"Historicamente, o Brasil sempre chegou atrasado ao futuro. Mas agora, ao que parece, chegaremos atrasados ao passado". Entrevista especial com Henrique Cortez

Foto: Porto Meio MAbiente

Por: Patricia Fachin | 16 Mai 2019

A condução da agenda ambiental brasileira no governo Bolsonaro é ancorada em duas vertentes: a primeira visa dar continuidade ao modelo de desenvolvimento que “considera a defesa das questões ambientais como uma ameaça aos negócios e ao lucro”, e a segunda é ancorada na “visão antiestado da ultradireita, para a qual o governo não pode ‘se meter’ na vida e nos negócios de ninguém”, diz Henrique Cortez, jornalista da revista eletrônica EcoDebate, na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Esse tipo de visão, explica, tem orientado a tomada de decisão na área ambiental e se manifesta na hostilidade do governo à existência e à atuação do Ibama e do ICMBio. “A primeira evidência está no Ministério do Meio Ambiente defendendo uma agenda antiambiental, reduzindo o poder e a atuação do Ibama e do ICMBio, tentando limitar e esvaziar o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama, atacando organizações da sociedade civil com importante atuação ambiental, afrouxamento do licenciamento ambiental e outras ações que considero desmonte da governança ambiental construída desde 1992”.

Entre os desmontes ambientais iniciados pelo novo governo, Cortez menciona o decreto que “extinguiu o Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável - PDRS Xingu, criado para administrar as ações socioambientais decorrentes da UHE Belo Monte”, e a proposta de revisar as Unidades de Conservação – UCs. “Dizer que as unidades de conservação foram criadas sem critério técnico é uma bravata, estúpida como tantas outras. A criação de uma Unidade de Conservação - UC é um processo técnico multidisciplinar, rigoroso e com base científica. Então por que a revisão geral? Simples. É um agrado ao desenvolvimentismo econômico mais predatório, na medida em que a redução da área das UCs permitiria aumentar a fronteira de produção agropecuária e da mineração”.

Nesta entrevista, Cortez também comenta os desafios de fazer jornalismo ambiental independente no Brasil. O jornalista está à frente do EcoDebate há 13 anos e recentemente enviou uma carta a seus leitores, comunicando que a revista eletrônica poderá ser desativada em 1º de junho deste ano, por falta de recursos financeiros.

Henrique Cortez (Foto: Arquivo pessoal)

Henrique Cortez é jornalista especializado em meio ambiente, consultor em comunicação ambiental e editor do site EcoDebate.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O governo Bolsonaro iniciou sua gestão envolvido em uma série de polêmicas acerca da agenda ambiental. Que balanço o senhor faz do modo como essa agenda está sendo tratada nos primeiros meses do governo?

Henrique Cortez - Não vejo surpresas. Desde sempre, e explicitamente na campanha eleitoral, Bolsonaro demonstrou uma visão rasa das questões socioambientais e, em razão desta visão simplista, uma clara oposição aos principais temas e políticas públicas relativas ao meio ambiente. E, até agora, o governo segue firme na desregulação e na redução das políticas conservacionistas, o que deve se aprofundar ao longo do mandato.

IHU On-Line - Em que aspectos a condução da agenda ambiental no governo Bolsonaro se aproxima e se distancia de gestões anteriores?

Henrique Cortez - O governo Bolsonaro empenha-se pelo desenvolvimentismo a qualquer custo, algo presente desde o governo Juscelino Kubitschek - JK e mais intenso nos governos militares, sob o discurso do ‘Brasil Grande’. Nos governos Lula e Dilma, este modelo desenvolvimentista também foi muito atuante, com destaque nas grandes obras e suas empreiteiras, no agronegócio, aqui entendido como o segmento exportador de commodities agropecuárias e na exportação de minérios. E este modelo está ainda mais poderoso no governo Bolsonaro.

No entanto, nos governos Lula e Dilma, as políticas de proteção social e a compreensão das demandas da sociedade permitiram a criação de freios ao modelo desenvolvimentista mais predatório. Estes freios não existem no governo Bolsonaro.

Mas a maior diferença está na questão ideológica e na adoção de conceitos da ultradireita dos EUA, da qual a ultradireita brasileira é satélite. A ultradireita dos EUA e suas milícias [1] organizadas são antigoverno e rejeitam que o governo, de qualquer forma, interfira na liberdade individual do cidadão, que no caso ambiental, refere-se ao poder regulador e fiscalizador do Estado. Então, a atual gestão, ao atacar a legislação, a fiscalização ambiental e as unidades de conservação, é coerente com esta visão.

IHU On-Line - Por que órgãos como o Ibama e o ICMBio são vistos pelo novo governo como empecilhos ao desenvolvimento?

Henrique Cortez - O atual governo é hostil à existência e atuação do Ibama e do ICMBio a partir de duas vertentes que, na prática, somam forças. De um lado, o desenvolvimentismo econômico a qualquer custo, que considera a defesa das questões ambientais como uma ameaça aos negócios e ao lucro e, de outro lado, reitero, a visão antiestado da ultradireita, para a qual o governo não pode ‘se meter’ na vida e nos negócios de ninguém.

São duas vertentes com grandes diferenças em temas econômicos, sociais e regulatórios, mas neste momento são, na prática, aliadas táticas. Sinceramente, vejo que a união da versão mais selvagem do capitalismo com a ultradireita, essencialmente ideológica, possui um grande potencial devastador.

IHU On-Line - Por que, novamente, o agronegócio tem um papel ou um poder de atuação central no governo?

Henrique Cortez - O agronegócio é atuante e poderoso há vários governos. Mas é importante ressaltar que este poder de pressão é controlado pelo segmento exportador de commodities agropecuárias e pela agroindústria, a partir de uma poderosa e crescente bancada ruralista, provavelmente a mais articulada do Congresso Nacional. Mas a questão neste governo é que a pior versão do agronegócio veio à tona.

Entendo que existem duas versões do agronegócio, como em Dr Jekyll and Mr Hyde: de um lado, Dr Jekyll, que é uma versão aceitável e, de outro, uma versão Mr Hyde, que chamo de ogronegócio, associado à violência no campo, violações de direitos humanos, trabalho escravo, desmatamento ilegal, grilagem, milícias rurais etc. No governo Bolsonaro, esta versão ogro não teme defender sua agenda, como desmantelamento da atuação dos órgãos ambientais, redução do combate ao trabalho escravo, degradante e infantil, liberação de armas e munições, revisão das áreas protegidas, anistias e por aí vai. Ao que parece, até o momento, a agenda do ogronegócio avança de forma rápida e consistente.

IHU On-Line - Vários especialistas e ambientalistas têm afirmado que o governo está fazendo um “desmonte” da governança ambiental. Concorda com essa análise? Pode nos dar alguns exemplos de como esse “desmonte” está sendo feito?

Henrique Cortez - A primeira evidência está no Ministério do Meio Ambiente defendendo uma agenda antiambiental, reduzindo o poder e a atuação do Ibama e do ICMBio, tentando limitar e esvaziar o Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama, atacando organizações da sociedade civil com importante atuação ambiental, afrouxamento do licenciamento ambiental e outras ações que considero desmonte da governança ambiental construída desde 1992.

Um exemplo objetivo: o governo Bolsonaro, por decreto em 7 de maio, extinguiu o Comitê Gestor do Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável - PDRS Xingu, criado para administrar as ações socioambientais decorrentes da UHE Belo Monte.

IHU On-Line - Nesta semana, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, informou que o Ministério vai fazer uma revisão geral das 334 unidades de conservação no país, porque parte dessas unidades “foi criada sem nenhum tipo de critério técnico”. Como o senhor avalia esse tipo de medida?

Henrique Cortez - Na linha da questão anterior, esta é mais uma ação na direção do desmonte da governança ambiental. Dizer que as unidades de conservação foram criadas sem critério técnico é uma bravata, estúpida como tantas outras. A criação de uma Unidade de Conservação - UC é um processo técnico multidisciplinar, rigoroso e com base científica. Então por que a revisão geral?

Simples. É um agrado ao desenvolvimentismo econômico mais predatório, na medida em que a redução da área das UCs permitiria aumentar a fronteira de produção agropecuária e da mineração. E, obviamente, quanto menor a proteção, maior a devastação e o lucro.

IHU On-Line - Outra medida polêmica envolvendo o governo é a alteração do sistema de convenção de multas aplicadas pelo Ibama, através do decreto 9.760, que criou o Núcleo de Conciliação Ambiental, que pode perdoar ou revisar multas ambientais. Quais podem ser as consequências desse tipo de medida a longo prazo?

Henrique Cortez - Aqui, novamente, somam forças o desenvolvimentismo e a ultradireita. O surrado chavão da indústria de multas do Ibama e do ICMBio é absurdamente falso, porque os órgãos ambientais, de acordo com o Tribunal de Contas da União - TCU, mal conseguem arrecadar 5% das multas que aplicam. É, provavelmente, a indústria mais incapaz da galáxia.

O Núcleo de Conciliação Ambiental é uma ação a mais para evitar qualquer efetividade nas multas, o que interessa ao desenvolvimentismo econômico e agrada a ultradireita ao limitar ainda mais a atuação e o exercício do poder fiscalizatório do Estado.

IHU On-Line - Que pautas ambientais deveriam ser prioritárias no país neste momento? Por quê?

Henrique Cortez - As pautas são inúmeras, mas a primeira e mais urgente está em evitar os retrocessos que ameaçam a governança ambiental construída ao longo de décadas, como corretamente alertaram os ex-ministros do Meio Ambiente, em nota pública. Foi uma importante iniciativa que deveria ser reproduzida pelos ex-ministros da Educação e da Cultura, por exemplo.

Por outro lado, falta ao ambientalismo uma grande dose de generosidade e altruísmo, no sentido de que todos devem se unir diante dos desafios. As grandes ONGs ambientais precisam compreender a importância de somarem esforços e atuarem em conjunto. Nenhum interesse individual é maior que o interesse do coletivo.

Raras organizações ambientalistas conseguem traçar uma agenda comum com outras ONGs ambientais e, principalmente, com os agentes sociais e os movimentos populares como a CPT [Comissão Pastoral da Terra], o MST [Movimento dos Sem-Terra], o MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], as organizações de defesa dos direitos humanos, dos indígenas, dos quilombolas.

Diante das ameaças ao nosso futuro comum, esta é uma dinâmica que precisa ser mudada com urgência.

IHU On-Line - Quais são as dificuldades de fazer jornalismo ambiental independente no Brasil? Que análise o senhor faz a partir da sua experiência à frente do EcoDebate há mais de uma década?

Henrique Cortez - A lista de dificuldades é imensa, mas tentarei sintetizar. A maior e mais significativa dificuldade está na viabilidade econômica da manutenção do jornalismo independente, quer seja social, ambiental ou investigativo.

Sempre foi muito difícil, mas, desde o ano passado, as dificuldades financeiras estão insuportáveis para os movimentos sociais e para a mídia independente. Vários veículos impressos e online deixaram de existir e outros seguirão pelo mesmo caminho porque não conseguem recursos mínimos para se manter.

Se defendemos a socialização da informação, não podemos depender do financiamento por parte do(a) leitor(a), quer seja por assinatura solidária, quer seja por doações.

O correto é que os veículos de comunicação sejam mantidos com recursos publicitários. Afinal, se as empresas “sustentáveis” investem milhões na mídia de futilidade pública, por que não na mídia socioambiental?

O problema é que ao capital não interessa a sobrevivência do jornalismo ambiental independente exatamente por causa desta independência, e não somos o que as empresas querem. As empresas se interessam em incentivar o consumo e não a informação e a consciência crítica da sociedade. Ou, de forma mais direta, querem que você compre, mas não pense. Então, a sobrevivência do jornalismo ambiental independente está seriamente ameaçada.

IHU On-Line - Que balanço o senhor faz da manutenção do EcoDebate no ar ao longo dos últimos13 anos? Quais diria que foram os pontos altos e baixos nesse período?

Henrique Cortez - É difícil fazer uma avaliação isenta de seu próprio projeto editorial, mas, ainda assim, acredito que seja positivo. Aliás, qualquer experiência de democratização da informação é positiva, como qualquer experiência democrática.

Desde 2005, os temas socioambientais, quer globais, quer locais, passaram por várias fases. As discussões climáticas e da água avançaram bastante e a sociedade está mais preocupada com o assunto e as potenciais consequências futuras. E o jornalismo ambiental teve e tem um papel importante nestes avanços.

Por outro lado, em questões extremamente importantes, como saneamento, poluição e resíduos sólidos, os avanços foram mínimos. Nos temas relativos à conservação (florestal e biodiversidade) e na política de áreas protegidas, não avançamos e agora temos retrocessos já visíveis e que devem se aprofundar.

Mas e a mídia ambiental e o EcoDebate em especial nesse processo? Bem, por um lado nosso crescimento em alcance e leitores, ao longo dos anos, demonstra que o interesse em informações socioambientais confiáveis e de base científica aumentou bastante. De outro lado, ainda estamos presos ao nicho mais informado e consciente.

Esse, até agora, é um limite que toda a mídia independente encontra. A maioria da população não quer se interessar pelo que informamos.

A alienação, o descompromisso para com a realidade, é uma opção pessoal reconfortante. Consciência crítica da realidade pode ser muito 'desconfortável'. Então, a omissão permite ficar na 'zona de conforto', sem maiores incômodos. E nós, da mídia socioambiental, não conseguimos 'conversar' com esta maioria da população.

Paciência, fazemos o que está ao nosso alcance, da melhor forma que conseguimos. O(a) leitor(a) tem direito a optar pela informação alienante e descompromissada, mas nós não temos direito à omissão.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Henrique Cortez - Acho importante que a sociedade compreenda que nosso futuro comum está ameaçado, como podemos ver nas ações do governo Bolsonaro nas questões sociais, de direitos humanos, previdenciárias, ambientais, culturais e nas políticas educacionais.

A intolerância, o preconceito, o negacionismo climático, a rejeição à ciência, ao conhecimento e à cultura, a misoginia, o revisionismo histórico sempre desqualificam o debate e a difusão de ideias, insistindo nos discursos rasos, chavões, frases de efeito e bravatas. É a estratégia deste governo.

Mas não é preciso genialidade para compreender que um projeto de país não é construído a partir de discursos rasos, chavões, frases de efeito e bravatas. Que futuro será construído com retrocessos?

A caminho da segunda década do século XXI, vemos a defesa de ideias que já eram equivocadas na primeira metade do século XX. Historicamente, o Brasil sempre chegou atrasado ao futuro. Mas agora, ao que parece, chegaremos atrasados ao passado…

 

Nota:

[1] Movimento de milícias nos Estados Unidos, Wikipédia, a enciclopédia livre. (Nota do entrevistado)

 

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