"Nossas cidades são insustentáveis". Entrevista especial com Luciana Ferrara

"Todo mundo fala de crescimento desordenado porque a cidade aparenta ser caótica e sem controle. Mas, na verdade, essa aparente desordem é como ela se organiza, se configura de fato", explica a pesquisadora ao comentar a insustentabilidade das cidades brasileiras

Foto: Pedro Piegas | PMPA

Por: Patricia Fachin | 02 Outubro 2023

Historicamente, os investimentos destinados à habitação favoreceram o financiamento da casa própria para a classe média, acentuando a desigualdade social e favorecendo o crescimento urbano de baixa qualidade. Na avaliação da arquiteta e urbanista Luciana Ferrara, essa situação gera uma contradição: "Quando se melhora um espaço, ele se valoriza, promovendo um ciclo de expulsão das famílias mais pobres em direção as bordas. (...) Compete, nessa disputa por espaço urbano entre áreas valorizadas e infraestruturadas, um mercado imobiliário atuante, um setor que consegue adquirir e transformar esse espaço numa velocidade assustadora".

A discussão da sustentabilidade e da qualidade urbana e ambiental das cidades é também, na avaliação de Luciana, uma discussão de justiça social urgente em um contexto de mudanças climáticas. "A ideia de cidade sustentável não pode incentivar a implantação de alternativas inteligentes e interessantes concentrada em centros infraestruturados, onde já existe qualidade urbana para uma determinada parcela da população. E não deve basear-se na crença de que somente a inovação tecnológica pode nos "salvar’ dos desastres ecológicos, ou que um capitalismo limpo e verde é a solução. Considero que pensar a cidade sustentável passa por uma crítica radical de como a cidade está sendo produzida hoje".

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Luciana comenta as políticas públicas brasileiras destinadas à habitação, especialmente o programa Minha Casa, Minha Vida. "Apesar de se tratar de avanço importante em termos de financiamento, não temos visto uma melhoria na qualidade urbanística desses empreendimentos. E as empresas de construção visam o lucro, acima de qualquer coisa. Estão sendo construídos conjuntos habitacionais em áreas periféricas".


Luciana Ferrara (Foto: Reprodução)

Luciana Ferrara possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP e é doutora na área de Tecnologia da Arquitetura. Foi pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP – LabHab FAUUSP. Atualmente, é professora da Universidade Federal do ABC vinculada ao Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicada.

A entrevista a seguir foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 10-10-2011.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como vê o planejamento urbano no Brasil ao longo da história do país? Quais foram os grandes impasses na área da habitação e quais são os desafios para os próximos anos?

Luciana Ferrara – Entendo o planejamento urbano como discurso e atuação prática do Estado, e essa forma de atuação se transformou ao longo da história. Mas uma das características que permanece até hoje é que a ação do Estado via planos, leis e investimentos favorece em grande medida grupos de maior poder econômico e político, e não a população em geral, de baixa renda, que tem dificuldade de acesso à moradia e aos serviços e equipamentos urbanos. Alterar as prioridades de ação do Estado sempre foi uma disputa política entre os diferentes agentes que atuam na produção do espaço urbano. Combater a desigualdade socioeconômica, que gera uma cidade segregadora, está para além da atividade do planejamento. Mas, se o planejamento urbano não compreender e não enfrentar essa questão de base, será difícil visualizar um melhor futuro para as cidades e para as pessoas. Em termos de elaboração de planos, houve avanços nesse campo, embora ainda haja pouca transformação na prática.

Muitos autores que estudam o urbano identificam que um marco histórico nesse sentido é a Lei de Terras, de 1850, que definiu que a forma de acesso a terra se daria por meio de compra e venda. Então, estabeleceu-se um mercado de terras que excluiu, por exemplo, os escravos libertos. A propriedade privada da terra tornou-se a medida da riqueza, que antes era a posse de escravos. É importante frisar que, quando foi promulgada essa lei, muitos latifúndios já tinham sido formados. Temos aí uma das origens da segregação socioespacial.

A partir do século XIX, com a Proclamação da República, a migração, a substituição do trabalho escravo, a industrialização incipiente constitui-se também uma elite cafeeira. Nesse momento, as intervenções urbanas tiveram forte influência de urbanistas estrangeiros e a tônica predominante era o embelezamento das cidades sob o ideário da cidade moderna. Para implementar esse tipo de intervenção, era preciso retirar os pobres dos espaços centrais. Por exemplo, o código de posturas de São Paulo (de 1886) e do Rio de Janeiro (de 1889) tinham uma postura moralizante e não aceitavam a permanência de cortiços em áreas centrais sob o argumento de que era preciso sanear e limpar a cidade.

Além disso, com o crescimento urbano acelerado, o saneamento tornou-se de fato um problema a ser enfrentado e tratado na escala urbana. Surgem grandes planos de saneamento encabeçados pelo engenheiro Saturnino de Brito em várias cidades do Brasil, como São Paulo, Santos, Recife.

Investimentos do século XX

Em outro contexto econômico e político, já no século XX, os problemas urbanos passaram a ser tratados a partir do ponto de vista técnico. Essa visão tem seu apogeu na década de 1960 e 1970, com os grandes planos, baseados numa visão de pesquisa científica sobre as cidades. Esses planos foram financiados pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e envolviam importantes profissionais. Entretanto, a aplicação não aconteceu, como mostrou o professor Flavio Villaça. Em função do contexto político do regime militar, muito do que era feito nas cidades passava por decisões centralizadas e voltadas para a realização de grandes obras. O país queria se constituir como uma força econômica. Então, os investimentos foram canalizados para isso.

Ainda nesse período, foi criado o Banco Nacional de Habitação – BNH e o Sistema Financeiro de Habitação – SFH, que conduziram a política habitacional e de saneamento de grandes obras em nível nacional. Em termos de política habitacional, o BNH foi um marco, apesar de que algumas experiências anteriores já terem trabalhando com a produção de conjuntos habitacionais. A crítica central ao BNH, já trabalhada por diversas pesquisas, mostra que quem usufruía do financiamento era a classe média, e não as classes populares, que precisavam de mais subsídios. Quando se construía para baixa renda, era em grandes conjuntos monofuncionais e periféricos.

Luta pela habitação

Com a abertura política e o fim da ditadura, emergiram vários movimentos sociais, movimentos pela reforma urbana lutando pelas demandas populares, que foram incorporadas na Constituição e somente foram regulamentadas em 2001, como o Estatuto da Cidade. Durante os anos 1980 e 1990, esses movimentos reivindicaram urbanizações de favelas, construção por mutirão, novas moradias, regularização fundiária.

Em 2003, foi criado o Ministério das Cidades, dando início a outro marco importante. Isto porque, desde o fim do BNH até a criação do Ministério das Cidades, os investimentos habitacionais eram feitos pelos estados e municípios. Com a criação do Ministério das Cidades, retomou-se a intenção de que o governo federal poderia viabilizar financiamento para os estados e municípios, e também dar as diretrizes gerais das políticas urbanas setoriais. Em seguida, esse ministério promoveu uma campanha para a elaboração de planos diretores participativos em municípios com população acima de 20 mil habitantes, inclusive com financiamento. A crítica do "plano de gaveta" estava consolidada e contava-se que a participação da sociedade poderia promover processos mais democráticos de planejamento.

Hoje está em processo de avaliação os 10 anos de aplicação do Estatuto da Cidade. Há três anos foi feita uma pesquisa nacional sobre os planos diretores, promovida pelo Ministério das Cidades. Percebemos que, de um modo geral, nas cidades em que se conseguiu avançar na discussão pública dos seus planos, a população tem mais informação e, portanto, mais possibilidade de reivindicar seus direitos e projetos. Por exemplo, no processo de revisão do Plano Diretor, a prefeitura de São Paulo tentou tirar várias áreas que haviam sido delimitadas como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, as quais visam garantir habitação social em áreas delimitadas, na primeira versão do Plano Diretor participativo. Isso gerou um conflito muito grande, pois setores populares e técnicos se mobilizaram para impedir a mudança.

Por outro lado, mais uma vez, ainda que em outro contexto, percebemos avanços técnicos e poucos avanços em termos de aplicação. O Estatuto das Cidades é uma lei conhecida até no exterior, mas a aplicabilidade dela e do Plano Diretor é muito conflituosa, por uma série de motivos. Um deles é encarar a disputa pelo espaço urbano. Essa disputa envolve os diferentes interesses econômicos, como o capital imobiliário, e uma demanda social gigantesca. Isso transparece na elaboração do plano, nas decisões que ele contém. Para se implementar instrumentos de controle do uso especulativo da terra, por exemplo, há que se enfrentar essa disputa, e muitas vezes isso não é feito.

Um problema de outra natureza se refere à apropriação dessa ferramenta pelas próprias prefeituras. Muitas vezes, o corpo técnico do poder público fica refém dos interesses políticos locais e não consegue transpô-los. O plano diretor também pode ser entendido como uma esfera de disputa política, mas ainda mais é uma disputa fazê-lo valer. É uma disputa por visões de cidade, pelo uso dos espaços da cidade. Por isso a importância dos movimentos organizados, populares, nesses processos.

IHU On-Line – Quais são as razões e as consequências do crescimento desordenado das cidades brasileiras e da ausência de alternativa habitacional para parte da população de baixa renda?

Luciana Ferrara – Todo mundo fala de crescimento desordenado porque a cidade aparenta ser caótica e sem controle. Mas, na verdade, essa aparente desordem é como ela se organiza, se configura de fato. Dizer que a cidade é desordenada é uma ideologia, porque não é à toa que o crescimento de favelas e da autoconstrução, frente à insuficiente política habitacional pública estatal, tornou-se a solução de moradia da maioria da população. Essa insuficiente política é a própria política, e quem não é contemplado por ela se vira como pode.

Uma das consequências do crescimento urbano é a desigualdade de qualidade e oportunidades em áreas valorizadas em processo de valorização ou não da cidade. Entre 1990 e 2000, as maiores taxas de crescimento populacional ocorreram no limite da mancha urbanizada, nas áreas que são mais sensíveis do ponto de vista ambiental, em alguns municípios com menos recursos para lidar com esse crescimento. Compete, nessa disputa por espaço urbano entre áreas valorizadas e infraestruturadas, um mercado imobiliário atuante, um setor que consegue adquirir e transformar esse espaço numa velocidade assustadora – a verticalização da cidade de São Paulo mostra isso.

Os espaços ocupados pela população de baixa renda, em geral, têm uma qualidade muito ruim, tanto os periféricos como os centrais. A contradição maior é que, quando se melhora um espaço, ele se valoriza, promovendo um ciclo de expulsão das famílias mais pobres em direção às bordas. Os terrenos que estão na periferia, com preços mais acessíveis se comparado as áreas centrais, não têm infraestrutura. A população ocupa áreas de fragilidade ambiental, como margem de córregos, topos de morro, porque não tem recursos para comprar ou alugar locais melhores. Depois de ocupados, cria-se um mercado informal de aluguel e venda dentro das favelas e loteamentos informais. Então há diferentes valores dependendo da localização da favela, por exemplo. O espaço urbano é uma mercadoria lucrativa, em contextos formais e informais. Após muitos anos, as áreas se consolidam e o poder público precisa então investir em urbanização e regularização fundiária.

IHU On-Line – Teria como adequar toda a população em áreas habitáveis e não perigosas?

Luciana Ferrara – Existem várias alternativas habitacionais que precisam ser implantadas em conjunto, formando uma política habitacional. Enquanto se produz um centro valorizado, produz-se, ao mesmo tempo, uma periferia precária. Uma das formas de lidar com isso é reivindicar habitação em áreas centrais, o que o movimento de moradia faz há anos, sob muita repressão. O Brasil tem um déficit habitacional tanto de demanda por novas unidades como por inadequação habitacional, ou seja, habitações que precisam de melhorias. Ao mesmo tempo, o país dispõe de uma grande quantidade de domicílios vazios. Portanto, é preciso trabalhar em diversas frentes simultaneamente; não há uma única solução. Além da construção de novos conjuntos e urbanização de favelas, existem a locação social, a recuperação de edifícios abandonados (e com dívida, que a prefeitura pode negociar), a reabilitação de cortiços, o uso misto em edifícios e exigência de construção de HIS como contrapartida de grandes empreendimentos. Enfim, existem várias formas de trabalhar dentro do tecido urbano.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios em relação à moradia e ao planejamento urbano em uma época de mudanças climáticas e preocupações ambientais? Em que consistiria um projeto de habitação adequado, considerando-se a conjuntura atual de mudanças climáticas?

Luciana Ferrara – Essa questão atinge várias escalas. As mudanças climáticas tendem a aumentar os eventos extremos, o que no caso do Brasil poderá intensificar problemas que já existem há muito tempo. Na escala das cidades, das metrópoles, as chuvas intensas, por exemplo, irão afetar em maior grau as ocupações de áreas de risco ambiental, de inundação ou deslizamento, ou seja, a população que vive em áreas vulneráveis. Por isso essas ocupações demandam maior atenção do poder público, que precisa remover famílias e destiná-las a um adequado atendimento habitacional.

Esse tratamento também deve abranger a expansão da ocupação sobre áreas de proteção ambiental, como as áreas de proteção aos mananciais, que precisam ser tratadas de forma abrangente integrando, de um lado, moradia e recuperação ambiental nas áreas ocupadas e, de outro, promovendo usos compatíveis com a manutenção da vegetação nas áreas ainda não ocupadas.

Nós vivemos em uma sociedade de consumo exacerbado e isso se relaciona com modelos urbanos que nós adotamos. Se pensarmos na emissão de poluentes nas cidades, além das indústrias e do desmatamento, temos que enfrentar o modelo do transporte individual. O modelo rodoviarista é totalmente prejudicial, porque ele aumenta a poluição do ar, além do trânsito que interfere na mobilidade das pessoas e gera uma vida urbana bastante penosa.

Outros problemas são as formas como o solo tem sido utilizado e impermeabilizado; o mau gerenciamento da drenagem urbana; o não tratamento integral dos esgotos que geramos, fazendo com que os rios sejam canais de condução de esgotos e não espaços de fruição e de lazer para a população. Essas são questões a serem enfrentadas pela discussão da qualidade urbana e ambiental nas cidades. Elas estão na ordem do dia, e o debate sobre as mudanças climáticas faz com que a atenção à questão ambiental se intensifique. Porém, no contexto das cidades brasileiras, todas essas questões são, antes, questões sociais e precisam ser tratadas, considerando-se a noção de justiça social.

IHU On-Line – É possível pensar no planejamento de cidades sustentáveis? Que aspectos seriam fundamentais na elaboração desse projeto?

Luciana Ferrara – Nossas cidades são insustentáveis por causa de todos esses problemas que mencionei anteriormente. Portanto, pensar no planejamento de cidades sustentáveis não consiste em reivindicar projetos pontuais, por mais que reivindicar ciclovias, buscar minimizar impactos do trânsito e da poluição, etc., sejam importantes. Temos de promover uma distribuição e uso do solo urbano que seja menos predatória, ou seja, ter possibilidades de associar, nos projetos habitacionais, uma maior qualidade ambiental, em vez de fazer grandes conjuntos isolados na periferia. Além disso, os conjuntos habitacionais precisam ter qualidade ambiental, precisam ter praça, parque, equipamentos, precisam estar conectados de uma forma eficiente com meios de transporte para os centros urbanos, com os locais de trabalho das pessoas. A ideia de cidade sustentável não pode incentivar a implantação de alternativas inteligentes e interessantes concentrada em centros infraestruturados, onde já existe qualidade urbana para uma determinada parcela da população. E não deve basear-se na crença de que somente a inovação tecnológica pode nos "salvar" dos desastres ecológicos, ou que um capitalismo limpo e verde é a solução. Considero que pensar a cidade sustentável passa por uma crítica radical de como a cidade está sendo produzida hoje.

IHU On-Line – Existem algumas pesquisas da USP que propõem que o planejamento urbano das cidades seja feito a partir das bacias hidrográficas para recuperar as águas dos córregos. Você participou de algum projeto com esse viés? Pode nos falar sobre ele? Em que consiste e quais suas vantagens?

Luciana Ferrara – Sim. A bacia hidrográfica como unidade de planejamento, gestão, principalmente de recursos hídricos, é um elemento presente na legislação brasileira que trata do assunto. A pesquisa que participei foi coordenada pela professora Maria Lúcia Refinetti, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e desenvolvida no Laboratório de Habitação. Envolveu várias prefeituras situadas em áreas de proteção aos mananciais e o Ministério Público. Nós trabalhamos com municípios ao sul da Região Metropolitana de São Paulo, que enfrentavam o problema da irregularidade urbanística e fundiária de loteamentos populares irregulares e favelas nas bacias das represas Guarapiranga e Billings, que servem de abastecimento público de água e onde hoje moram 1 milhão e 600 mil pessoas.

Nós trabalhamos com a questão de articular soluções habitacionais, de infraestrutura e regularização fundiária, visando melhorar a qualidade habitacional das pessoas que já estão lá e, ao mesmo tempo, reduzir o impacto da ocupação na qualidade da água.

São Paulo teve um programa de urbanização inaugural nesse sentido, formulado em 1989 e iniciado em 1992, que é o programa Guarapiranga. Ele existe até hoje e abrange também as ocupações na Billings. Esse programa visava a urbanização de favelas para melhorar a qualidade de vida dos assentamentos precários e reduzir os esgotos jogados diretamente nas represas. A partir de uma leitura crítica dessa experiência, vimos que a realização de obras de urbanização foram fragmentadas e não geravam as melhorias pretendidas em termos de qualidade da água. Por isso seria mais proveitoso adotar como unidade de projeto e de intervenção a microbacia hidrográfica, que corresponde à área de drenagem de um córrego ou de um conjunto pequeno de córregos. Com essa unidade de planejamento, conseguir-se-ia aferir a qualidade da água e ter um controle ambiental do resultado das obras de urbanização. E foi nesse sentido que a pesquisa do LabHab trabalhou. Em seguida, a experiência foi sistematizada no livro de autoria da professora Maria Lúcia Refinetti, que se chama Moradia e Mananciais: tensão de diálogo na metrópole, o qual está disponível na internet no site do laboratório.

IHU On-Line – Como é possível enfrentar a precarização habitacional no Brasil? Que políticas públicas seriam necessárias?

Luciana Ferrara – Existe, em nível nacional, o Plano Nacional de Habitação, a estruturação de um Sistema Nacional de Habitação e de um Fundo Nacional de Habitação do qual podem participar os estados e municípios, desde que tenham seus planos de habitação. Os municípios precisam estruturar sua política habitacional para que ela perdure. Se há um sistema de gestão, de planejamento e de financiamento, as possibilidades de se ter uma política habitacional contínua é maior, ficando assim menos frágil às mudanças de orientação política das gestões.

A política municipal de habitação define programas, formas de gestão e financiamento. Para enfrentar a heterogeneidade dos problemas habitacionais, é preciso ter uma variedade de alternativas e programas para situações urbanas diferenciadas. No centro, por exemplo, existem situações de cortiço, favelas, edifícios vazios que podem ser recuperados e transformados em habitação popular; na periferia há áreas sem infraestrutura, áreas com infraestrutura que precisam ser melhoradas, etc. Há a possibilidade de se fazer locação social financiada pela prefeitura para viabilizar que as famílias habitem próximo aos seus lugares de trabalho. Ou seja, é preciso um "cardápio" de alternativas e soluções que precisam ser implementadas simultaneamente, dependendo das necessidades sociais e habitacionais de cada município.

IHU On-Line – Em relação à moradia social, o governo brasileiro investe em programas como Minha Casa, Minha Vida. Como vê essas políticas públicas de assistência à moradia social? Elas garantem o acesso a uma habitação adequada?

Luciana Ferrara – Em paralelo à formulação do Plano Nacional de Habitação e da estruturação do Sistema Nacional de Habitação, o governo lançou o programa de financiamento Minha Casa, Minha Vida, anunciado como uma medida de duplo objetivo: medida anticrise econômica e medida social.

O financiamento do MCMV se estrutura por faixas de renda e contém uma novidade importante que é o subsídio para famílias que têm uma renda entre zero e três salários mínimos. Acima de três salários mínimos o financiamento é voltado para a habitação de mercado, ou seja, muitas empresas que antes não trabalhavam com a provisão de habitação de baixa renda, hoje estão produzindo com o financiamento do Estado.

Do ponto de vista urbanístico, o foco da crítica recai sobre o modelo de ocupação do que está sendo construído. Em São Paulo, por exemplo, praticamente não existem mais grandes terrenos nos bairros centrais e onde o preço é muito mais alto. Por isso as empresas têm adquirido grandes terrenos muito distantes ou pouco conectados com a malha urbanizada. Ou seja, estamos reproduzindo o modelo dos grandes conjuntos monofuncionais criticados desde o BNH. Apesar de se tratar de avanço importante em termos de financiamento, não temos visto uma melhoria na qualidade urbanística desses empreendimentos. E as empresas de construção visam o lucro, acima de qualquer coisa. Estão sendo construídos conjuntos habitacionais em áreas periféricas, inclusive em cidades em que ainda há terrenos propícios de serem edificados próximos ao centro, mas isso não está sendo feito. Recentemente, as normas que regem o MCMV têm admitido novas possibilidades, como a construção de edifícios mistos (com comércio no térreo). Mas ainda não se vê uma mudança qualitativa na produção, e isso vale para o país inteiro.

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