Enfrentar a fome com a força das nossas lutas

14 Abril 2021

 

A pobreza e a fome no Brasil aumentaram com a pandemia. Organizações da sociedade civil se manifestam.

Manifesto reproduzido pelo portal da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, 13-04-2021.

 

Eis o Manifesto.

 

O Brasil havia saído do mapa da fome.

Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2%, o nível mais baixo até então, o que fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) excluísse o Brasil do Mapa da Fome.

 

Mas o Brasil voltou ao mapa da fome,

não apenas pela crise econômica e social que se agravou com a pandemia, mas pelo avanço da agenda conservadora e neoliberal e o descaso de governos (Temer e Bolsonaro) que ignoram o papel que devem cumprir na garantia do direito humano à alimentação.

 

A pobreza e a fome no Brasil aumentaram com a pandemia,

mas suas dimensões ainda não são totalmente conhecidas, porque o negacionismo do atual governo e a retirada de recursos têm comprometido a realização de censos, pesquisas e inquéritos nacionais desenvolvidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

Tem gente com fome e não podemos ignorar.

Por isso a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN) realizou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Os números são alarmantes.

 

 

A fome retornou aos patamares de 2004.

E o retrocesso mais acentuado se deu nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018 a insegurança alimentar grave (fome) teve um crescimento de 8,0% ao ano. A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, o aumento da fome foi de 27,6%. Nos últimos dois anos, o número de pessoas em situação de fome saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões. Isso é muito grave e viola todos os compromissos do Brasil com a garantia da alimentação como direito.

 

A fome é mais aguda no Norte (18,1%) e no Nordeste (13,8%),

Entre as populações rurais, quilombolas, indígenas e ribeirinhas (12%), nos domicílios chefiados por mulheres (11,1%), habitados por pessoas pretas e pardas (10,7%), e nos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto (14,7%).

 

A fome anda acompanhada da sede.

A insegurança hídrica atingiu, em 2020, 40,2% e 38,4% dos domicílios do Nordeste e Norte, respectivamente, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões.

 

A fome aumentou nas favelas e nas ruas das cidades.

Estudo feito pelo Instituto Locomotiva, em parceria com a Central Única de Favelas (Cufa) em 76 comunidades mostrou que 80% das famílias moradoras têm se alimentado graças a doações de alimentos. Nas cidades, o número de pessoas em situação de rua aumenta visivelmente, enquanto a falta de dados torna esse grupo crescente ainda mais invisível ao Estado do que nunca.

 

 

A fome não para de aumentar porque cada vez mais se intensificam as medidas de austeridade.

Estas medidas foram incorporadas à Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional nº 95. Elas limitam drasticamente os recursos dos Sistemas de Saúde (SUS), de Assistência Social (SUAS) e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN).

 

O preço dos alimentos não para de subir porque não contamos mais com políticas de abastecimento e de fortalecimento da agricultura familiar.

A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), que tem como uma de suas atribuições, estocar alimentos para garantir o abastecimento interno e o preço de alguns alimentos básicos, além de um preço mínimo para produtores, está sendo desmontada. O enfraquecimento deste órgão e de seus estoques, e também das centrais de abastecimento (CEASAs), tem impacto no aumento do preço dos alimentos. Sem uma política nacional de abastecimento para a regulação dos preços e a distribuição de alimentos in natura, apenas grandes produtores e redes de supermercado monopolizam o mercado, gerando nos sistemas alimentares uma concentração ainda maior de riquezas. As grandes redes de supermercados não param de lucrar com o aumento da fome, apesar disso prevalece cada vez mais a fé cega nas políticas ultraneoliberais e de autorregulação do mercado de alimentos.

 

Não tem mais comida no prato dos brasileiros porque em 2020 a inflação do arroz chegou a 76% e a do feijão a 68%, e a do óleo de soja a 103%.

O Ministério da Agricultura ignora por completo as necessidades de abastecimento alimentar do povo brasileiro, enquanto comemora a safra recorde de exportação de mais de 270 milhões de toneladas de grãos neste mesmo ano. A desvalorização do Real favorece as exportações, a concentração da produção nacional na soja e no milho e a estagnação da produção de alimentos para o consumo doméstico. Os governantes conheciam as estimativas da CONAB que mostravam que a área cultivada de arroz e feijão vinha paulatinamente diminuindo e nada fizeram.

 

Tem fome no campo e na cidade porque o governo nega a importância da agricultura familiar e o papel desempenhado pelas mulheres na produção de alimentos.

Extinguiram o Ministério do Desenvolvimento Agrário e acabaram com a assistência técnica e extensão rural e a reforma agrária. Não há mais um Plano Safra específico para a agricultura familiar, como havia até 2018, o que evidencia o não reconhecimento social e econômico da agricultura familiar e camponesa na produção dos alimentos que chegam à mesa da população brasileira.

O descaso com a agricultura familiar ficou ainda mais evidente quando o Governo Bolsonaro vetou quase integralmente a Lei Assis de Carvalho (Lei nº 14.048/2020) que estabelecia medidas de apoio à produção e escoamento de alimentos a agricultores e agricultoras familiares durante a pandemia. Também quando vetou o auxílio emergencial (Lei nº 13.982/2020) para esse segmento. Além disso, apresentou a Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2021, com recursos extremamente reduzidos para a agricultura familiar, inclusive retirando a referência às “mulheres rurais”.

 

Há menos comida de verdade a preços acessíveis em nossos pratos, porque cada vez mais se estimulam os monocultivos e o consumo de ultraprocessados.

Frutas, legumes e verduras estão cada vez mais caros e nossos alimentos tradicionais estão desaparecendo porque cada vez mais são incentivados os monocultivos, o que tem levado à redução das variedades, à perda da agrobiodiversidade e de nossas culturas alimentares. Muitos alimentos tradicionais (de produção familiar), principalmente de origem animal, nem sequer chegam ao mercado, barrados por exigências sanitárias e higienistas. Enquanto isso, a indústria de alimentos incentiva de forma irresponsável e desregulamentada o consumo de alimentos ultraprocessados, que adoecem cada vez mais a nossa população.

 

Falta comida de verdade para alimentar nossa gente porque nossos camponeses, povos indígenas e povos tradicionais do campo, das florestas e das aguas estão sendo expulsos de suas terras.

O Estado brasileiro permite a invasão de grileiros, posseiros, garimpeiros e madeireiros em terras indígenas e territórios quilombolas (e de populações tradicionais), provocando a expulsão e o genocídio desses povos. Enquanto isso promove injustos despejos e reintegrações de posse, coletivos e individuais, em áreas rurais e urbanas, violando o direito à terra e ao território dos (as) agricultores (as) familiares, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, povos originários e população urbana empobrecida. Os modos de vida tradicionais estão sendo duramente ameaçados e suas lideranças estão sendo brutalmente assassinadas.

 

Tem fome porque alimento virou mercadoria.

Enorme parcela do território brasileiro está sendo destinada ao cultivo de commodities agrícolas e minerais para a exportação, e para a especulação de fundos estrangeiros, que veem na terra um ativo financeiro. A devastação causada pelo “agro”, que se diz “pop”, agrava o colapso climático e contribui para o surgimento de pandemias, como a que vivemos hoje. A nível global, as corporações do agro sequestraram a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, que deveria estar propondo caminhos para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, e ao invés disso nos apresenta “falsas soluções”.

 

Comemos cada vez mais comida envenenada, e menos comida saudável porque há cada vez mais agrotóxicos e menos políticas de apoio à agroecologia.

Agrotóxicos e suas isenções fiscais estão sendo liberados de forma cada vez mais rápida e irresponsável, contaminando nossas terras e águas, e provocando internações por intoxicações. A bancada ruralista do Congresso Nacional, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária mantêm como prioridade a aprovação do Projeto de Lei do Veneno (PL nº 6299/02). O governo Bolsonaro extinguiu a Comissão e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.

 

No semiárido, além de fome, há sede porque o governo não prioriza o acesso à água como direito.

O Programa de Cisternas no Semiárido, que contribui para o abastecimento de água para o consumo e produção de milhões de famílias, foi abruptamente interrompido. O projeto de universalização de água nas escolas também foi abandonado.

 

Nossas crianças e adolescentes estão com fome porque as cestas da alimentação escolar não estão sendo devidamente distribuídas.

Com a suspensão das aulas, estudantes da rede básica de ensino deixaram de comer nas escolas públicas, e muitos governadores e prefeitos, autorizados a distribuir cestas de alimentos com os recursos do Programa Nacional de Alimentos (PNAE) não garantiram o atendimento regular e de qualidade a todas as famílias. A grande maioria deixou de comprar da agricultura familiar, comprometendo a renda das famílias agricultoras e os circuitos locais de abastecimento popular. Recentemente o agronegócio vem ameaçando o PNAE com a tentativa de reserva de mercado para seus frigoríficos e laticínios, em detrimento da prioridade de compra de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

 

Há fome porque nosso Estado exerce cada vez mais o racismo institucional e a intolerância religiosa.

Essa condição estrutural alija a população negra, indígena, refugiada e migrante das políticas sociais e de seus direitos fundamentais. Ela reforça a segregação social e racial e as diversas formas de discriminação a que são submetidos povos e comunidades tradicionais de matriz africana e povos originários. A juventude negra segue morrendo nas periferias das cidades, sem oportunidades de produzir nos seus territórios e tendo seus direitos negados.

 

Falta comida na mesa porque há desigualdade de gênero.

As mulheres, do campo e da cidade, historicamente responsáveis pela produção de comida de verdade e pela alimentação das famílias, são as mais atingidas pela redução drástica de renda, pelo desemprego, pela sobrecarga de trabalho e pelo aumento da violência doméstica. São as últimas a se alimentarem do pouco que tem pois protegem as crianças, seus pais e avós. As mulheres do campo, da floresta e das águas têm um papel importante nos cuidados com a alimentação e a agroecologia, mas não tem mais apoio do governo para aumentar e diversificar seus plantios.

 

Não há medidas para o enfrentamento da fome porque está acontecendo um desmonte sistemático dos Sistemas de Segurança Alimentar e Nutricional e de Assistência Social.

O governo Bolsonaro é inimigo do controle e da participação social. O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) foi fortemente impactado. Exemplo disso foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que era responsável pela elaboração e monitoramento das políticas nacionais voltadas para a garantia do direito humano à alimentação, e a promulgação do Decreto 9.759/2019 que provocou uma onda de ataques e extinção de conselhos nacionais de políticas públicas e de direitos.

O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) está em processo acelerado de desestruturação, com o fechamento dos Centros de Referência em Assistência Social (Cras), esvaziamento do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e sua substituição pelo autocadastramento via aplicativos de celular, o que vai desestruturar o Bolsa Família. Ignoram o potencial de implementação de uma Política de Renda Básica.

 

 

O medo de sentir fome não para de aumentar porque o auxílio emergencial foi interrompido em um contexto de desemprego e precariedade das condições de trabalho.

Sua retomada em 2021 ocorre tardiamente e com valor reduzido.(4 parcelas que variam entre R$ 150 e R$ 375). É insuficiente e muito aquém dos R$ 600 demandados pela sociedade. O cadastramento digital é excludente aos grupos em situação de maior vulnerabilidade. Deixa de fora milhares de famílias sem acesso digital e que não conseguiram solicitar o auxílio em 2020, e que seguirão excluídas pois não haverá novo cadastramento.

 

Por isso expressamos:

É nosso compromisso com todas as lutas de resistência e solidariedade que se fortaleceram nestes tempos de pandemia.

Em março de 2020, diante do gravíssimo contexto da pandemia global do COVID 19, as 22 organizações, movimentos e coletivos que fazem parte da Comissão Organizadora da Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, lançaram o documento “Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar!”, ao qual aderiram mais de 120 outras. O documento apresentava um conjunto de propostas de combate à fome a serem implementadas, em caráter urgente e emergencial, pelos governos nas esferas federal, estadual e municipal. Após 1 ano, o que constatamos é que muito pouco, ou quase nada foi feito.

Desde o início da Pandemia, quando já estávamos em uma situação social e econômica deteriorada, a sociedade civil se mobilizou, por todo país, em redes de solidariedade para a doação de alimentos, muitas delas estabelecendo a conexão entre agricultores/as familiares e moradores/as das cidades. Foram também potentes as mobilizações para a incidência política no congresso nacional, com importantes conquistas como a Lei Aldir Blanc, a autorização para a distribuição das cestas da alimentação escolar, a ampliação dos recursos destinados excepcionalmente ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Nas eleições municipais mais de 1.200 candidates se comprometeram com a agenda da agroecologia, sendo que destes 47 prefeitos/as e 125 vereadores/as foram eleitos/as.

Estas experiências demonstram a força e união de nossos movimentos. Existimos e Resistimos. Não nos iludimos com falsas soluções, não nos rendemos ao senhor-mercado, ao negacionismo, ao fanatismo e preconceito de qualquer origem. Semeamos, plantamos, produzimos, pesquisamos, comunicamos, cuidamos e consumimos de forma consciente, ética e sustentável. Nossas culturas, saberes e trajetórias trazem possibilidades realizáveis de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e de políticas públicas que garantem direitos. Somos povos das terras, águas e florestas, unidos em solidariedade e comunhão por direitos, democracia, soberania e segurança alimentar e nutricional.

 

Fora Bolsonaro

 

Assinam esse manifesto

Comissão Organizadora da I Conferência Nacional, Popular, Autônoma: por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) Ação da Cidadania, Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APN), CPCE – Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Coletivo Indígena, Coletivo de Ex-Presidentes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas- CONAQ, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), FIAN Brasil, FONSANPOTMA – Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN), Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Slow Food Brasil.

 

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