A oração nos transfigura

Foto: Cathopic

11 Março 2022

 

“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência...” (Lc 9,29)

 

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo de Quaresma, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Lucas 9,28-36.

 

Eis o texto.

 

Para viver com mais intensidade o caminho quaresmal, a liturgia deste domingo nos apresenta o relato evangélico que nos dá uma luz para continuar avançando bem orientados. Caminhamos para a vida, para a essência de nosso ser, para a comunhão com tudo e com todos. Precisamos, de tempos em tempos, de um “Tabor”, como parada estratégica, para “sentir e saborear” a presença próxima e amorosa de Deus Pai que nos transforma, nos transfigura e deixa ressoar em nós sua instigante voz: “este(a) é o(a) meu(minha) filho(a), o(a) Eleito(a)”.

 

Voz que nos desperta e nos faz tomar consciência de que há possibilidade de “ir mais além”, ao essencial de nosso ser. A experiência da Tabor nos arranca do caminho rotineiro e nos abre para um horizonte maior. Podemos reconhecer que a nós também nos foi dado o “gene” da transfiguração, que é força que nos move continuamente a não nos deixar determinar pela nossa autoimagem, pela aparência, e sim, centrar nosso olhar n’Aquele que é pura transparência do Pai.

 

Trata-se de eleger entre continuar cuidando do exterior (as roupagens, os aplausos momentâneos, a presença nas redes sociais, o número de seguidores que temos...) ou cuidar dessa outra “dimensão” que nos conduz ao mais profundo, que nos tira do caminho estreito e repetitivo para nos fazer descobrir Aquela presença que nos transfigura e transfigura a realidade de nosso entorno.

 

O relato da “transfiguração” de Jesus se situa expressamente em um contexto de oração. É ali onde, através da luminosidade do seu rosto, Ele deixa transparecer algo da sua verdadeira identidade.

 

Por isso, na transfiguração, a humanidade de Jesus se revela como pura transparência do Pai. Ou seja, o que há de divino em Jesus está em sua humanidade. Só no humano transparece Deus.

 

A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos nós. Ela nos revela também nossa identidade e nos faz caminhar em direção à nossa própria humanidade.

 

Por isso, uma pessoa transfigurada é uma pessoa profundamente humana. Tudo o que é autenticamente humano é transparência de Deus. Em outras palavras, a vivência do humano nos diviniza.

 

A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Transfigurar é descentrar-se e expandir-se na direção do outro.

 

A Transfiguração nos possibilita cultivar um “olhar” que sabe ver em profundidade, descobrindo em cada ser humano, para além de suas aparências, um ser transfigurado, porque somos capazes de vê-lo em sua beleza e bondade originais; um olhar que sabe se deixar impactar por tudo aquilo que nos cerca e é capaz de ficar assombrado diante do Mistério.

 

O Tabor não só é o lugar do encontro íntimo com o Senhor; implica também o encontro com o melhor de nós mesmos (nossa identidade); a Montanha nos “transfigura”, revelando nosso ser essencial; no silêncio do monte poderemos perceber nosso verdadeiro rosto, iluminado por Aquele que se deixa “transparecer” em tudo. “O evangelho é um itinerário para abrir com profundidade a interioridade humana” (Rovira Belloso) e nele vemos como Jesus promove o retorno ao interior; o mistério da transfiguração nos des-vela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” em nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.

 

Transparente é um modo de ser; a transparência faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus.

 

A experiência orante no alto do “Tabor” é o meio privilegiado para voltarmos a mergulhar continuamente nessa Luz de onde procedemos. Entramos na corrente universal, até a Vida de Deus. Orar é deixar-nos conduzir até às profundidades trinitárias onde Deus nos forma e nos configura à sua imagem. Não devemos ficar surpreendidos se, interiormente, sentirmos uma plenitude de alegria e de superabundância.

 

A oração ajuda a evangelizar até as profundidades do nosso ser. Ela é o caminho interior do Tabor que nos faz chegar até nosso próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de nós mesmos, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.

 

Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser. Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos originais, riquezas, capacidades, intuições... E nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis...

 

Assim, a divina pedagogia evoca a verdade do ser humano, comporta uma provocação, uma proposta que o move a potencializar ao máximo seus recursos internos, revelando aquilo que ele é capaz...

 

Deixar-se “iluminar” pela Luz do Tabor significa uma autêntica experiência e que tem efeitos explosivos: é novidade que surpreende e às vezes assusta, cria novas expectativas e solicitações, traz clareza e mobilização, pede a mudança dos costumes e dos velhos estilos de vida, leva adiante o equilíbrio da pessoa em direção a horizontes imprevisíveis, abre uma nova fase de vida...

 

Situados no alto do nosso Tabor, atingiremos experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconheceremos, através do murmúrio dos ventos, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que darão sentido e consistência ao nosso viver.

 

A subida ao Tabor nos potencia, libera energias e recursos escondidos, torna-nos criativos, coloca-nos em movimento, tirando-nos de nossa acomodação...

 

“Subir” o Tabor é deixar-nos conduzir pela presença do Espírito de Jesus, para “descer” com mais vigor e ânimo ao vale do cotidiano e ao compromisso na prática do bem e da justiça.

 

Tabor significa sair de nosso pequeno e limitado mundo cotidiano, de nossa visão estreita das coisas, da vida corriqueira do vale...; significa alargar nossa visão da realidade, abrir novos horizontes...

 

Por isso, a transfiguração no Tabor implica ter “mais portas e janelas” em nossa vida interior.

 

O Monte Tabor nos oferece janelas que permitem ampliar nossa visão. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando fechados em nós mesmos. As janelas nos situam em comunhão com a natureza e com a humanidade. Elas revelam aos outros algo original que é só nosso; elas apontam para a porta que se abre, para que os outros se aproximem e entrem em nossa vida.

 

O mergulho em nós mesmos, para além de nós mesmos, realiza a metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica.

 


Para meditar na oração:

 

Para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade. É no mais profundo de sua interioridade que você escutará o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.

 

- Só há um caminho para ter acesso ao Tabor: procure entrar em seu espaço interior; investigue e examine suas raízes nos recantos mais profundos de seu coração; sinta-se convidado(a) a despojar-se de suas medidas de segurança, a desnudar-se de todos os personagens e máscaras.

 

- Extraia de dentro de si uma resposta profunda, um sentido novo, uma esperança ousada...

 

- Construa sua vida de acordo com esta descoberta.

 

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