Mina Guaíba: quando o argumento de combate à pobreza desconsidera o meio ambiente. Entrevista especial com Ana Marchesan

Para promotora, governos de matriz ultraliberal desmontam a legislação ambiental sob a justificativa de que “a pior poluição é a causada pela pobreza”

Foto: Banco/Pexels

Por: João Vitor Santos | 13 Março 2020

Está em curso no Rio Grande do Sul um debate que parece remontar ao século XIX: os prós e contras da instalação de uma mina de carvão mineral. Sob o argumento de que na Região Metropolitana de Porto Alegre, entre as cidades de Guaíba e Eldorado do Sul, praticamente às margens do Rio Guaíba, há uma grande reserva de carvão que pode ser convertida em desenvolvimento econômico, Estado e municípios apostam nesse megaempreendimento. No entanto, ambientalistas, comunidade e autoridades do campo científico e jurídico estão em alerta, uma vez que a mineração de carvão é uma atividade extremamente poluidora. É o caso da promotora de Justiça do Ministério Público do RS, Ana Marchesan. “A Mina pode afetar uma série de processos ecológicos essenciais desenvolvidos tanto nas áreas direta e indiretamente afetadas como nas áreas de influência”, adverte.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Ana destaca que mesmo que a empresa que pretende operar a Mina e o poder público aleguem que a atividade evoluiu muito e que polui muito menos, há riscos aos ecossistemas da região e até mesmo para a qualidade da água que abastece a região. Por isso, defende que é preciso, com cuidado, “averiguar possíveis danos ambientais decorrentes da mineração de carvão em área com, pelo menos, oito espécies de flora classificadas como imunes a corte ou ameaçadas de extinção. Há, também, possíveis danos a fragmentos de Mata Atlântica, além de reconhecer o desvio dos arroios Pesqueiro e Jacaré com a respectiva destruição da vegetação protetora desses mananciais”.

A promotora enfatiza que todos esses fatores não podem ser desconsiderados apenas sob o argumento de que é preciso investir no desenvolvimento da região. Inclusive, para ela, essa é a questão de fundo por trás do desmonte de toda a legislação ambiental que se vê no país. “O atual governo, de matriz ultraliberal, tende a desregulamentar tudo, liberar geral. Partem do princípio – equivocado na minha visão – de que a pior poluição é a causada pela pobreza”, pontua. Embora reconheça os limites, Ana acredita que o Direito também pode se constituir num campo para fazer frente a essas perspectivas. “O Direito geralmente chega tarde para atuar. As questões ambientais são complexas e dinâmicas. Justamente por isso são desafiadoras”, observa.

Ana Maria Moreira Marchesan (Foto: Arquivo Pessoal)

Ana Maria Moreira Marchesan é mestra e doutora em Direito Ambiental e Biodireito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atua como promotora de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul, junto à Promotoria Especializada do Meio Ambiente de Porto Alegre. Ainda é professora convidada dos cursos de pós-graduação em Direito Ambiental do Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ, na Paraíba, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e na Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP, ambas em Porto Alegre. Também integra a diretoria do Instituto "O Direito por um Planeta Verde". Entre os livros publicados, destacamos “O Fato Consumado em Matéria Ambiental” (Salvador, BA: Juspodivm, 2019).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O que levou o Ministério Público Estadual do RS – juntamente com o Ministério Público Federal – a abrir processo de investigação sobre o projeto da Mina Guaíba?

Ana Marchesan – Em relação ao MP Estadual, o inquérito foi instaurado com o escopo de averiguar possíveis danos ambientais decorrentes da mineração de carvão em área com, pelo menos, oito espécies de flora classificadas como imunes a corte ou ameaçadas de extinção. Há, também, possíveis danos a fragmentos de Mata Atlântica, além de reconhecer o desvio dos arroios Pesqueiro e Jacaré com a respectiva destruição da vegetação protetora desses mananciais, destruição da conectividade dos ambientes úmidos com as Unidades de Conservação - APA e Parque Estadual Delta do Jacuí , a par de se situar em área de excepcional valor paisagístico, inclusive tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul - IPHAE.

Delta do Rio Jacuí (Foto: skyscrapercity.com)

A Mina pode afetar uma série de processos ecológicos essenciais desenvolvidos tanto nas áreas direta e indiretamente afetadas como nas áreas de influência, notadamente através da destruição de 38 hectares de florestas e 116 hectares de banhados, num total de 154 hectares de áreas de preservação permanente pertencentes ao gênero espaços territoriais especialmente protegidos.

IHU On-Line – Recentemente, a Justiça suspendeu o licenciamento ambiental da obra da Mina Guaíba. O que levou a essa determinação e como podemos compreender essa decisão da Justiça? A suspensão é decorrente do processo de investigação aberto pelo MP?

Ana Marchesan – Não. A suspensão deriva de uma ação civil pública ajuizada pela Associação Indígena Poty Guarani e pela Associação Arayara de Educação e Cultura objetivando preceder o Termo de Referência para o licenciamento ambiental do chamado Componente Indígena.

IHU On-Line – Quais são os passos que precisam ser seguidos para o licenciamento desse empreendimento e em que ponto está o projeto da Mina Guaíba?

Ana Marchesan – O licenciamento ambiental já retrocedeu pelo menos três vezes. Atualmente, sequer Licença Prévia foi expedida. Inclusive, na minha perspectiva, o próprio Termo de Referência para os estudos da Licença Prévia - LP deve ser refeito para contemplar o componente indígena.

Mapa cedido por Rualdo Menegat

IHU On-Line – O Governo do Estado e a empresa alegam que a Mina Guaíba trará muitos recursos ao Rio Grande do Sul, além de gerar empregos. Quais os desafios de hoje para impedir que questões econômicas se sobressaiam à preservação ambiental?

Ana Marchesan – Esse desafio é constante, sobretudo em tempos de crise econômica mundial. Nosso Estado está sofrendo muito nesse cenário, inclusive com salários atrasados dos servidores, fundações e órgãos em extinção. Enfim, conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental não induz tarefa fácil, mas creio que as quatro dimensões do Desenvolvimento Sustentável podem auxiliar como guias orientadores: desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, proteção ambiental e governança ambiental. Lembrando sempre que o meio ambiente é estruturante. Não há atividade econômica sem recursos naturais e serviços ecossistêmicos.

IHU On-Line – De que forma podemos compreender o investimento em mineração de carvão, uma vez que essa prática já vem sendo abandonada em muitos países?

Ana Marchesan – Creio que a pergunta deva ser dirigida à Secretaria de Meio Ambiente - Sema e Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler – Fepam. Intuo que seja em razão de o Estado do Rio Grande do Sul ostentar reservas enormes de carvão.

IHU On-Line – Como a senhora avalia a legislação ambiental brasileira no que diz respeito às atividades de mineração?

Ana Marchesan – A legislação ambiental brasileira como um todo – e não somente em relação à mineração – vem sendo desconstruída. Proteção ambiental, ao contrário do movimento que norteou o arcabouço legal das décadas de 1970 e 1980, passou a ser identificado como atraso no progresso. Assim, o atual governo, de matriz ultraliberal, tende a desregulamentar tudo, liberar geral. Partem do princípio – equivocado na minha visão – de que a pior poluição é a causada pela pobreza.

IHU On-Line – Recentemente, o país ficou atônito com as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. O que esses episódios revelam acerca da mineração no Brasil do século XXI? O que se aprendeu e o que ainda não foi compreendido com esses tristes episódios?

Ana Marchesan – O aprendizado com esses terríveis episódios não terminou. Serão anos para recuperar o ambiente degradado e sobretudo restabelecer as funções e serviços ecossistêmicos. Uma lição é a necessidade de estabelecermos mecanismos de garantia para a recuperação das áreas degradadas com mineração. Também devemos revisar as barragens de rejeitos, sobretudo a montante de comunidades.

Região do município de Charqueadas, entre Guaíba e Charqueadas, onde se pretende instalar a Mina Guaíba (Ilustração: Wikipedia)

IHU On-Line – A senhora atua há muitos anos junto à Promotoria de Meio Ambiente. Quais os desafios, nesse espaço do Direito, para se tensionar e propor alternativas, outras formas de vida que aliem preservação ambiental e desenvolvimento?

Ana Marchesan – Esse desafio é diário no trabalho da Promotoria. Somos vistos, inclusive por nossos pares, como “ecochatos”, “ecoxiitas” etc. Entretanto, creio que o trabalho em grupo dos promotores e o trabalho em rede com outras instituições e com a comunidade afetada são a solução e ao mesmo tempo a especificidade de nossa Promotoria.

IHU On-Line – Que respostas e caminhos o Direito pode apresentar para frear a crise ambiental e incrustar na sociedade uma outra consciência ecológica?

Ana Marchesan – Essa resposta é de extrema complexidade, abordo o tema em meu livro “O Fato Consumado em Matéria Ambiental” (Salvador, BA: Juspodivm, 2019). O Direito geralmente chega tarde para atuar. As questões ambientais são complexas e dinâmicas. Justamente por isso são desafiadoras. O Direito tende a uma estabilidade. A natureza não. Conciliar a proteção da lei com o objeto protegido – meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado – é bastante difícil.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ana Marchesan – No tocante à mineração do carvão, considero muito importante que a sociedade se informe e ocupe espaços públicos de manifestação. Está em jogo um patrimônio transgeracional de extrema relevância para Porto Alegre e região metropolitana.

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