Sermão do ex-arcebispo da Igreja Anglicana, Rowan Williams, por ocasião do Centenário de Romero

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04 Outubro 2017

O reverendo Rowan Williams, ex-líder da Igreja Anglicana, pronunciou o sermão em um canto das vésperas na Abadia de Westminster, em Londres, para comemorar o centenário de nascimento do beato Óscar Romero, no último dia 23 de setembro.

Historicamente, a Grã-Bretanha manteve uma estreita relação com Romero. Membros do Parlamento britânico indicaram Romero para o Prêmio Nobel da Paz, em 1979. Quando a posse de Robert Runcie como hierarca da Comunhão Anglicana, no dia 25 de março de 1980, coincidiu com o assassinato de Romero, a Catedral de Canterbury se tornou a primeira igreja importante a fomentar uma devoção e admiração pelo mártir salvadorenho. Runcie e João Paulo II fizeram memória de Romero quando o Papa visitou Canterbury, em 1982.

A igreja católica próxima de Canterbury, agora, contém relíquias de Romero na forma de uma estola e de uma batina. Em 1998, a estátua de Romero foi colocada na Abadia de Westminster. Em 2013, uma relíquia de Romero foi colocada na catedral de St. George (católica), em Southwark (Londres). Em 2015, foi introduzida uma estátua de Romero na catedral de St. Albans (anglicana). Em 2017, um busto de Romero foi colocado na catedral (católica) de Liverpool.

O sermão é publicador por Super Martyrio, 29-09-2017. A tradução é do Cepat.

Eis o sermão.

Uma história verdadeira. Dois compatriotas gauleses estavam sentados em uma cantina conversando sobre a recente morte de um de seus vizinhos. “Quanto deixou?”, perguntou um deles. O outro levantou uma sobrancelha e respondeu: “Tudo!”.

Há quase exatamente quarenta anos, no dia 25 de setembro de 1977, o arcebispo Óscar Romero proporcionou uma versão ampliada e mais teológica desse comentário na homilia de sua Missa semanal. Refletiu, nesta homilia, sobre o conceito bíblico da propriedade. Nas Escrituras judaicas e cristãs – disse – a propriedade era emprestada ao usuário. Nunca era dada em absoluto. Sempre deveria ser utilizada, alugada de Deus.

Dessa maneira, disse, a verdade é que os ricos pagam aos pobres a renda pela terra cujo uso lhe é concedido por um determinado tempo. Em um mundo justo, é assim que devemos conceber a propriedade. Recebemos algo através do qual ficamos livres para cumprir nossa dívida com os pobres. Porque se nosso Deus está com os pobres, então, quando servimos aos pobres, servimos a Deus. Quando reconhecemos nosso endividamento com os pobres, pagamos nossa renda a Deus pela terra que usamos.

E nessa perspectiva, continua dizendo, todos somos mendigos juntos. Ninguém simplesmente possui em detrimento do outro. Todos estamos imersos nessa interação. Aqueles que são ricos – neste mundo – são aqueles que receberam o privilégio de usar as coisas do mundo para o bem de seu próximo. Sendo mendigos juntos, enriquecemos juntos. E somos libertados da falsidade prisioneira de supor que o mundo é algo que podemos possuir, seja como indivíduos, como sociedades ou, inclusive, coletivamente, como raça humana.

O que se dá é dado para ser dado.

O que deixou? Tudo. Não é possível armazenar nada contra o juízo final. E devemos nos acostumar, agora, com o chamado de Deus para servir, para pagar nossa dívida aos necessitados.

É um eco inesperado de uma das grandes ideias daquele padre da Reforma inglesa, William Tyndale, que falou em sua própria reflexão sobre os evangelhos da dívida que os ricos devem aos miseráveis. Vivemos em um mundo onde parece que os miseráveis, constantemente, são lembrados de sua dívida com os ricos. Mas, como disse Jesus no Evangelho, sobre o uso do poder e dos recursos, não será assim entre vocês.

E o Evangelho promete nos libertar desse mito da propriedade e controle, desse padrão aparentemente implacável de acumular recursos e não os compartilhar.

Por isso, no mesmo ano, quando Dom Romero prega sobre a escravidão e a liberdade, descreve a liberdade do Evangelho precisamente em termos de uma liberdade da escravidão de querer sempre buscar ter posse. Estamos possuídos. Somos escravos do mito de que podemos possuir o mundo para nós sozinhos. E nossa verdadeira libertação vem quando compreendemos que abrir nossas mãos, compartilhar o que temos, isso é libertação. Cristo não quer escravos, disse Romero. Ele quer que todos nós, ricos e pobres, amemo-nos uns aos outros como irmãos e irmãs. Quer que a libertação chegue a todas as partes para que não haja escravidão no mundo, nenhuma em absoluto. Ninguém deve ser escravo do outro, nem escravo da miséria, nem escravo de nada.

Este é o conteúdo da revelação, essa doutrina, esta evangelização.

É fácil ver nestas palavras por que é que Romero acreditava que nossa libertação nos projetava de maneira direta para um nível mais profundo de comunidade. Porque uma vez que a mitologia de possuir e ser possuído desapareceu, ficamos livres uns para os outros de uma maneira totalmente nova. E o que resulta, então, é uma comunidade. Uma comunidade na qual estamos criando a liberdade uns para com os outros, dia após dia, na qual ficamos livres para sustentar e alimentar a humanidade do outro.

E a responsabilidade de todos os batizados, insiste Dom Romero, é a tarefa de criar liberdade. Não somos só receptores da libertação, mas também agentes dela. Não somos só pessoas que se deixam alimentar, pela graça de Deus e a graça de seu próximo, mas também temos o poder e a autoridade de alimentar, nutrir, libertar.

Na vida e na morte, o beato Óscar Romero pagou sua dívida com os pobres. Em cada palavra que falava, em cada encontro no qual participava, via sua responsabilidade como a de um agente da libertação de Deus, desafiando dia a dia e semana a semana, em suas cartas, seus sermões e discursos públicos, a ficção mortífera que mantinha toda a sua sociedade na escravidão. Abordou a injustiça flagrante e a desigualdade do sistema agrário de seu país. Abordou a violência bárbara que sustentava esse sistema, e que finalmente reivindicou sua própria vida.

Ficaria consternado, mas talvez não surpreso em saber que essa desigualdade e essa violência bárbara continuam sendo uma característica de tantos países da América Central e América do Sul, até hoje em dia. E nossas orações devem ser hoje para aqueles que continuam seu trabalho, de testemunho custoso, para falar de verdade. Em outra parte, ele mesmo descreve a própria Igreja como, sobretudo, um agente da verdade em um ambiente de mitos e mentiras.

Contudo, devemos sempre recordar a ênfase que deu sobre a ideia de que os pobres assumiriam sua própria agência, sua própria responsabilidade. Ao invés de falar simplesmente de uma Igreja para os pobres, Dom Romero foi um dos que realmente entenderam o que poderia acontecer, caso a Igreja fosse uma Igreja dos pobres. Uma Igreja onde os despossuídos e os miseráveis encontrassem sua dignidade e sua agência, sua capacidade de fazer a diferença. A libertação não é algo que só recebemos, mas também algo a partir do qual nos tornamos agentes. Nós, os batizados em Cristo, nos tornamos agentes desse dom, semelhante a Cristo e feito por Cristo, para trazer libertação.

E é por isso que em outro sermão daquele ano, de 1977, Dom Romero fala – como ele costuma fazer muito eloquentemente – da Eucaristia, a Missa, como o lugar onde acontece a reparação, a restauração, a cura das distâncias, a superação da desigualdade. Oferecemos a Eucaristia em Cristo como um meio para fazer a paz. Nós o oferecemos, reconhecendo a dívida que não devemos simplesmente a Deus, mas também aos demais. E celebramos a Eucaristia, verdadeiramente com integridade, quando essa é nossa meta, quando a comunidade libertada se mostra capaz de compartilhar a liberdade, libertando-se uns aos outros.

Em uma passagem particularmente emotiva, Dom Romero fala de como esta forma de conceber a Eucaristia ajuda a restaurar o que ele chama de a beleza da Igreja. Fala da maneira como essa beleza do amor divino incondicional se encarna no corpo eucarístico, na comunidade reunida na Missa.

Beleza pode parecer uma palavra estranha para usar na Igreja. E a beleza é uma palavra estranha para se ter em mente por quem, alguma vez, tenha visto as fotografias do corpo de Dom Romero, perfurado pelas balas e coberto de sangue. Mas, reconhecer sua vida e sua morte como algo que serviu à beleza eucarística da Igreja é reconhecer que, sem esse compromisso de libertação, com esse ato que nos liberta da escravidão do mito e da ficção, a Igreja parece feia, a Igreja fica desfigurada, não mostra o que realmente é. Pela graça de Deus, no Sacramento da Eucaristia, vislumbramos fugazmente o que poderia ser para a Igreja irradiar a beleza de Deus em justiça, reconciliação e reparação. Quando nos esforçamos para que isto seja real em nosso próprio discipulado, nos comprometemos com essa visão da beleza da Igreja, dolorosamente conscientes do que isso poderia significar em termos de risco para seus testemunhos.

Somos mendigos juntos, e quando reconhecemos isto, a libertação começa a ganhar vida. Quando a libertação começa a ganhar vida, nos tornamos pessoas que estão capacitadas em Cristo para nos libertar uns aos outros. Quando começamos a nos libertar uns aos outros, nos movemos para a plenitude de uma comunidade. Quando nos movemos para a plenitude de uma comunidade, mostramos a beleza da ação de Deus em Cristo e da ação contínua de Deus na Igreja.

Ao agradecer pela vida e o martírio do beato Óscar Romero, perguntamo-nos até que ponto somos escravizados pelo mito de possuir e ser possuídos. Qual é o nível de nossa própria vontade de ser mendigos juntos? O nível de nossa vontade não só para ser libertados, mas para ser agentes da liberdade?

Olhamos com gratidão a um dos grandes servos de Cristo, que está conosco na eterna comunhão dos santos, que está conosco na mesa eucarística de Jesus Cristo, que nos chama com seu sangue derramado, a ser – com ele – agentes da beleza do povo de Deus, para renovar a face da terra.

O sermão completo do reverendo Williams pode ser ouvido, aqui, em inglês.

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