A grande maioria das mulheres eleitas em 2018 são jovens, ligadas às igrejas, e de direita. Entrevista especial com Céli Pinto

Os próximos dois anos serão difíceis, mas "pode haver uma reconstituição da política e isso seria muito bom", diz a professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Eleições 2020 | Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 10 Dezembro 2020

Três foram os aspectos centrais que marcaram as eleições municipais deste ano no país: o desaparecimento do "furor bolsonarista" que tomou conta de uma parcela significativa da população brasileira em 2018, o retorno de velhos partidos como PP, DEM, PSD e PSDB à arena política e a "derrota da esquerda", diz Céli Pinto à IHU On-Line.

 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, ela considera o PT "um dos grandes derrotados desta eleição", mas chama a atenção para o crescimento dos quadros de esquerda no legislativo. "Há outra característica ligada à esquerda, muito interessante em termos gerais: o surgimento, nas Câmaras Legislativas, de vereadores e vereadoras jovens, ligados ao PT, PSOL, mas também ao PCdoB, alguns negros e pessoas trans. Ou seja, há um fenômeno interessante que não aparece no resultado geral das pesquisas, mas é percebido quando se analisam com mais cuidado as eleições nas Câmaras das cidades com mais de 200 mil habitantes e nas capitais", observa.

 

Na mesma direção daqueles que defendem uma frente ampla à esquerda, Céli concorda com essa possibilidade. "Uma das chances da esquerda é fazer algo como uma frente ampla uruguaia para conseguir aumentar a potencialidade de todos os votos que teve", sugere. Entretanto, uma frente ampla que congregue esquerda e direita contra Bolsonaro é desnecessária. "Não vejo a possibilidade nem avalio que seja bom para o Brasil, nem para a esquerda, nem para a direita, ambas se unirem contra Bolsonaro. Quando foi para tirar o PT, eles votaram no Bolsonaro. Então, agora que fiquem com Bolsonaro – e eles vão ficar".

 

A pesquisadora também especula sobre as possibilidades de aliança entre o presidente Bolsonaro e os partidos de direita, tendo em vista a eleição de 2022. "Bolsonaro não tem partido político e não conseguiu fazer o Aliança pelo Brasil. A possibilidade de ele ser incorporado a um dos partidos de direita pode acontecer, mas é complicada. Tanto o DEM quanto o PSDB e o PP se cacifaram para terem candidatos próprios ou uma aliança. O PP anda namorando o Bolsonaro, mas ele [o presidente] não é disciplinado em termos partidários".

 

Céli comenta a eleição de candidatos ligados a pautas identitárias e sociais, as propostas de mandatos coletivos, a eleição de mulheres ligadas à centro-direita e defende o retorno aos ideias da Revolução Francesa como uma alternativa ao neoliberalismo. "Precisamos reconstituir o humano, a ideia de humanidade e as ideias de igualdade, liberdade, fraternidade, que todo mundo tem direito a ter uma vida boa. (...) Temos que ter uma nova ideia de bem viver, que não explore o planeta da forma que se explora para meia dúzia de gente ser milionária. É aí que entra a questão ecológica, ao não se plantar soja em metade do Brasil para alimentar porcos na China. Ou acabamos com o neoliberalismo ou o neoliberalismo acaba com o planeta; não tem saída", assegura.

 

Céli Pinto (Foto: UFPel)

Céli Pinto é graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre e doutora em Ciência Política pela University of Essex, na Inglaterra. É professora titular aposentada da UFRGS, onde atua como docente permanente no Programa de Pós-Graduação em História.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual sua avaliação geral sobre as eleições municipais no país neste ano? Houve alguma surpresa no resultado?

Céli Pinto – Não sei se a palavra certa é surpresa. O que houve foi um resultado muito diferenciado daquilo que vinha acontecendo até então. Por exemplo, em 2018 houve uma grande desestruturação dos partidos: Bolsonaro venceu com o PSL, um partido que praticamente inexistia e que ficou grande porque Bolsonaro entrou nele; os partidos tradicionais pareciam estar sem poder; e havia muitos partidos pequenos chegando à arena política. Em 2020, vemos que aquele furor bolsonarista praticamente desapareceu, ou seja, Bolsonaro e sua agenda anticiência e de ódio diminuíram. Esse é um primeiro aspecto geral importante da eleição.

O segundo aspecto é a recuperação dos partidos políticos de centro-direita, ou seja, aqueles que tinham dado lugar a Bolsonaro: PP, DEM, PSD, e ainda o ressurgimento na arena política do PSDB, partido do Covas, que estava muito desmilinguido e empobrecido com a derrota grande que teve nas eleições presidenciais de 2018.

A terceira característica é a derrota da esquerda. Ela foi derrotada nestas eleições, principalmente, se considerarmos as capitais e as grandes cidades – penso principalmente no PT, mas também nos outros partidos. O PT é um dos grandes derrotados desta eleição. Mesmo assim, há outra característica ligada à esquerda, muito interessante em termos gerais: o surgimento, nas Câmaras Legislativas, de vereadores e vereadoras jovens, ligados ao PT, PSOL, mas também ao PCdoB, alguns negros e pessoas trans. Ou seja, há um fenômeno interessante que não aparece no resultado geral das pesquisas, mas é percebido quando se analisam com mais cuidado as eleições nas Câmaras das cidades com mais de 200 mil habitantes e nas capitais.

 

 

IHU On-Line - A que atribui o crescimento desses candidatos?

Céli Pinto – Atribuo o crescimento desses candidatos a duas razões bem claras. Primeiro que, desde a última década do século XX, movimentos sociais vêm se organizando ao redor de temas identitários – não gosto dessa palavra, acho que é antiga, mas, em todo caso, é como as pessoas entendem. Então, temas como questões de gênero, dos direitos das mulheres, dos LGBTI, das trans, as questões relacionadas com o racismo, toda a campanha antirracista que existe no Brasil e no mundo, foram crescendo. Além disso, também é interessante que nesses movimentos tem algo importante e esperançoso para a política: são movimentos de jovens. Os jovens, com toda a desmoralização que a política teve nos últimos anos – provocada por alguns agentes –, estavam muito distantes da política. Mas agora temos jovens nos partidos de esquerda e eles chegam aos partidos através das demandas identitárias e das lutas por direitos de gênero, das mulheres, das trans, da população LGBTI, da luta antirracismo, da luta ecológica. Eles chegam aos partidos de esquerda e conseguem fazer bancadas interessantes a partir disso.

 

 

Centro-direita

Se olharmos a questão das mulheres, a centro-direita está sempre muito ligada às igrejas, ao movimento Vem Pra Rua e aos movimentos de 2013 – falando dos jovens e das mulheres. Mas a centro-direita vem da ditadura. Ou seja, o DEM e o PP são partidos que têm origem na Arena e estão no poder há muitas décadas, são muito bem estabelecidos, com estruturas fortes. Eles perderam um pouco o poder no período de democratização mais forte, quando PSDB e PT disputavam o poder e eram mais democratas e abertos. Agora que o PT perdeu o poder e o PSDB teve 5% dos votos em 2018, esse grupo se reorganizou no Congresso Nacional, se modernizou e conseguiu ter uma “cara” mais aceitável porque deixou de ser “a direita” e passou a ser a centro-direita, porque a direita desprezível é a bolsonarista.

 

 

IHU On-Line – Como tem sido a participação das mulheres na política e qual foi o desempenho delas nesta eleição? A agenda feminista se manifestou ou se atualizou nos candidatos que defendem as pautas identitárias e sociais?

Céli Pinto – As mulheres têm tido uma grande dificuldade de chegar à política institucional e, desta vez, não foi diferente, uma vez que foi eleita somente uma prefeita [Cinthia Ribeiro] em uma capital, Palmas [Tocantins], no primeiro turno.

As mulheres não cresceram em número de forma significativa nas Câmaras Municipais porque os partidos políticos são muito oligarcas, fechados, com estruturas machistas e excludentes. Mesmo que as mulheres consigam dinheiro, elas têm dificuldade de conseguir entrar nas estruturas partidárias. Óbvio que nos partidos mais à esquerda, como PT, PSOL, PCdoB, PSB e PDT, as mulheres com causas feministas têm mais entrada. Mas assim mesmo, não posso dizer que haja uma grande diferença entre os partidos políticos em geral e o ingresso das mulheres na política.

Em Porto Alegre houve um processo muito interessante: 30% da Câmara de Vereadores da cidade foi composta por mulheres e quatro delas são negras. É um movimento forte, antirracista. É importante a presença de homens e mulheres jovens e negros nas Câmaras Municipais, porque esses homens e mulheres eleitos são fruto de políticas públicas feitas há vinte anos, como as cotas para jovens negros ou estudantes de escolas públicas ingressarem na universidade. Tudo isso foi feito antes que a democracia tivesse ido abaixo, ou seja, quando tínhamos um governo plenamente democrático. Essa presença é fundamental, pois somos um país majoritariamente negro.

 

 

IHU On-Line - Como vê, particularmente, a proposta dos mandatos coletivos? Alguns defendem que os mandatos sejam de fato coletivos, com rotatividade dos candidatos no legislativo. Esse modelo seria benéfico para a política? Qual é a possibilidade de implementá-lo?

Céli Pinto – Esse é um modelo muito interessante, que precisa ser estudado, mas a possibilidade de rotatividade é quase zero de ser aprovada. A primeira experiência desse tipo é a de Áurea Carolina, em Belo Horizonte, que foi vereadora, se elegeu deputada federal e agora foi candidata à prefeita pelo PSOL, mas obteve 10% dos votos. Esse foi o primeiro mandato coletivo – inclusive elas chamavam de “mandata coletiva”. Todas as pessoas que estavam nesse mandato coletivo se reelegeram em diferentes posições.

Óbvio que é um fenômeno novo, importante, democratizante, mas muito difícil. Ou se consegue transformar as pessoas que não foram eleitas em assessores parlamentares, para mantê-las juntas, ou elas se separam porque precisam trabalhar para sobreviver. Se for possível transformar os não eleitos em assessores, seria um fenômeno interessante, embora seja difícil trabalhar em grupo durante quatro anos. Mas talvez este seja o mais original dos fenômenos da política que tem acontecido no legislativo.

De todo modo, não acredito na possibilidade de esses mandatos serem transformados em mandatos rotativos. É difícil e nem sei se desejável, porque depende de uma mudança constitucional.



IHU On-Line - Os candidatos que advogam pelas pautas identitárias são ligados somente ao campo progressista? Em que aspecto eles se diferenciam dos partidos tradicionais?

Céli Pinto – Eles são do campo da esquerda e da centro-esquerda, certamente. Todas as mulheres de direita que se elegeram deputadas federais em 2018 são antipautas identitárias e antifeministas.

As pautas identitárias representam uma renovação dentro dos partidos, porque elas forçam os partidos a assumirem essas causas, que são causas de todos nós, afinal, o país é constituído majoritariamente de negros e mulheres. Essa é uma ameaça ao poder tradicional de homens brancos que se dizem heterossexuais? Sim, é. Mas tem muitos homens brancos que se autoidentificam como heterossexuais que também assumem essas pautas e são solidários a elas. A presença dessas pessoas dentro dos partidos de esquerda e centro-esquerda é fundamental porque sacode os partidos. Elas fazem muito bem aos partidos aos quais se integraram, porque representam uma juventude, um frescor, ideias novas; sou encantada com isso.



IHU On-Line - Como esses grupos coletivos ou os políticos eleitos pelas pautas identitárias podem contribuir para a construção de um projeto de país? Existe uma crítica de que, embora essas pautas sejam fundamentais para assegurarem os direitos civis das pessoas, elas nem sempre geram uma unidade política porque cada grupo fala para si. Como vê esse tipo de apontamento?

Céli Pinto – Isso é uma bobagem do neostalinismo que não consegue se organizar e acha que as pautas identitárias diminuem a possibilidade da luta de classes. Esses não encontram mais o operário nas portas das fábricas, deveriam tentar transformar o mini empresário individual em militante de esquerda e deixar as pessoas que têm pautas identitárias lutarem por seus direitos. É um atraso o que está acontecendo na política; é um neostalinismo que está aparecendo na esquerda de forma deplorável.



IHU On-Line – Além dos jovens de esquerda, os jovens de direita também estão se articulando politicamente. Vê novidades nesses grupos? De algum modo eles se diferenciam da direita tradicional?

Céli Pinto – Estou analisando as deputadas federais que chegaram ao Congresso Nacional e à Câmara de Deputados em 2018. A grande maioria delas é de direita e são mulheres jovens. Ao contrário de antigamente, em que as mulheres de direita eram esposas de políticos, essas não são esposas de políticos. São jovens, ligadas a igrejas, e não só às igrejas pentecostais, mas também à direita da Igreja católica e são ligadas a movimentos que se forjaram em 2013, como o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre. Elas foram eleitas por partidos pequenos que estão perdendo o poder.

Não acho que esse grupo tenha possibilidade de se constituir de forma estruturada, porque esses políticos vêm de partidos muito pequenos, com pessoas com pouca experiência política e, além disso, porque são muito bolsonaristas. Os homens são muito ligados à questão das armas e as mulheres, muito religiosas. São uma base muito forte para o bolsonarismo, mas ele perdeu muito nestas eleições.

Alguém que brigou com Bolsonaro, como a Joice Hasselmann, agora teve 1% dos votos. Um ou outro desses candidatos vai se tornar um político, mas não me parece que exista uma frente de jovens de direita.

 

 

IHU On-Line - Alguns analistas acentuam a queda da renda dos brasileiros como um fator importante para o resultado das eleições, seja na reeleição de candidatos ou para a eleição de novos quadros. Qual é o peso desse fenômeno?

Céli Pinto – Não sei dizer qual é a relação da eleição municipal com essa questão da renda especificamente. Essa questão é muito mais ligada ao governo federal do que aos municípios. Os eleitores e eleitoras, em geral, quando votam num município, votam em A ou B a partir de questões do seu cotidiano: da água ou da iluminação que não chegam na sua casa, do ônibus que não passa na hora certa, do colégio do filho que não funciona. Tenho a impressão de que essas são questões muito importantes para os eleitores e eleitoras municipais.

Para dizer a verdade, se nesse momento a questão da renda tivesse realmente pesado, Bolsonaro teria tido a vitória que não teve, porque ele foi derrotado nesta eleição. Afinal de contas, ele melhorou a renda dos brasileiros com 600 reais nos últimos meses.

 

 

IHU On-Line - A derrota do PT representa uma derrota de toda a esquerda – com exceção dos candidatos das pautas identitárias – ou somente do partido? O que essa derrota significa e que efeito poderá gerar na própria esquerda?

Céli Pinto – Este é um momento importante para os partidos de esquerda e centro-esquerda pararem e pensarem na sua posição no campo da política brasileira. Realmente, houve uma derrota e ela tem que ser dita, porque está mostrada nos números, mas, ao mesmo tempo, temos alguns pontos interessantes, como a vitória de Edmilson Rodrigues, no Pará, a presença de Marília Arraes [PT], com 43% dos votos em Recife, a presença da Manuela D’Ávila [PCdoB], com 40%. Boulos [PSOL] também é uma figura importantíssima e teve 40% dos votos em São Paulo. Então, a esquerda tem espaço para começar a se reconstituir; se ela vai fazer isso a partir de um partido existente ou se vai criar uma frente ampla aos moldes da uruguaia, não sei. Mas ela tem condições de se reconstituir e tem pontos importantes de reconstituição.

Como ela vai se reconstituir é um exercício de futurologia. Uma das chances da esquerda é fazer algo como uma frente ampla uruguaia para conseguir aumentar a potencialidade de todos os votos que teve. Alguns têm caciques demais na esquerda. Se eles baixarem um pouco a sua crista, talvez uma frente ampla com pessoas mais jovens, com novos políticos que estão entrando na cena política, seria uma forma de reconstituir a esquerda no Brasil.

 

 

IHU On-Line - O que aconteceu com o PT? Essa derrota é consequência do antipetismo, ocorre por causa dos seus dirigentes partidários, das opções políticas do partido?

Céli Pinto – Há muitas razões, mas a principal delas é que houve uma arquitetura muito bem organizada a partir de 2014 para acabar com o PT. O Brasil foi uma democracia até 2014, quando Aécio Neves [PSDB] não aceitou o resultado das eleições. De lá para cá, houve a criminalização da política que consistia, especificamente, em tirar o PT da política. Sérgio Moro teve um papel claro de retirar o PT e o Lula da cena política. A prisão do Lula foi absolutamente política, independentemente de ele ser ou não culpado.

A política foi criminalizada e a ideia de que todos os políticos são corruptos é suja; isso não é verdade e não existe solução fora da política. Mas havia necessidade de o neoliberalismo, incrustado na classe dominante da sociedade, tirar o PT da jogada. Essa política foi feita claramente por um senhor chamado Sérgio Moro. Ele prendeu o Lula. Moro estava de férias numa praia em Portugal e impediu que o Lula saísse da prisão com um habeas corpus.

Se o Lula é bom ou ruim para o PT, não sei, mas a criminalização foi feita para retirar o PT do jogo. O MDB tem Eduardo Cunha, que foi usado para tirar a Dilma do poder. Se perguntar na rua por que a Dilma sofreu o impeachment, vão dizer que foi porque ela roubou. Mas ela não roubou nada. Tiraram a Dilma do poder por um processo administrativo que todos os presidentes anteriores faziam, que consistia em mexer com dinheiro público de uma empresa para outra para conseguir segurar o orçamento. Houve uma criminalização, inclusive da Dilma, que não deve ter saído nem com uma caneta Bic do Palácio da Alvorada.

 

 

Privilégio da classe média

Uma das causas da decadência do PT é a criminalização do partido. Por outro lado, o PT também foi criminalizado porque começou a ameaçar os privilégios da classe média brasileira, uma das mais privilegiadas do mundo. Se você contar para um estadunidense ou para um europeu sobre os privilégios da classe média brasileira, eles não acreditam. Mas essa classe superprivilegiada começou a se sentir ameaçada. A classe média porto-alegrense achava que a UFRGS era propriedade dela e quando começaram a entrar negros na universidade, isso incomodou. Quando a empregada doméstica começou a ter a oportunidade de tomar um avião e viajar ao Nordeste, isso incomodou. Então, a destruição do PT dentro do Brasil foi muito arquitetada.



IHU On-Line – Como interpreta o crescimento do PSOL?

Céli Pinto – O PSOL ainda é muito pequeno e governa somente cinco cidades. Em Porto Alegre, o partido fez uma bela bancada e teve visibilidade em São Paulo, mas é pequeno. Ele é um ator importante na reconstituição de uma frente de esquerda, mas não sei se essa frente ampla precisa de liderança. Boulos é um político com muito futuro no Brasil.

 

 

IHU On-Line - Desde a eleição do presidente Bolsonaro, se discute a ideia de articular uma frente ampla antibolsonarista, que inclua não somente a esquerda, mas também o centro, e outros falam ainda em uma frente mais ampla. Quais são as possibilidades reais disso? Seria possível e desejável unir a esquerda e o lavajatismo político em oposição a Bolsonaro?

Céli Pinto – Seria péssimo para o Brasil. Em Porto Alegre, o prefeito eleito, [Sebastião] Melo [MDB], usou de todo o discurso bolsonarista contra a Manuela, ou seja, abriu mão da história democrata que tinha para lançar mão das sujeiras mais baixas do bolsonarismo contra a Manuela. Não dá para confiar nesse tipo de pessoa.

A esquerda e a centro-esquerda têm que fazer uma frente ampla, porque a direita e a centro-direita, desde o PSDB até o PSL, votaram no Bolsonaro. Ele não se elegeu com os votos dos filhos. A esquerda pode até não ganhar, mas é preciso reconhecer que o bolsonarismo está “meio morto” e não precisará de uma frente contra Bolsonaro em 2022 justamente por isso. Ele precisa muito para sair da posição em que está, mas nem partido tem.

Há uma possibilidade de o PP trazer Bolsonaro para dentro do partido e criar uma direita com ele, com a participação de partidos importantes. Mas não vejo a possibilidade nem avalio que seja bom para o Brasil, nem para a esquerda, nem para a direita, ambas se unirem contra Bolsonaro. Quando foi para tirar o PT, eles votaram no Bolsonaro. Então, agora que fiquem com Bolsonaro – e eles vão ficar.

O DEM também ficou muito forte nesta eleição e tem bela possibilidade de ter um candidato próprio e deixar o Bolsonaro escanteado. O mesmo pode ocorrer com o PSDB, que poderá ter candidatos próprios. Doria e Rodrigo Maia são candidatos em potencial. Depois, correndo por fora, tem o Luciano Huck, ou seja, existem candidatos da centro-direita e da direita que podem deixar Bolsonaro de lado.



IHU On-Line – Doria manifestou, recentemente, a necessidade de criar uma frente ampla que inclua a centro-esquerda.

Céli Pinto – O Doria de centro-esquerda é algo cômico.



IHU On-Line - A partir do resultado das eleições deste ano, o que é possível vislumbrar para o pleito de 2022, além do que a senhora já sinalizou?

Céli Pinto – Bolsonaro não tem partido político e não conseguiu fazer o Aliança pelo Brasil. A possibilidade de ele ser incorporado a um dos partidos de direita pode acontecer, mas é complicada. Tanto o DEM quanto o PSDB e o PP se cacifaram para terem candidatos próprios ou uma aliança. O PP anda namorando o Bolsonaro, mas ele não é disciplinado em termos partidários – já esteve em oito partidos.

Ainda temos dois anos pela frente, em meio a uma pandemia que nos salvará ou nos matará, uma crise econômica que será muito violenta e que aumentará o desemprego. Serão dois anos difíceis em função da pandemia e de um governo desastroso. O que vai acontecer daqui a dois anos é difícil de prever, mas me parece que pode haver uma reconstituição da política e isso seria muito bom. Ou seja, uma frente de esquerda e uma frente de direita, se colocando uma frente à outra para disputar as eleições, como foi sempre com o PSDB e o PT. Gosto de partidos políticos fortes, estruturados, tanto de esquerda, de direita ou de centro. A política tem que ser feita dentro de partidos bem estruturados e se isso acontecer vai ser muito bom para todos nós.

 

 

Valores da Revolução Francesa

Precisamos de humanidade, de solidariedade, reconstituir a nossa condição humana de seres humanos racionais que pensam em liberdade e igualdade. Precisamos reconstituir o humano, a ideia de humanidade e as ideias que vêm da Revolução Francesa, de igualdade, liberdade, fraternidade, que todo mundo tem direito a ter uma vida boa, uma vida vivível, como diria Judith Butler. Temos que pensar a vida a partir da humanidade que temos, de seres humanos que somos. Temos de ter claro que todos os seres humanos têm que ter direito a uma vida vivível e isso se torna possível através da política.

 

IHU On-Line – A política brasileira está atenta às transformações climáticas e ao que precisará ser feito em decorrência dela?

Céli Pinto – A questão climática não é uma questão política; é uma questão econômica do capitalismo. A questão climática é uma questão econômica e de destruição do planeta que o neoliberalismo mais ferrenho está fazendo. A questão não é “molhar a violeta na janela”, mas os milhões e milhões de hectares de plantação de soja para fazer comida para os porcos, ou o xisto que os EUA retiram para fazer um combustível poluidor, ou a situação da China, que não dá a devida importância para a poluição.

O neoliberalismo está destruindo a sociedade. Temos que separar o lixo, mas não é por aí que vamos mudar. A coisa vai acontecer quando se mudar a ideia do viver bem, do bem viver. Temos que ter uma nova ideia de bem viver, que não explore o planeta da forma que se explora para meia dúzia de gente ser milionária. É aí que entra a questão ecológica, ao não se plantar soja em metade do Brasil para alimentar porcos na China. Ou acabamos com o neoliberalismo ou o neoliberalismo acaba com o planeta; não tem saída.

 

 

IHU On-Line – A mudança desse cenário perpassa pela política?

Céli Pinto – Perpassa pela política, sim, desde que ela seja responsável. Temos que discutir politicamente essa questão para enfrentar o neoliberalismo privatizador. Isso passa por projetos políticos coletivos e nós, brasileiros e brasileiras, temos que construir uma nova versão do planeta, porque ele não precisa de nós para viver; nós precisamos dele. Mas não faremos isso fechando a torneira enquanto escovamos os dentes; isso é bobagem de novela da Globo. São as mineradoras que acabam com os rios brasileiros, não é a torneira aberta que é o problema. O problema é político e teremos que enfrentá-lo politicamente.

Tudo isso está acontecendo pela ganância alucinada e pela concentração de riqueza nunca vista na história do planeta, por uma classe milionária e completamente improdutiva que não faz nada e concentra dinheiro. Os grandes celeiros do mundo viraram celeiros para porcos.

 

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