A periferia brasileira, lugar de luta

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Por: João Flores da Cunha | 17 Mai 2017

As periferias brasileiras como um espaço de lutas e de resistência contra as formas hegemônicas. Esse foi o mote da fala de Gerardo Silva, professor da área de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC – UFABC, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 15-5.

Sua palestra, que teve o título Da favela ao asfalto. As novas centralidades da periferia e a metrópole contemporânea, faz parte do 5º Ciclo de Estudos: Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo – A centralidade das periferias brasileiras.

No início de sua fala, Silva buscou estabelecer um contraponto com um texto presente em uma obra do sociólogo José de Souza Martins – “Aparição do demônio na fábrica” –, o qual “apresenta um debate sobre o sentido de subúrbio e periferia na cidade de São Paulo, centrando sua análise no território do ABC paulista”.

Na visão de Martins, o subúrbio seria um espaço de transição entre o urbano e o rural. Nele, haveria “um contexto de relações pessoais intensas, onde redes sociais de solidariedade e apoio mútuo conseguem se constituir, baseadas em grande medida em relações de vizinhança relativamente estáveis”.

O ABC paulista teria perdido essas características a partir da industrialização, e a periferia representaria a negação do subúrbio, de acordo com Martins. Para este, a periferia teria uma “concepção genérica, negativa do urbano – diferente do subúrbio”, que tem conotação positiva.

Para Silva, porém, “esse contraponto resulta extremamente redutor com relação à experiência operária, ou mesmo de classe média, que se afirma no ABC paulista”. Segundo ele, “a constituição da periferia corresponde a um contexto de expansão da atividade industrial e do trabalho assalariado que possibilitou, para muitos, a fuga de condições de exploração rural no seu local de origem”.

“Esses migrantes não apenas foram capazes de reconfigurar suas habilidades produtivas – diga-se de passagem, em um período extremamente curto de adaptação à vida urbana – como também de estabelecer novos horizontes e perspectivas de presente e futuro para eles próprios e para suas famílias”, afirmou o pesquisador. Assim, para Silva, “essa experiência de constituição de uma nova subjetividade urbana, no que ela tem de mais afirmativa, foi uma conquista da periferia, e não do subúrbio”.

O pesquisador utilizou o exemplo da migração de retirantes da seca em direção a São Paulo. Ele citou a experiência do ex-presidente Lula, que, “em sua trajetória de constituição de um sujeito urbano industrial e sindicalizado, nunca deixou de estar associado com sua origem de retirante nordestino – e isso se encontra impregnado na subjetividade operária do ABC paulista”. Para o pesquisador, o ABC paulista “é um verdadeiro laboratório de novas subjetividades”, e representa uma afirmação da “potência de uma periferia metropolitana”.

O ABC paulista representa uma afirmação da “potência de uma periferia metropolitana" (Foto: João Flores da Cunha)

Silva passou então a conduzir sua argumentação a partir da obra “Cidadania insurgente”, do antropólogo James Holston, que investiga os determinantes históricos da segregação de parte da população nas periferias: esses determinantes são políticos, sociais e territoriais, de acordo com este autor.

“Frente a esses determinantes, entretanto, os setores populares foram compondo historicamente estratégias de luta que os levaram a se fortalecer nessa posição marginalizada, e a defendê-la como possibilidade de avanço para outras lutas travadas no âmbito da cidade, sendo uma das mais importantes, segundo Holston, a do acesso à propriedade”, assinalou Silva.

A posse da terra, em geral, “resulta de um complexo processo de legitimação no qual a ocupação ilegal é, ao mesmo tempo, o único meio de acesso à terra para a maioria dos cidadãos e, paradoxalmente, uma ilegalidade que inicia a legalização das reivindicações de propriedade”, notou o pesquisador. Apesar da precariedade dessa posse, ela “gera mudanças fundamentais na cidadania das pessoas”, afirmou Silva.

A cidadania insurgente conceituada por Holston “designa a luta cotidiana dos habitantes das periferias”, notou o professor. Assim, os direitos são adquiridos através da ocupação e da autoconstrução. Entre esses, estão o direito ao voto e o de possibilidade de participação na vida pública da cidade.

“Para muitos, pode parecer uma caricatura de direitos políticos plenos; mas, para quem chegou sem nada, com a firme determinação de ficar, isso representa muito”, notou Silva.

Na visão do professor, a principal contribuição de Holston é a inversão que ele operou no valor dessa luta, considerando-a não como reativa, mas como afirmativa. Assim, é possível ver “um elemento tradicionalmente visto como de exclusão, de segregação e de marginalização dentro da cidade, como um momento afirmativo, a partir do qual as camadas populares conseguem ter uma luta por direitos, especificamente urbanos, que vão se associar a outros direitos”.

O movimento Enraizados

O pesquisador utilizou como exemplo de ativismo cultural nas periferias o Enraizados, da cidade de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. O movimento, com origem no rap e no hip hop, surgiu no final da década de 1990. Aliando produção musical e agitação cultural, o Enraizados conseguiu projeção através de seu portal na Internet, com centenas de milhares de acessos mensais.

Interligado e operando como uma rede, o movimento tem características como o trabalho em equipe e a construção em conjunto com outros coletivos similares. Para Silva, os líderes do Enraizados, o rapper Dudu do Morro Agudo e Luiz Carlos Dumont, “conseguiram tornar o movimento uma conquista da periferia”.

Segundo ele, a experiência do Enraizados, uma dentre tantas que ocorrem nas periferias brasileiras, demonstra “a enorme capacidade de articulação, mobilização e organização desses agentes em contextos adversos, caracterizados pela precariedade e vulnerabilidade de amplas camadas da população”. O professor valorizou o fato de que essas experiências “não se descolam das problemáticas sociais, mas as elaboram e ressignificam no plano das manifestações culturais e simbólicas”.

Na visão do pesquisador, “paradoxalmente, a inteligência política do Enraizados talvez seja, justamente, a de não ser enraizado, pelo menos não completamente”. Ele estabeleceu um paralelo entre o movimento e o conceito de rizoma: “Um dos princípios que distingue um rizoma de uma raiz, afirmam Gilles Deleuze e Félix Guattari, é a sua capacidade de conectar, de produzir agenciamentos múltiplos e diversos, de modo que o movimento não possa ser fixado”, disse.

O professor fez referência a uma fala de um dos líderes do movimento, que afirmou que “vários estudos tentam conceituar o Enraizados, e podem ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo, mutante. Assim, qualquer definição expira rapidamente”.

Para Silva, o comentário é uma “pérola”, e é “praticamente o que Deleuze e Guattari tratariam como uma máquina de guerra: quando são essas possibilidades mutantes, de desterritorialização permanente, que fazem a potência da experiência, e não o fato de estar preso a uma forma determinada”.

O futuro das metrópoles

“Acredito que vem muito mais insurgência por aí. As periferias estão no centro do debate político em todas as grandes cidades, inclusive nos países centrais”, disse, citando os protestos de Paris, em 2005, e os de Londres, em 2011. “Entre os que só têm privilégios a defender e os que ainda têm direitos a conquistar, existe uma enorme diferença que se expressa através de um excedente de disposição para a ação política em favor destes últimos”, afirmou.

É por essa disputa que passa o rumo da democracia nas metrópoles contemporâneas, assinalou o pesquisador. “Acredito que devemos permanecer atentos a essa mensagem. Mais do que como pesquisa acadêmica propriamente, como um dever político”, concluiu.

Quem é

Gerardo Alberto Silva possui Graduação em Geografia pela Universidad Nacional de Mar del Plata (Argentina), mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/UCAM. Fez Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da Université du Québéc à Montréal (UQÀM, Canada). Atualmente é professor da área de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC).

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