Só Jesus conhece as fronteiras da Igreja

Foto: Flickr/Philip Yuan

24 Setembro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 26º Domingo do Tempo Comum, 26 de setembro de 2021 (Marcos 9,38-43.45.47-48). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O texto evangélico deste domingo se apresenta composto, relatando uma série de palavras de Jesus pertencentes a contextos diversos e heterogêneos, mas ligadas por algumas expressões recorrentes: “no teu/meu nome”, “escandalizar”, “fogo e sal”.

 

Por isso, vou me deter mais amplamente no episódio do exorcista que realiza ações de libertação embora não seguindo Jesus; depois, buscaremos uma compreensão geral das “sentenças”, das admoestações reunidas por Marcos nesse contexto.

 

Jesus está continuando o caminho rumo a Jerusalém junto com os seus discípulos, mas o clima comunitário não é pacífico. Ele faz anúncios da sua paixão, e os discípulos não entendem (cf. Mt 9,32) ou se rebelam, como Pedro (cf. Mc 8,31-33). Quando, na ausência de Jesus, pedem aos discípulos para curar um menino epiléptico, talvez julgado possuído por um espírito impuro, eles se mostram incapazes de libertá-lo da doença (cf. Mc 9,14-29). Por fim, todos os Doze começam a discutir sobre “qual deles era o maior” (Mc 9,34). Sim, entre Jesus e a sua comunidade já há distância, incompreensão.

 

Se o passo de Jesus é sempre convicto, com um propósito específico que lhe requer uma obediência radical, o dos discípulos, ao contrário, é incerto e desviante. No Evangelho segundo Marcos, toda a viagem rumo à Cidade Santa será caracterizada por essa tensão entre Jesus e os seus, pela incompreensão por parte de todos, sem excluir ninguém.

 

E eis que, pontualmente, um novo episódio atesta tal estado das coisas: João, “o filho do trovão” (cf. Mc 3,17), o irmão de Tiago, um dos primeiros quatro chamados (cf. Mc 1,16-20), um dos discípulos mais íntimos de Jesus, testemunha privilegiada da sua transfiguração (cf. Mc 9,2), vê um homem que expulsa demônios, realiza ações de libertação dos doentes em nome de Jesus, embora não fazendo parte da comunidade, portanto, não seguindo Jesus com os outros discípulos.

 

Então, ele se dirige ao encontro de Jesus e declara resolutamente: “Vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue”. O que há nessa reação de João? Certamente, um zelo mal orientado, mas um zelo que revela um amor por Jesus, um ciúme em relação a ele: se alguém usa o nome de Jesus, deveria segui-lo e, portanto, formar corpo com a sua comunidade...

 

Porém, misturado com esse sentimento, há também um espírito de pretensão, o pensamento de que só os Doze estão autorizados a realizar gestos de libertação em nome de Jesus; existe um senso de pertencimento que exclui a possibilidade do bem para quem está fora do grupo comunitário; existe a vontade de controlar o bem que é feito, para que seja imputado à instituição à qual se pertence.

 

Aqui estão retratadas as nossas patologias eclesiais, que às vezes emergem até envenenar o clima na Igreja, até criar divisões e oposições no seu interior, até fazer da Igreja uma cidadela que se ergue contra o mundo, contra os outros homens e mulheres, todos considerados no espaço das trevas.

 

Devemos confessar com franqueza: nas últimas décadas, o clima da Igreja foi envenenado desse modo, e essa doença, apesar das contínuas advertências do Papa Francisco, ainda não foi vencida. Há porções eclesiais que se erguem a juízes dos outros, que se consideram uma Igreja melhor do que a dos outros. Há cristãos que, com certezas graníticas, julgam os outros que estão fora da tradição ou da Igreja Católica e esperam poder ouvir da autoridade eclesiástica condenações contra aqueles que não se assemelham a eles ou não fazem parte do seu grupo, sujeito a tentações sectárias.

 

Ai da comunidade cristã que acha que é uma Igreja perfeita, ai da autorreferencialidade e da autarquia espiritual, atitudes de quem acha que não precisa dos outros membros, porque crê em si mesmo como membro do corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,12-27).

 

Jesus nunca mostrou ser totalitário, excludente e nunca obrigou ninguém a segui-lo e a fazer parte da sua comunidade. Nenhum proselitismo! Ao mesmo tempo, como Cristo ressuscitado, Jesus é o Senhor de toda a Igreja e só ele conhece os seus (cf. 2Tm 2,19): portanto, não cabe aos seus, ou aos pretensos seus, julgar os outros como ervas daninhas, até tentar extirpá-las (cf. Mt 13,24-30). Cristo transcende as fronteiras de toda comunidade cristã e pode fazer o bem de muitas formas por meio do poder do seu Espírito Santo, que “sopra onde quer” (Jo 3,8). Na Igreja, infelizmente, sofre-se dessa doença do “exclusivismo” e facilmente não se reconhece ao outro a capacidade de fazer o bem, de agir pela libertação da pessoa dos males que a oprimem.

 

O Papa Francisco, nestes poucos anos de pontificado, denunciou várias vezes esses males eclesiásticos, pedindo especialmente que os cristãos pertencentes aos movimentos evitem desvios sectários e aprendam a caminhar junto com os outros cristãos, não separados, não acima, não com itinerários em oposição.

 

A diversidade é riqueza, é multiforme graça do Espírito que torna policrômica a Igreja, esposa do Senhor (cf. Ef 3,10), torna-a mais bela e pronta para as núpcias com o Messias (cf. Ap 19,7; Ef 5,27). Se alguém faz o bem em nome de Cristo, esse bem deve ser, acima de tudo, reconhecido, não negado, e depois é preciso ter confiança nele: se faz o bem em nome de Jesus, poderá talvez, logo depois, falar mal dele? “Quem não é contra nós é por nós”, afirma o mesmo Jesus.

 

Ou seja, ele nos exorta a aceitar que não somos os únicos que fazem o bem, que aceitam que outros, diferentes de nós, que sequer conhecemos, possam realizar ações marcadas pelo amor. Também é preciso ter em mente que há muitos que, aparentemente, seguem Jesus, profetizam, expulsam demônios e fazem milagres no seu nome (cf. Mt 7,22), que talvez também tenham uma prática de escuta da sua palavra e uma prática sacramental eucarística (“Nós comíamos e bebíamos diante de ti, e tu ensinavas em nossas praças!”: cf. Lc 13,26). Todos estes, porém, não são garantidos pelo seu pertencimento e poderão ser estranhos ao Senhor, que lhes dirá: “Nunca os conheci. Afastem-se de mim, todos vocês que praticaram o mal!” (Mt 7,23; Lc 13,27).

 

Portanto, a verdadeira pergunta que devemos nos fazer não é: “Quem é contra mim, contra nós?”, mas sim: “Sou eu, somos nós de Cristo?”. O apóstolo Paulo escreve: “Tudo é de vocês; mas vocês são de Cristo e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23). Ou seja: se não somos de Cristo, se não temos os seus “modos” (cf. Didaquê 11,8), se não assumimos os seus comportamentos e o seu pensamento (cf. 1Cor 2,16), não somos nada: não temos sal em nós mesmos, mas somos como o sal insípido (cf. Mc 9,50), que “só serve para ser jogado fora e ser pisado” (Mt 5,13).

 

A nossa responsabilidade é lutar todos os dias contra nós mesmos, não contra supostos inimigos externos, porque nada nem ninguém pode nos impedir de viver o Evangelho, senão nós!

 

Quanto às sentenças de Jesus referentes ao escândalo (vv. 42-50), hoje sentimos uma certa dificuldade para aceitar a sua radicalidade. Porém, devemos estar vigilantes para não as remover ou as diluir. É bem verdade que elas não podem ser cumpridas ao pé da letra por meio de atos de mutilação física, para impedir a ação má, mas devem ser acolhidas como severas advertências.

 

Escandalizar significa colocar obstáculos no caminho “destes pequeninos que creem” (mikrôn toúton tôn pisteuónton) e fazer uma ação que, para eles, é mortífera. O melhor, nesse caso, é dar a morte a si mesmo!

 

O discípulo deve vigiar sobre o seu comportamento, sobre os órgãos da comunicação de que é dotado (mãos, pés, olhos, isto é, o fazer, o andar, o ver), que podem ser obstáculos no caminho do Reino, especialmente para os pequenos, os frágeis e os fracos, os pobres e os últimos.

 

Cortar um membro do corpo ou arrancar um olho são indicações de uma luta muito determinada na lógica do perder a própria vida (bíos) para ganhar a vida autêntica e eterna (zoé), isto é, aquela com Cristo no Reino. E não se deve fazer uma fácil atualização das palavras de Jesus, restringindo-as ao fato de escandalizar as crianças, mas é preciso levar em conta que os mikroí, os pequenos identificados por Jesus, são todos aqueles que, em relação ao discípulo, estão menos munidos, mais expostos e são mais frágeis...

 

Todos os discípulos, assim, são postos por Jesus diante de dois resultados opostos: a vida eterna com Cristo ressuscitado no reino de Deus, ou a Geena (literalmente um vale perto de Jerusalém, utilizado como depósito de lixo), isto é, a morte, as trevas, o caos: Geena ou inferno várias vezes evocados por Jesus como separação do amor, da vida.

 

Como os profetas, como Isaías (cf. 66,24, fim do livro), Jesus recorre à imagem da Geena não para condenar, mas para advertir e admoestar aqueles que creem.

 

 

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