês de novembro começou o terceiro.

Ao longo de dois anos, serão indicadas 900 testemunhas e 68 acusados por 789 delitos, entre os quais estão incluídos os famosos voos da morte, em que os detidos eram jogados no rio da Prata, ou no mar, nus, com pé e mãos amarrados, encapuzados e sedados.

A mesma revista recorda também que durante a ditadura foram roubadas cerca de 500 crianças. Destas, já foram “encontradas” 108. As provas genéticas determinaram que estas são filhos de presos da ditadura. Na ESMA, num cubículo situado no segundo piso do casino dos oficiais, nasceram ao menos umas 30 crianças.

Na contracapa da revista pode-se ler um artigo do juiz Baltasar Garzón, com palavras quase idênticas ao discurso que pronunciou na terça-feira, 27 de novembro de 2012, em sua visita à sede da organização Túpac Amaru, em San Salvador de Jujuy:

“A Argentina é minha segunda pátria, meu segundo lar; durante muitos anos estive muito próximo deste país por meio das investigações que, desde 1996, realizei para investigar os crimes, o genocídio, o terrorismo de Estado, as torturas e os delitos de lesa-humanidade que neste país, durante esse período nefasto da ditadura, entre os anos de 1976 e 1983, se levou não apenas vida e a liberdade de muitas pessoas, mas as ilusões de toda uma geração em construir um país diferente”.

“Hoje, a Argentina é um exemplo para o mundo, para mim, sem dúvidas, está na frente, na cabeça para liderar o movimento de Direitos Humanos” (...).

“Há uma data neste país que também é muito importante. O ano de 2003 é chave nesta reivindicação da justiça frente ao desvario daqueles que atacaram a sociedade que tinham que defender. Um político, Néstor Kirchner, nesse momento histórico, entre a opção de não fazer nada e seguir adiante, como tantos outros, alçou sua voz para gritar: “basta de impunidade”, “basta de tanto esquecimento e negação” e concedeu a voz e a palavra à Justiça. Esse dia mudou o curso da história neste país”.

“Agradeço a Argentina por me acolher com tanto carinho (...). Eu estarei aqui, sempre que puder estarei aqui, e vou apoiar os movimentos de Direitos Humanos” (...).

Meu companheiro Jorge Marirrodriga, antigo correspondente do jornal “El País” em Buenos Aires, conta-me como correram as lágrimas em Garzón, no dia em que visitou pela primeira vez a ESMA, em agosto de 2005. Naquele dia, a senadora Cristina Fernández acompanhava Garzón em seu percurso. Jorge narrou a visita nesta crônica.

Iniciemos a visita propriamente dita. O guia explica que há cerca de 200 testemunhos de pessoas que passaram pela ESMA e se estima que ali desapareceram cerca de 5.000 pessoas. No início, havia apenas uns 12 comandos encarregados de realizar essa operação clandestina. E em poucos meses a quantidade cresceu de forma notável. O guia convida o público, uma vintena de pessoas, para que expliquem a razão pela qual vieram e para que debatam abertamente. E pergunta:

“Quais critérios vocês acreditam que os militares usaram na hora de prender as vítimas?”

Ele mesmo explica que nessa época tinham militares de organizações que buscavam provocar uma “mudança profunda” na sociedade. Não explica que algumas dessas formações eram armadas. Uma das visitantes aponta que quando começou a ditadura essas organizações, na realidade, já tinham sido vencidas, sua força era insignificante.

“Isso é um tema de debate”, esclarece o guia.

“De qualquer modo – acrescenta a mulher – não havia paridade de forças entre o Estado e essas organizações. A missão do Estado é a de proteger os cidadãos, nãos de sequestrá-los e matá-los”.

O guia concorda. Nós, visitantes, apenas pisamos numa rua da ESMA, a que dá para fora, a mais visível. Essa era a que os carros, que levavam as vítimas dentro, percorriam. Na metade da rua, uma corda de barco para deter os carros. Um reduzido grupo de pessoas podia ter acesso ao Casino. Era vedado para o resto do pessoal que trabalhava ou estudava na ESMA. O guia convida para que as pessoas façam perguntas:

Por que se chama Escola Mecânica?

“As pessoas que aqui estudavam eram, principalmente, marinheiros que exerciam trabalhos de mecânica nos barcos”.

Esses estudantes sabiam o que acontecia aqui?

“Não consta que eles soubessem. De qualquer modo, não temos depoimentos deles”.

Foi aqui que começaram a usar, pela primeira vez, as picanas elétricas, como material de tortura?

“Não. Elas já vinham sendo usadas nas diferentes ditaduras que a Argentina sofreu no século XX”.

Como se sabe que são 5.000 pessoas que passaram neste lugar?

“Não se sabe exatamente. Alguns dos que aqui estiveram como trabalhadores escravos, deram bons testemunhos, pois contaram com a melhor informação. Eles calculam que, em fins de 1978, existiam ao menos 4.500 documentos correspondentes a cada uma das vítimas. Porém, a maioria dos presos estava encapuzada, não sabia em que lugar se encontrava. Quando eram sequestrados próximo da ESMA, os carros rodavam mais do que o necessário pela cidade para despistá-los. Para cada pessoa era designado um número de 0 a 999. E, em seguida, voltavam a designar o mesmo número para outros. Depois, houve quem conheceu presos que tinham o seu mesmo número. De acordo com essa estimativa, calcula-se que ao menos 3.000 pessoas passaram”.

O guia comenta que o “Casino de oficiales” também funcionava como alojamento para eles. Viviam neste lugar, enquanto pessoas eram sequestradas e torturadas. No Casino é proibido tirar fotos. É um lugar ainda submetido a provas judiciais. No sótão ficava o centro de torturas. Quando se entra, não se vê nada. Painéis explicativos, com planos da sala, mostram como o seu desenho foi mudando ao longo dos anos. Na realidade, tudo era muito primário: cubículos divididos por madeira de material aglomerado, facilmente desmontáveis.

Em setembro de 1979, chegaram vários membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Puderam encontrar pouca coisa. Os marinheiros tinham transferido muitos presos para uma ilha cedida pela Igreja católica. Ficava no bairro bonaerense do Tigre e se chama “El Silencio”, assim como era. A escada que levava para o sótão foi ofuscada e os cubículos desmontados. Como se nunca tivesse ocorrido nada ali.

Acima, no segundo piso, está a área dos capuzes, onde colocavam as vítimas prostradas, encapuzadas, sem poder falar entre eles, ouvindo apenas os gritos das moradias dos arredores e a música da rádio que os marinheiros procuravam manter ligada por 24 horas. É claro, todas as janelas estavam ofuscadas, não havia luz exterior. Na outra ala, desse segundo piso, ficava a chamada “Pecera”, o lugar em que, como se fosse uma redação de jornais, vários preso-escravos elaboravam relatórios de imprensa que pudessem servir para fins políticos do comandante Emilio Eduardo Massera. Entre as duas alas, o cubículo das gestantes. E no saguão de cima, a área chamada “Capuchitas”, onde se perpetravam as mesmas depravações que no segundo piso, mas com temperaturas extremas. Tudo isso, facilmente desmontável.

Apenas o empenho e a dedicação de muita gente, entre os quais sem dúvida se destacam Néstor Kirchner e Cristina Fernández, conseguiu recompor o que um dia foi algo quase insondável.

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