"Apostou todas as fichas no lugar errado". Entrevista com José Oscar Beozzo

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04 Março 2013

"Dei entrevista por telefone para o reporter Fabiano Maisonnnave que saiu publicada na Folha de domingo, dia 02 de março, no caderno A 16. Revisei-a antes de ir para o editor. Este fez cortes, o que é normal num jornal. Um dos cortes porém, tornou o texto contraditório e incompreensível", escreve José Oscar Beozzo, coordenador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular e autor de livros e artigos sobre a história da igreja no Brasil e na América Latina, à ombudsman do jornal Folha de S. Paulo.

Ao enviar a íntegra da entrevista, Beozzo afirma que "o jornal truncou o texto e por isto envio em anexo a entrevista completa. Prefiro que seja este o texto divulgado".

Eis a entrevista.

O que se pode dizer sobre o provável perfil do novo papa?

Essa renúncia de Bento XVI mexeu profundamente com a igreja toda, com o inusitado do seu gesto. De certa forma, ele fechou o arco de um movimento iniciado no Concílio Vaticano II. O Concílio, de maneira muito sábia estabeleceu um limite de idade para os bispos e os párocos: 75 anos. Depois disto deveriam entregar espontaneamente seus ofícios ou serem solicitados a fazê-lo pela competente autoridade.

Paulo VI aplicou em 1970 essa mesma norma aos Cardeais da Cúria Romana. Deveriam entregar sua carta de demissão aos 75 anos. Aos 80 anos perderiam também seu direito de eleger o próximo papa.
Bento XVI, com sua renúncia apontou com toda clareza que a sábia norma conciliar devia ser tomada em conta também pelo Papa. Aplicou-a a si próprio e abriu caminho para que seja tomada em consideração pelos futuros papas.

Creio que os cardeais serão muito cautelosos em sua escolha no próximo conclave.  Depois de João XXIII, eleito com quase 80 anos de idade, escolheram um sucessor, Paulo VI, com 65 anos. Depois que Albino Luciani (João Paulo I) morreu com apenas um mês de papado, elegeram um papa bem jovem, para evitar um novo conclave em tão curto espaço de tempo: Karol Wojtyla, escolhido aos 58 anos.

E é sempre essa oscilação. É muito complicado um longo pontificado porque, a partir de certo momento, começa a declinar irremediavelmente. A pessoa vai perdendo força, capacidade de atuar e trabalhar e a Cúria romana passa a governar. A tendência, depois de um pontificado muito longo, é escolher um cardeal de mais idade, para se ter um pontificado breve.

Quando se tem um pontificado breve, surge a tendência inversa ou um meio termo. Vai-se  procurar candidato nem tão jovem mas também não de tanta idade. Eu tenho a impressão de que o papa vai ser escolhido entre cardeais perto dos 70 anos de idade mas não mais do que isso, por causa do breve pontificado e da renúncia de Bento XVI.

O Brasil tem cinco cardeais, menos do que os Estados Unidos, por exemplo. Por quê?

Os Estados Unidos, um país com menos da metade dos católicos do Brasil têm 11 cardeais. Acho que foi uma política de Bento XVI. Ele fez muitos cardeais na Europa e na Cúria ou nos países do norte do mundo: Estados Unidos e Canadá. Houve até uma reação após o consistório de fevereiro de 2012, quando ele criou 22 cardeais, quatro dos quais com idade superior a 80 anos. Dos 18 restantes, 8 eram arcebispos residenciais com responsabilidades pastorais, mas dez eram da Cúria. De fora da Europa, foram criados apenas três, um nos Estados Unidos e dois na Ásia. Nenhum, porém, na América Latina e nenhum na África. Juntos esses dois continentes abrigam quase 60% dos católicos.  Houve críticas generalizadas.

Nove meses depois, em novembro,, inopinadamente, Bento XVI criou seis novos cardeais: nas Filipinas, na Índia, na Nigéria, no Líbano, na Colômbia...  Foi uma espécie de remendo na escolha anterior, que havia sim contemplado um brasileiro, mas como cardeal de Cúria: Dom João Braz de Aviz, nomeado para a Congregação dos Institutos de Vida Consagrada e de Vida Apostólica.

Três quartos dos fieis da igreja católica encontram-se hoje  fora da Europa. Não há muito cabimento ter mais da metade dos cardeais eleitores na Europa, quando a Europa representa hoje apenas uns 23% dos católicos de todo o mundo. Há neste sentido, uma sobre-representação europeia no Colégio cardinalício e uma sub-sub-subrepresentação da América Latina. E os Estados Unidos e  Canadá juntos com 16 cardeais, rivalizam com toda a América Latina, que conta com 19 cardeais eleitores. Está tudo muito desequilibrado.

Claro que houve uma internacionalização grande iniciada nos conclaves do século passado. No primeiro [do século XX], não estava presente nenhum cardeal de fora da Europa, porque com a regra de 10 a 15 dias para se iniciar o conclave, navios saindo dos Estados Unidos e da Austrália não chegavam a tempo à Itália. Tampouco saindo-se do Brasil ou de qualquer outro país da América. Só em 1939 é que chegam os estrangeiros de fora da Europa, pois aí já era possível valer-se do avião.

Então hoje, ter metade de fora da Europa é alguma coisa. Mas,,nesse meio tempo, houve mudanças tão espetaculares na demografia e na distribuição geográfica do catolicismo. No começo do século XX, a Europa detinha 73% dos católicos, hoje tem 23%. A África contava com menos de 1% dos católicos e hoje cerca de 14%; a América Latina, 44%. Foi uma inversão total, mas não houve essa inversão na representatividade dentro do colégio cardinalício que se deve reconhecer foi muito internacionalizado pois há cardeais de mais de 70 países no conjunto do colégio, incluindo eleitores e não eleitores..

Por que Bento XVI reforçou o eurocentrismo?

Porque sua experiência é estritamente europeia. Ele viu como o grande desafio do seu pontificado recristianizar a Europa. Apostou todas as fichas no lugar errado, a meu ver. A Europa entrou num declínio demográfico impressionante. Está com uma população envelhecida, que decresce em vários países. Noutros, é apenas a imigração e os filhos dessas famílias que mascaram o colapso demográfico. Quando se em uma população envelhecida, não se sonha muito com o futuro. A Igreja na Europa e a Igreja na África , vivem dois mundos completamente diferentes. Uma está ancorada no passada e a outra projetada para o futuro.

Mais da metade dos cardeais com direito a voto foram escolhidos por Bento XVI. O sr. vê a possibilidade de que um colégio tão europeizado e indicado por ele consiga chegar à conclusão de que é preciso deseuropeizar?


Depende muito da conversa entre os cardeais nos próximos dias e de todo o amplo debate, em escala mundial que a renúncia de Bento XVI desencadeou. Chegam agora para os nove dias de reuniões que precedem o conclave um cardeal vindo de Hong Kong, na China, outro das Filipinas, outro do Vietnã e outros da Índia (são cinco) Eles vão falar da realidade no continente asiático. Cardeais da África, vão apresentar a realidade daquele continente.

A situação da igreja no mundo vai ser desenhada a partir das falas de quem está vivendo em cada um desses lugares com responsabilidades pastorais muito diretas. Haverá também a fala dos europeus e dos cardeais da Cúria, mas ao lado da fala dos outros continentes. Trata-se de um momento rico nesse sentido, pois se sairá dum discurso monocórdico ditado pelo centro da Igreja. Quem vai dar as cartas não será apenas a Cúria Romana. Aliás, ela está toda decapitada na sua direção mais alta, pois, quando o papa renuncia ou falece, todos os cargos cessam, e o novo papa tem mãos livres para compor o seu quadro de auxiliares mais diretos.

Como são as discussões para a escolha do papa?

Os cardeais têm a obrigação de se reunir para fazer o levantamento do estado da igreja, em princípio durante nove dias: são as “novendiales”. Depois, é preciso fazer uma síntese disso. E, diante dessa síntese, se discute qual é o perfil da pessoa que seria mais indicada para fazer face aos desafios levantados.

E as perguntas surgirão: Necessita a Igreja de um pastor ou de um diplomata, de um teólogo ou de um administrador, ou ousadamente de um profeta? A urgência é responder aos desafios da África ou da Ásia, continentes em que a Igreja mais cresce ou da América Latina, onde ela é mais numerosa? Nesse momento, pode-se chegar ao perfil de um não europeu. Aqueles que são apontados como candidatíssimos a papa, podem ter seus nomes descartados, por conta dessa reflexão em comum.

Pouco adianta, no momento atual, dizer: “É esse ou aquele nome o favorito”. Enquanto não se estabelecer esse quadro da igreja, não se definirem as prioridades e não se traçar o perfil do próximo papa, faz-se uma especulação sem grande fundamento. Uma pessoa que não se encaixe no perfil traçado ao final das discussões e reflexões, embora bom candidato, pode ver sua candidatura não prosperar.

O estado da Igreja e o perfil mais adequado para enfrentar os desafios levantados, vão surgir da discussão entre todos os cardeais, inclusive com o concurso daqueles que não vão participar do conclave, ou seja os cardeais com mais de 80 anos. Há 110 cardeais que não podem ir ao conclave, mas, irão participar se quiserem e puderem das “novendiales”.

Bento XVI preparou um sucessor, o arcebispo de Milão, Angelo Scola...

O papa Bento XVI emitiu sinais em relação ao Cardeal Scola. Três papas do século passado saíram de Veneza, que não é uma sede qualquer e sim uma sede prestigiosa, cujo titular leva o título de Patriarca. De Veneza saíram três papas no século XX: Pio X (1903-1914), João XXIII (1958-1963) e João Paulo I (1978). Bento XVI decidiu transferir Scola de Veneza para Milão, de onde saíram o papa Pio XI (1922-1939) e também Paulo VI (1963-1978) Tirar Scola de Veneza - que é meio fim de carreira, como o posto de um marechal no Exército - e colocá-lo em Milão, pra bom entendedor da política interna... significa uma sinalização. Havia mais de 400 bispos na Itália, dentre os quais o Papa podia escolher livremente um para ser colocado em Milão. Ele escolheu alguém que aparentemente não deveria ser removido, por estar num lugar tão prestigioso, quanto Veneza.

Outra possível sinalização foi a escolha de um dos cardeais eleitores, Gianfranco Ravasi, para pregar seu último retiro como papa!

Mas podemos também nos voltar para a história, para extrair elementos de reflexão e discernimento: Leão XIII falou abertamente para todos os cardeais acerca de quem ele gostaria que fosse seu sucessor e o indicado não foi o escolhido. Depois dele, Pio X apostou no cardeal Gotti, mas ele também não foi eleito. João XXIII apostou no Cardeal Montini e este foi o escolhido, para ser o Papa Paulo VI, em que pese toda a oposição da Cúria Romana.  Então, o papa pode dar o seu pitaco, mas não significa que os cardeais necessariamente seguirão sua opinião ou sugestão.

Com a renúncia, Bento XVI está enfraquecido ou fortalecido para a escolha do seu sucessor?

Ele nomeou 77 cardeais, mais da metade dos que votarão, escolheu mais da metade do time que entrará em campo. Há poder maior do que esse? Por outro lado, com a renúncia, ele vai se recolher em copas. Não tem sentido ele ter renunciado e buscar agora influenciar diretamente no conclave. Ele mostrou humildade com seu gesto e grandeza humana e espiritual.

O ter-se recolhido a Castel Gandoldo é um bom indício dessa atitude de maior discrição. Vai ficar longe do Vaticano, onde irão se desenrolar as reuniões dos cardeais e depois o conclave.

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