Palestina. O terror de conceber, dar à luz e ser mãe em uma terra devastada

A violência reprodutiva abala mais do que nunca Gaza, onde as ONGs estão relatando um aumento alarmante no número de abortos espontâneos causados pelo estresse extremo que as mães enfrentam durante a gestação.

Foto: MSF

18 Abril 2024

A violência reprodutiva que assola as mulheres de Gaza desde outubro passado não se limita apenas à falta de recursos e de apoio institucional para dar à luz seus bebês de forma segura. Os efeitos fatais na maternidade causados pelo genocídio palestino, que já ceifou mais de 33.800 vidas na Faixa — 70% delas mulheres ou crianças — começam desde o início da gravidez, pois se torna impossível manter acompanhamento médico durante a gestação e até o pós-parto, que ocorre em condições de insalubridade e superlotação extrema, sem espaços seguros onde as mães possam se recuperar fisicamente e emocionalmente após o parto.

A reportagem é de Alejandra Mateo Fano, publicada por El Salto, 17-04-2024.

Diante disso, cabe perguntar: como é possível engravidar com acesso limitado a água potável, medicamentos e alimentos? Quais são os efeitos do estresse causado pelo cerco na saúde materna e, consequentemente, na do feto? O que acontecerá no futuro com todas essas gerações de crianças nascidas em meio ao caos absoluto? Antes de abordar todas essas questões, é necessário considerar que em um contexto de colonização e opressão, ter filhos e filhas se torna para muitos palestinos uma forma de resistência à ocupação, frente a um Estado israelense que quer acabar com seu povo para atender aos objetivos imperialistas do sionismo. A nação palestina busca se tornar cada vez mais numerosa, de modo que, nesse contexto, uma gravidez constitui praticamente um ato político de protesto.

Fernanda Vega, coordenadora na Médicos do Mundo e organizadora da resposta médica em Gaza, testemunhou de perto o horror com o qual as mulheres palestinas têm que lidar hoje. Ela relata ao El Salto a jornada que as mulheres que dão à luz em um território semidestruído, que é Gaza hoje — a maioria delas engravidou antes de 7 de outubro — têm que enfrentar, desde o momento em que o acesso aos cuidados pré-natais é interrompido devido à situação dos ataques no enclave. Isso significa que crianças que estão sendo geradas com deficiências nutricionais severas e sem suplementos de qualquer tipo não recebem acompanhamento, tornando impossível detectar qualquer patologia que os fetos possam estar desenvolvendo.

"As ONGs chegaram a enviar ultrassons, mas há um dilema ético no sentido de que as pessoas que manuseiam os ultrassons podem dizer 'seu bebê tem uma doença' ou 'não está se mexendo', mas depois, o que você faz? Atualmente, não há maneira de amenizar o que pode acontecer a esses fetos", diz Vega. Ela também explica que há de fato um número altíssimo, mas até agora indeterminado, de abortos espontâneos, devido ao aumento descontrolado da tensão a que as mães grávidas são submetidas diariamente, mas também estão sendo relatados graves problemas de baixo peso ao nascer, atraso no desenvolvimento ou na formação do sistema nervoso ou malformações.

Segundo esta médica, as mulheres em Gaza tiveram que se adaptar a um cenário de sobrevivência quase animal, onde, praticamente da noite para o dia, passaram de ter uma maternidade desfrutada e compartilhada em comunidade para serem obrigadas a gestar em condições extremas e desumanas. A ausência de controles e acompanhamento é algo realmente novo para elas.

"As mulheres antes estavam acostumadas a fazer seus controles e ir para instituições de saúde onde a primeira opção sempre era o parto normal, mas sempre havia uma cesariana disponível, existiam hospitais com neonatologia, e agora, de repente, muitas delas se encontram em situação de deslocamento forçado, vivendo em barracas e sem encontrar um hospital onde possam dar à luz", afirma Sofía Piñeiro, coordenadora médica de Médicos Sem Fronteiras em Rafah.

"Consigo imaginar como deve ser diferente para uma mulher que estava grávida, feliz e fazendo seus controles pré-natais, de repente se encontrar no terceiro trimestre sem ter para onde ir para dar à luz e estar consciente de que não poderá alimentar nem proteger seus filhos quando nascerem", acrescenta Piñeiro. Ela admite que, em relação à gravidez, o elemento mais desfavorável é o estresse e a ansiedade que as mulheres enfrentam, tanto pelo terror dos bombardeios que caem diariamente sobre a cidade quanto pela incerteza sobre o futuro nada esperançoso que espera por seus filhos.

Foto: Ali Jadallah | Anadolu Agency

Dar à luz em uma cidade em ruínas

Segundo a UNRWA, após a destruição do hospital Al-Shifa, o maior e principal centro de referência da Faixa com 750 leitos, 26 salas de cirurgia e 32 unidades de terapia intensiva, apenas 10 dos 36 hospitais de Gaza estão em funcionamento, e vários deles apenas parcialmente. O Hospital Al Emirati é o único centro médico de maternidade operacional em toda a Faixa de Gaza, portanto as mulheres que precisam dar à luz se dirigem diretamente a este local, passando de cerca de 15 partos por dia para 80. Durante os partos, as mulheres devem dar à luz, na melhor das hipóteses, nessas salas totalmente lotadas, onde são colocadas duas ou três mães por cama por falta de espaço, embora muitas deem à luz na rua ou em barracas. "Elas estão dando à luz sem anestesia, aquelas que recebem cesarianas acabam com infecções causadas por feridas ao dar à luz em locais totalmente insalubres e essas mesmas cesarianas, assim como o resto das operações, são realizadas sem analgesia. A nível mental, tudo isso é transmitido ao bebê durante o parto, afetando o vínculo com a criança", expressa Fernanda com preocupação.

Em uma tradição cultural islâmica, onde a modéstia e a privacidade têm uma relevância particular, a superexposição constante a que as mulheres estão sujeitas tem repercussões diretas em sua autoestima e em suas relações sociais, ou, como afirma Sofia, "em toda a sua maneira de ser, porque a cultura não é algo que se abandona ou se adia por causa de uma guerra". Para mitigar a persistente sensação de vulnerabilidade que experimentam, não faltam em nenhum momento, apesar da desesperança generalizada, as redes de apoio e solidariedade coletivas entre mulheres que se reconhecem como companheiras diante de uma mesma adversidade. "Lembro-me de uma imagem muito latente na sala de pós-parto, éramos praticamente todas mulheres porque é um lugar onde se está amamentando, então a presença de homens é quase nula para que as mulheres possam estar com o cabelo descoberto e à vontade. Havia uma mulher com um pé para fora do lençol e era a mesma enfermeira que ia e cobria o pé, como se dissesse, eu sei que se você estivesse acordada, não gostaria de estar mostrando, é aí que se vê a irmandade", narra Sofia.

A médica compara a superexposição que as mulheres muçulmanas sentem em pleno genocídio à vergonha que qualquer ocidental sentiria se tivesse que sair para comprar pão nu, havendo ou não um conflito em curso. Da mesma forma, a histórica solidariedade entre as mulheres na Palestina também se estende às que se encontram em situação de pobreza menstrual. No início do conflito, muitas mulheres começaram a compartilhar suas pílulas anticoncepcionais para evitar menstruar em condições que, como depois se constatou, colocariam gravemente suas vidas em perigo.

Com o tempo, passaram de compartilhar anticoncepcionais para fazer o mesmo com os absorventes higiênicos que elas mesmas fabricam à mão com os tecidos das tendas e barracas, já que o kit menstrual padrão fornecido por organizações de direitos humanos como o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) resulta claramente insuficiente. Segundo desenvolve Ammal Awadallah em seu artigo As mulheres e meninas esquecidas em Gaza: uma catástrofe de saúde sexual e reprodutiva, as mulheres têm tomado comprimidos de noretisterona, que geralmente são recomendados para distúrbios como sangramento menstrual excessivo, endometriose e períodos dolorosos. Há mulheres que até perderam a menstruação devido ao estresse.

A própria UNFPA relatou que apenas na Faixa Ocidental de Gaza, há mais de 73.000 gravidezes neste momento, o que significa que mais de 8.120 mulheres darão à luz em maio, em pleno conflito. Esses números são ligeiramente superiores aos de novembro, apenas um mês após o início dos bombardeios, quando havia mais de 50.000 gravidezes em curso (aproximadamente 166 partos por dia), como já informado pelo El Salto em outubro passado. Com a mais absoluta precariedade e a ausência de qualquer tipo de recurso técnico ou humano sendo uma realidade normalizada em Gaza, membros da UNFPA consideram o acesso a cuidados de saúde adequados para todas essas mulheres prestes a dar à luz "um desafio inimaginável" para médicos e parteiras. A organização destaca em seu artigo Opções impossíveis em Gaza como as mulheres estão dando à luz prematuramente devido ao terror de que, como consequência do aumento das emergências obstétricas, poucas sobrevivem à gravidez e ao parto, e aquelas que o fazem devem retornar a abrigos superlotados e assentamentos informais que carecem de água potável e instalações de higiene e onde as doenças infecciosas são abundantes.

Imagem: Anadolu Agency

Uma geração sentenciada pela barbárie israelense

Uma grande incógnita é o que vai acontecer com os bebês que nascem em meio ao conflito. Piñeiro aponta que, após o pós-parto, "as mães deveriam ficar pelo menos 24 horas no hospital para passarem por todos os tipos de exames, mas esse tempo foi reduzido para seis horas ou até mesmo quatro. Isso provavelmente está impedindo que identifiquemos muitos problemas a tempo que são necessários controlar no pós-parto, além de a mulher não ter tido hemorragia ou febre, porque existem patologias dos bebês que costumam aparecer pelo menos 24 e 48 horas depois". Jaldia Abubakra, do Movimento de Mulheres Palestinas na diáspora Alkarama, denuncia ao El Salto a falta de recursos para atender os bebês que nascem prematuramente: "Não há incubadoras para eles porque não há eletricidade e quase não há hospitais, na verdade, no segundo mês da agressão a Gaza, vimos como desconectaram as incubadoras no hospital central".

Quanto à questão do futuro a médio e longo prazo das crianças que tiverem a sorte de sobreviver aos primeiros meses de vida, Piñeiro teme, por enquanto, um aumento sem precedentes nos casos de deficiência ligados a doenças não tratadas a tempo ou corretamente, por não terem recebido atendimento médico adequado, como cirurgias reconstrutivas ou internações prolongadas em hospitais para manter o controle de infecções. A longo prazo, Jaldia prevê que, após tudo o que aconteceu e dado o número incontável de traumas que essas novas gerações de meninas e meninos palestinos acumularão desde o nascimento, "vão precisar de muito tratamento psicológico, muita terapia para enfrentar tudo isso" e lembra os efeitos que o ataque de Israel em 2014 teve nas crianças — Operação Margem Protetora —, o que a faz prever a magnitude dos efeitos do genocídio em sua saúde mental. "Havia muitos casos de crianças com medo, com pesadelos, crianças que à noite urinavam na cama de medo e terror, gagueira, medo de sair sozinhos do quarto para ir ao banheiro, e assim por diante". A ativista argumenta nessa linha que "muitas crianças perderam toda a família, viram horrores porque viram corpos jogados, desmembrados na frente delas e isso vai levar tempo para reparar".

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