“Os noivos” e os arquétipos sacerdotais da pandemia na Itália

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03 Abril 2020

Com toda a honestidade, relativamente poucas coisas mantêm a Itália unida como nação. O país só foi unificado politicamente em 1870, e linguisticamente os 34 dialetos e línguas diferentes falados aqui só geraram o “italiano” de hoje (na realidade, o dialeto da Toscana) nos anos 1920, quando Mussolini baniu o uso dos dialetos regionais em público e ordenou que escolas, mídias e escritórios do governo usassem uma língua comum.

O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux, 02-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

No entanto, uma coisa que os italianos compartilham há mais de 150 anos é uma paixão por Alessandro Manzoni e o seu célebre romance “Os noivos”, publicado pela primeira vez em 1827 e em uma edição revisada entre 1840 e 1842.

Situado no século XVII, o livro, por um lado, é uma história épica de amor, envolvendo os jovens amantes Renzo e Lucia e seus embates com um maldoso conde para finalmente se casarem (em maio de 2015, o Papa Francisco recomendou que os noivos leiam o livro antes do casamento, durante uma de suas Audiências gerais).

Em outro sentido, “Os noivos” é uma reflexão sobre a condição humana, incluindo o pecado e o perdão, o sacrifício e o egocentrismo, e o que a integridade moral implica em tempos confusos.

Em nenhum lugar esse tema é mais claro do que no contraste entre dois padres que aparecem com destaque no livro: “Pe. Abbondio”, o modelo de um clérigo carreirista interessado apenas em uma vida fácil, evitando dissabores; e o “Frei Cristóvão”, um capuchinho que se dedica ao serviço aos pobres e marginalizados, e que bravamente fala a verdade ao poder.

Como grande parte do romance se desenrola no contexto de um surto da peste, não é de se surpreender que a famosa obra de Manzoni tenha sido muito citada no mês passado, enquanto a Itália lidava com a maior contagem de mortes pelo coronavírus do mundo – 12.428 fatalidades na quarta-feira, um aumento de 837 em relação ao dia anterior.

No dia 15 de março, durante o discurso de domingo no Ângelus, Francisco fez referência a Manzoni para esclarecer uma questão. Ele elogiou os padres que, segundo ele, estão encontrando formas criativas de estar com seu povo, apesar de um confinamento nacional que entrou em vigor quatro dias antes.

Estes, disse o papa, são “sacerdotes com zelo apostólico, que entenderam bem que, em tempos de pandemia, não se deve ser o Pe. Abbondio”.

Mais recentemente, Vittorio Messori, o escritor católico vivo mais famoso da Itália, lamentou aquilo que ele vê como uma falta de freis Cristóvãos em uma entrevista ao site La Nuova Bussola Quotidiana. Ele foi questionado sobre as diretrizes do governo para evitar reuniões públicas, o que levou à suspensão de missas e funerais públicos.

“Não me escandaliza que a Igreja siga as disposições do governo”, respondeu Messori. “Em vez disso, o que eu acho que falta é aquilo que a Igreja sempre fez durante as pestes: mobilizar as suas tropas como tantos freis Cristóvãos.”

“Isso não descarta que muitos padres vivem assim hoje (...) mas certos atos de heroísmo são mais iniciativas pessoais do clero, não há uma espécie de chamado às armas”, disse.

Embora o papa e Messori sejam celebridades culturais, em conversas informais com italianos agora, em mensagens nas mídias sociais e em postagens em blogs, em artigos de jornal, quase todos os dias, é possível encontrar referências a Abbondio e a Cristóvão. Vários padres que morreram em meio ao coronavírus foram amplamente comparados a Cristóvão, incluindo o Pe. Fausto Rasmini, de Bérgamo, que provavelmente contraiu o vírus enquanto visitava os presos, e o Pe. Giampietro Vignandel, de Trento, um capuchinho como Cristóvão, que provavelmente ficou doente gerindo um refeitório diário para os pobres e sem-teto da cidade.

Para deixar claro, o contraste entre Cristóvão e Abbondio não é uma história direta sobre o bem e o mal, porque Abbondio não é realmente mau. Ele é fraco, covarde e presunçoso, mas não comete grandes atrocidades e não faz nenhum mal, a menos que seus interesses próprios estejam em jogo.

Nesse sentido, Cristóvão e Abbondio se tornaram os arquétipos sacerdotais da pandemia da Itália: eles não são um herói e um vilão, mas sim o risco versus a segurança, o compromisso versus a carreira, a virtude extraordinária versus a complacência comum.

De certa forma, é análogo ao “padre uísque” de Graham Greene em “O poder e a glória”, exceto que, onde Manzoni separou as tendências em duas figuras distintas, Green as misturou no mesmo personagem.

Dois outros pontos parecem dignos de nota sobre a célebre dupla de Manzoni.

Primeiro, em “Os noivos”, Abbondio sobrevive à peste em boa forma. Sua última aparição, na verdade, é quando um nobre aparece em um jantar para os recém-casados Renzo e Lucia antes de se retirar com o Pe. Abbondio e outros membros da classe alta para uma refeição privada superior.

Cristóvão morre, e nem sequer testemunhamos as suas últimas horas. Manzoni, ao contrário, faz com que Lucia fique sabendo da morte deles por meio dos companheiros capuchinhos no Lazzaretto, ou seja, a zona de quarentena para as vítimas da peste em Milão. Depois, ele escreve que ela recebeu a notícia “com mais tristeza do que surpresa”.

A moral pode ser que, embora possa haver justiça perfeita na próxima vida, isso nem sempre é verdade no aqui-e-agora.

O outro ponto é que Manzoni tinha uma maneira italiana clássica de ver o clero, fruto de séculos de experiência de viver lado a lado, e às vezes sob o domínio, da classe clerical do catolicismo.

A relação de Manzoni com a hierarquia católica da sua época era tensa, muitas vezes. Ele era um católico fervoroso, mas também um forte defensor do Iluminismo, opondo-se à linha antimodernista do Vaticano durante boa parte do século XIX. A ambivalência era mútua. Quando ele morreu em 1873, a revista La Civiltà Cattolica, a revista vaticana semioficial e editada pelos jesuítas, lamentou que Manzoni estava sendo excessivamente festejado por “esses liberais sempre falsos e mentirosos”.

Talvez por causa desses bastidores, Manzoni não tinha problemas em ver tanto patifes quanto heróis, gigantes e anões morais dentro da classe clerical. Sua fé estava enraizada na graça de Deus, não em um senso exaltado do que esperar rotineiramente dos ministros humanos de Deus.

Independentemente do que se pense sobre as outras crenças de Manzoni, essa provavelmente é uma intuição que vale a pena preservar – o catolicismo será sempre uma mistura dos padres Abbondios e dos freis Cristóvãos, e a história completa da Igreja em um dado momento necessariamente envolve os dois.

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