01 Agosto 2025
"Reconhecer essa verdade não é fácil. Nem mesmo para nós, que documentamos a violência estatal contra os palestinos há anos. Nossas mentes resistem, rejeitam os fatos como se fossem veneno, tentam expeli-los. Mas o veneno continua lá. Ele inunda de medo e de uma incomensurável sensação de perda o corpo daqueles que vivem entre o rio e o mar, tanto palestinos quanto israelenses."
O artigo é de Yuli Novak, diretora executiva da organização B'Tselem, o Centro de Informação Israelense para os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, publicado por El Salto, 31-07-2025. A tradução é de Francisco de Zárate.
A pergunta não para de martelar na minha cabeça. Isso que está acontecendo é mesmo verdade? Estamos vivendo um genocídio?
Em outros países, milhões de pessoas já sabem a resposta. Mas aqui em Israel, muitos de nós não podemos ou não queremos dizê-la em voz alta. Talvez porque a verdade ameace desmoronar todas as nossas crenças sobre quem somos e quem queríamos ser. Dizer isso é admitir que, no futuro, teremos que prestar contas, não apenas nossos líderes, mas nós mesmos. No entanto, o custo de se recusar a enxergar é ainda maior.
Para os israelenses da minha geração, a palavra "genocídio" ainda era um pesadelo de outro planeta. Uma palavra que associávamos às fotografias de nossos avós e ao fantasma dos guetos europeus, mas não aos nossos próprios bairros. Éramos nós que, à distância, nos perguntávamos sobre os outros: como as pessoas comuns puderam seguir com suas vidas enquanto algo assim acontecia? Como puderam permitir que acontecesse? O que eu teria feito no lugar delas?
Em uma reviravolta grotesca da história, a pergunta agora se voltou para nós.
Há quase dois anos, ouvimos as autoridades israelenses, tanto políticos quanto generais, dizendo em voz alta o que pretendiam fazer: matar de fome, arrasar e apagar Gaza. "Nós os eliminaremos". "Tornaremos o local inabitável". "Cortaremos o fornecimento de alimentos, água e eletricidade". Não foram lapsos, mas um plano. E o Exército israelense o executou. A definição de genocídio é exatamente essa: atacar deliberadamente uma população, não pelo que são como indivíduos, mas por pertencerem a um grupo, um ataque destinado a destruir o próprio grupo.
Para sobreviver ao horror, contamos a nós mesmos outras histórias. Histórias que mantêm a culpa e a dor à distância. Nos convencemos de que todas as crianças em Gaza são do Hamas e de que todos os apartamentos são células terroristas. Sem perceber, nos tornamos aquelas "pessoas comuns" que continuam vivendo suas vidas enquanto "aquilo" está acontecendo.
Lembro da primeira vez que a verdade sobre o que estava acontecendo me atingiu. Dois meses depois do que eu ainda chamava de "guerra", três dos meus colegas palestinos da B'Tselem ficaram presos em Gaza com suas famílias. Trabalhávamos com eles há anos como defensores dos direitos humanos. Eles me falaram de parentes sepultados sob os escombros, de não poder proteger seus filhos, de um medo paralisante.
Nas tentativas frenéticas de tirá-los de Gaza, aprendi algo que ficou gravado em mim: naquele momento, um palestino vivo em Gaza podia ser "resgatado" por cerca de 20.000 shekels. O resgate de crianças custava menos. A vida era avaliada em dinheiro, por pessoa. Não estamos falando de estatísticas abstratas, mas de pessoas que eu conhecia. Foi então que entendi: as regras tinham mudado.
Desde então, o surreal se tornou rotina. Cidades reduzidas a cinzas. Bairros inteiros arrasados. Famílias forçadas a se deslocar, repetidamente. Dezenas de milhares de mortos. Fome em massa provocada, caminhões de ajuda rejeitados ou bombardeados. Pais que alimentam seus filhos com ração animal, filhos que morrem enquanto esperam a farinha chegar. Pessoas baleadas, civis desarmados mortos por se aproximarem de comboios de alimentos.
O genocídio não acontece sem uma imensa participação: uma população que o apoia, permite ou desvia o olhar. Isso é parte da sua tragédia. Quase nenhuma nação que cometeu genocídio compreendeu o que estava fazendo no momento em que o fazia. A justificativa é sempre a mesma: autodefesa, inevitabilidade, as vítimas mereceram.
Em Israel, a narrativa predominante insiste em fixar o início de tudo no massacre de civis cometido em 7 de outubro pelo Hamas no sul. Aquele dia foi um verdadeiro horror, uma explosão grotesca de crueldade humana: civis assassinados, violentados, sequestrados. Um trauma nacional generalizado que, em muitos israelenses, despertou uma profunda sensação de risco existencial.
O que aconteceu em 7 de outubro foi uma força catalisadora do que está acontecendo, mas não a única. Um genocídio requer décadas de apartheid e de ocupação, de separação e de desumanização, de políticas projetadas para cercear nossa capacidade de empatia. Isolada do mundo, Gaza havia se tornado o ápice de tudo isso. Em nossa imaginação, seus habitantes se transformaram em abstrações, reféns perpétuos, sujeitos a bombardeios a cada poucos anos, que morriam às centenas ou aos milhares sem que tivéssemos que prestar contas por isso.
Sabíamos que mais de dois milhões de pessoas viviam sitiadas. Sabíamos do Hamas. Sabíamos dos túneis. Em retrospectiva, sabíamos de tudo. Mas de alguma forma fomos incapazes de imaginar que alguns deles poderiam encontrar uma maneira de explodir.
O que aconteceu em 7 de outubro não foi apenas uma falha militar. Foi o colapso do que imaginávamos como sociedade: a ilusão de que podíamos trancar toda a violência e desespero do outro lado de uma cerca e viver em paz do nosso lado. Esse colapso veio sob o governo mais ultradireitista da história de Israel, uma coalizão com ministros que fantasiam abertamente sobre o desaparecimento de Gaza. Foi assim que, em outubro de 2023, todas as estrelas se alinharam para o nosso pior pesadelo.
Nesta semana, a B'Tselem publicou o relatório Nosso Genocídio, elaborado em conjunto por pesquisadores palestinos e judeus de Israel. Ele é composto por duas partes. A primeira documenta como o genocídio está sendo executado: assassinatos em massa, destruição das condições materiais para a vida, colapso social e fome provocada, tudo isso incitado por líderes israelenses e amplificado pela mídia. A segunda parte explica o caminho que levou até aqui: décadas de desigualdade sistêmica, de governo militar e de políticas de separação que normalizaram a ideia de que os palestinos são descartáveis.
Para enfrentar o genocídio, o primeiro passo é entendê-lo. Para isso, nós, judeus israelenses e palestinos, tivemos que olhar juntos para a realidade a partir da perspectiva dos seres humanos que vivem nesta terra. Nossa responsabilidade histórica e política também consiste em dirigir o olhar para os perpetradores e dar testemunho em tempo real da evolução de uma sociedade até se tornar capaz de cometer um genocídio.
Reconhecer essa verdade não é fácil. Nem mesmo para nós, que documentamos a violência estatal contra os palestinos há anos. Nossas mentes resistem, rejeitam os fatos como se fossem veneno, tentam expeli-los. Mas o veneno continua lá. Ele inunda de medo e de uma incomensurável sensação de perda o corpo daqueles que vivem entre o rio e o mar, tanto palestinos quanto israelenses.
O Estado israelense está cometendo genocídio. Uma vez que se aceita isso, a pergunta que nos fizemos por toda a vida se torna urgente: o que eu teria feito, naquela época, naquele outro planeta?
Só que desta vez, a resposta não é retórica. É agora e somos nós. E só há uma resposta correta: devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para detê-lo.