Boko Haram, uma questão não só nigeriana nem "islâmica"

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07 Julho 2014

Nesta entrevista, o bispo de Sokoto explica a gênese e o desenvolvimento do Boko Haram, movimento terrorista que está semeando divisão na Nigéria, país rico e pobre ao mesmo tempo, com ataques e sequestros que atacam vítimas inocentes, como mulheres estudantes e crianças.

A reportagem é de Claudio Fontana, publicada no sítio da Fundação Oasis, 26-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Sobre o Boko Haram, o grupo terrorista que continua atacando de forma cruel na Nigéria, sequestrando meninas e meninos e matando cegamente, Dom Matthew Hassan Kukah, bispo da diocese de Sokoto, já é um especialista.

A sua diocese também sente a sua pesada e constante ameaça. Sede histórica do Califado, Sokoto se estende por mais de 100 mil quilômetros quadrados, que abrangem quatro Estados da República Federal da Nigéria e têm uma população de 12 milhões de habitantes, dos quais 5% são cristãos e, dentre eles, 60 mil católicos.

Eis a entrevista.

Excelência, o senhor vê uma correlação entre a situação de pobreza generalizada e de instabilidade econômica do país e o nascimento e difusão de um movimento terrorista como o Boko Haram?

A tese do nexo causa-efeito entre pobreza e capacidade de apego da população a uma mensagem fanática e violenta é muito difundida. No entanto, a pobreza pode ser uma condição necessária, mas certamente não suficiente para explicar o Boko Haram. Esse grupo terrorista, de fato, não nasceu de pessoas pobres, mas, ao contrário, justamente de pessoas que tinham acesso a importantes recursos econômicos. Não é uma questão de pobreza: hoje os afiliados ao Boko Haram são jovens muçulmanos que viajaram para muitas regiões diferentes do mundo muçulmano.

São filhos de pessoas muito privilegiadas, como se evidencia do caso do terrorista que estava prestes a explodir o avião rumo aos Estados Unidos no Natal de 2009: o seu pai é um dos homens mais ricos da Nigéria. Portanto, não é questão de pobreza, mas de radicalização da sociedade muçulmana: muitos jovens muçulmanos da Nigéria entram em contato com outros muçulmanos através de peregrinações a lugares em que a Al Qaeda e outros movimentos extremistas são dominantes. Essas pessoas vêm à Nigéria e são amplamente responsáveis pela situação que vivemos agora.

Então, o Boko Haram é apenas em parte um problema interno da Nigéria. Quanto ela se beneficia de influências externas? Por que a Nigéria não consegue efetivamente controlar as suas fronteiras?

Há muita corrupção na Nigéria: corrupção na burocracia, corrupção dentro do exército, corrupção nos serviços de controle da imigração, muitas pessoas de má reputação estão pagando para entrar na Nigéria. Se você olhar para o norte da Nigéria, poderá observar que existem enormes territórios onde é possível se mover livremente, até porque no Chade, no Níger e em partes do Sudão, sob a égide da religião, as pessoas são livres para se deslocar.

Além disso, no Camarões e na Nigéria, fala-se a mesma língua, de modo que não é possível distinguir quem é criminoso e quem não é. Ninguém sabe o número exato, mas claramente um percentual significativo das pessoas envolvidas no Boko Haram não é nigeriano. Há pessoas que vêm de diversas nações: Mali, Somália, jovens muçulmanos em busca de ação, especialmente depois do colapso do regime na Líbia. Essa é uma parte do problema: não é suficiente enfrentar o Boko Haram se não se tiver o controle das fronteiras.

O Boko Haram se financia mediante o tráfico de drogas, mediante ataques criminosos a bancos, roubam muitas pessoas e também recorrem aos sequestros de pessoas, principalmente de brancos, estrangeiros, trabalhadores da construção civil. A partir desses sequestros, eles obtêm grandes somas de dinheiro, porque sempre encontraram famílias que pagaram milhões de dólares. São esses elementos criminosos que financiam o Boko Haram, uma questão de criminalidade, não de Islã.

Sobre os sequestros, o mundo inteiro ficou chocado com o rapto de centenas de jovens estudantes nigerianas, e se espalhou de modo quase viral a campanha midiática #BringBackOurGirls, que envolveu personalidades de várias fontes. Como essa mobilização foi percebida por aqueles que vivem na Nigéria?

Na minha igreja, também organizamos uma missa e saímos às ruas em 1.500 fiéis para dizer "bring back our girls", tragam de volta as nossas meninas. Portanto, nós também participamos da campanha. A Igreja Católica na Nigéria teve um dia em que cada diocese, cada igreja que podia organizou uma hora de oração para as jovens. A campanha foi algo que provocou muito interesse na Nigéria. Além disso, em relação à eficácia da campanha, pode-se observá-la a partir de dois níveis. Foi possível aumentar o porte da campanha quando pessoas como Michelle Obama, David Cameron, atores e atrizes ou indivíduos de alto perfil começaram a aderir a ela, chamando a atenção internacional para a campanha.

E depois disso Obama disse que os norte-americanos estão vindo para a Nigéria, os israelenses estão vindo, os franceses estão vindo, os britânicos estão vindo. Pode-se considerar isso como um resultado da campanha. O segundo ponto é que conhecemos apenas em parte a eficácia da campanha, porque não sabemos se os norte-americanos com os sofisticados equipamentos que têm e a inteligência internacional também poderão trazer as meninas de volta, porque agora está claro que elas foram divididas e não estão mais todas em um único lugar.

Se não é possível esperar que a inteligência ou os militares libertem as meninas, permanece aberto o caminho das negociações com o Boko Haram?

Eu acho que o debate na Nigéria se volta à questão do diálogo com o Boko Haram. Eles defendem que estão abertos às negociações, mas também dizem que parte do problema é que o governo nigeriano não confia neles durante as negociações. Há três pontos críticos, diz o Boko Haram: "Pedimos o diálogo, mas queremos três coisas. Primeira: liberem os nossos membros presos. Segunda: indenizem-nos, reconstruam as nossas mesquitas e as nossas casas que foram destruídas". Por fim, eles acusam o governo por ter prendido alguns dos seus afiliados que tomaram a iniciativa das negociações. Se o governo não aceitar essas condições, o Boko Haram não iniciará as negociações.

Claramente, com um pouco mais de sofisticação e com o governo um pouco mais desenvolto, eu acho que seria possível ter algum tipo de negociação informal. Mas agora o Boko Haram disse que não está mais interessado nas negociações, provavelmente por causa da frustração de alguns membros da comunidade muçulmana que tinham se exposto e tinham participados das negociações, mas depois voltaram atrás, pensando que o governo não era sério. O ex-presidente Obasanjo foi a primeira pessoa a ter um encontro com o Boko Haram e ainda está em contato com eles. Infelizmente, por razões estranhas, parece que o atual presidente não está cooperando com ele.

Obasanjo teve um encontro com emissários do Boko Haram e, depois da reunião, afirmou que não tem certeza de que as meninas poderão voltar. Mas também afirmou que o governo federal não reconheceu publicamente o seu papel e não lhe disse para continuar. Portanto, também devemos considerar esses aspectos ligados à política doméstica.

Não podemos esperar, portanto, que a solução para o "problema Boko Haram" possa vir das políticas do governo?

Acima de tudo, devemos entender que, desde o 11 de setembro até agora, os Estados Unidos estão combatendo o terrorismo, com todos os sofisticados meios que possuem. Em toda a Europa, estão se protegendo, e a ausência de ataques em Londres, Nova York ou Paris é o resultado da eficácia dos pesos e contrapesos implementadas pelos EUA, e certamente não do fato de que os terroristas, por escolha própria, se renderam.

Assim, para uma nação como a Nigéria, com a sua extensão, devemos aceitar que não há soluções simples. Sob a condição de que os políticos nigerianos se dispusessem a não deslizar para a rixa política, se poderia obter um pouco de alívio, porque parte da discussão com o Boko Haram, da forma como eu entendo, incluía um período de cessar-fogo, que o Boko Haram parecia preparado para conceder, antes que a discussão se interrompesse. Parte do problema, portanto, é que nem o governo nem ninguém mais parece ser capaz de encarregar pessoas suficientemente confiáveis para desempenhar o papel de mediadores. Para mim, essa é a questão crucial.

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