Amazônia e a bioeconomia: um modelo de desenvolvimento para o Brasil. Entrevista especial com Carlos Nobre

Floresta amazônica | Foto: Conexão Planeta

Por: Patricia Fachin e Ricardo Machado | 09 Mai 2019

“A região Amazônica oferece a possibilidade de implantar um modelo que nenhum país do mundo ainda implantou: uma revolução industrial baseada no aproveitamento da biodiversidade de um país tropical”, diz Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas – INCT-MC, à IHU On-Line. Nos últimos anos, o pesquisador tem defendido um modelo de desenvolvimento bioeconômico para a região amazônica que seja baseado nos recursos tecnológicos da revolução 4.0 e na biodiversidade da floresta. “Nenhum país tropical tentou isso e não existe um modelo de desenvolvimento tecnológico, um modelo de desenvolvimento de uma industrialização avançada do século XXI baseado na biodiversidade. Há vários contextos tecnológicos, como a revolução digital, a revolução de nanomaterial e a de biotecnologia, mas nenhuma delas é centrada no aproveitamento da biodiversidade. Então, essa terceira via ofereceria aos países tropicais em geral, aos países amazônicos em particular, e ao Brasil, uma oportunidade de encontrar o que nunca encontramos nos 500 anos de história do Brasil: um modelo próprio de desenvolvimento”, argumenta.

De acordo com Nobre, depois de mais de duas décadas de desindustrialização, o Brasil precisa investir em “industrialização acelerada” para se tornar um país desenvolvido, e a base desse processo, assegura, são as tecnologias da 4ª Revolução Industrial. Com o investimento no modelo bioeconômico, justifica, “poderíamos levar o desenvolvimento para o seio da Amazônia” e seria possível aumentar “a renda total da região, mas que diminuiria muito a desigualdade social e econômica, porque boa parte dessa renda seria apropriada pelas populações amazônicas. Essas populações agregariam valor aos produtos, que desenvolveriam milhares e milhares de bioindústrias, que criariam empregos bons, de classe média, que são empregos industriais. Esse é um modelo de industrialização, de bioindustrialização da Amazônia, que poderia gerar uma bioeconomia na região, conectando-a com o resto da economia nacional e internacional”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, Nobre frisa que o governo brasileiro tem um “discurso muito desatualizado” quando se trata de propor alternativas de desenvolvimento para a Amazônia. “A tendência da agricultura mundial, onde ela é mais desenvolvida e, inclusive na China, é a chamada agricultura verticalizada, urbana e periurbana; é uma industrialização radical da agricultura”, menciona. A Holanda, exemplifica, “é o maior exportador mundial de sementes de verduras e hortaliças” e utiliza apenas 21 mil quilômetros quadrados para desenvolver sua produção, enquanto o Brasil utiliza 2,8 milhões de quilômetros quadrados.

No dia 16-05-2019, Carlos Nobre participará do 4º Ciclo de Estudos Revolução 4.0. Impactos nos modos de produzir e viver, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Ele irá ministrar rá ministrar duas webconferências. A primeira, intitulada “Revolução 4.0 e a Amazônia. Limites e possibilidades para uma nova bioeconomia”, será transmitida às 14h30 nas salas TEDU 805 e 806 no Campus Unisinos Porto Alegre. A segunda, intitulada "Amazônia 4.0 e uma nova bioeconomia. Limites e possibilidades", será transmitida às 19h30min na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, no Campus Unisinos São Leopoldo. 

Carlos Nobre (Foto: Academia Brasileira de Ciência)

Carlos Nobre possui graduação em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica e doutorado em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology. Foi pesquisador no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa e no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe.

Exerceu funções de gestão e coordenação científicas e de política científica, atuando como presidente da Capes, diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - Cemaden, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI, chefe do Centro de Ciência do Sistema Terrestre - CCST-Inpe e coordenador geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos - CPTEC-Inpe.

Também atuou na coordenação de experimentos científicos, como coordenador científico do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia - LBA, coordenador brasileiro do Anglo-Brazilian Climate Observations Study - Abracos e coordenador brasileiro do Experimento Amazalert entre instituições europeias e sul-americanas. Exerceu a presidência do International Advisory Group do Programa de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil - PP-G7.

Atualmente é membro do Joint Steering Committee do World Climate Research Programme - WCRP, preside os Conselhos Diretores da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas – Rede Clima e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas - PBMC.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Como a Amazônia se insere no contexto da revolução 4.0 hoje? O desenvolvimento da Amazônia a partir da revolução 4.0 já é uma realidade? Sim ou não e por quê?

Carlos Nobre — O potencial é enorme, gigantesco, quase infinito, mas como realização, o desenvolvimento ainda é bastante preliminar, com tentativas iniciais. Há algumas experiências de comunidades na Amazônia como um todo e algumas são até mais desenvolvidas fora do Brasil, como no Peru e na Colômbia, que tentam trazer um novo modelo de desenvolvimento econômico para a Amazônia, valorizando muito mais os produtos da biodiversidade amazônica. Mas esse modelo ainda é muito insuficiente: são iniciativas que ainda não adquiriram um volume ou uma densidade suficiente para alterar o modelo econômico predominante nos últimos 50 anos em toda a Amazônia.

Mapa da Amazônia (Foto: Pulmão do Planeta)

IHU On-Line — O desenvolvimento da Amazônia a partir da revolução 4.0 poderá se tornar uma realidade?

Carlos Nobre — Pode se tornar uma realidade, mas isso depende muito dos países amazônicos — especialmente do Brasil, que tem a maior parte da Amazônia — decidirem experimentar essa possibilidade, que tem uma série de desafios, mas que também tem uma série de vantagens inovadoras para os países amazônicos. Não tem nenhuma área em que o Brasil se destaque internacionalmente como um líder tecnológico. No passado já houve algumas áreas em que o país se destacou. Por exemplo, o Brasil foi o primeiro país a desenvolver votação com urnas eletrônicas e essa foi uma enorme inovação nos anos 1990. Mas são muito poucos os exemplos de áreas em que o Brasil se destacou pela inovação tecnológica, por ter criado um novo processo tecnológico, uma invenção ou várias invenções e tê-las aplicado em escala ou ter se tornado um país que exportava tecnologia. O Brasil de fato exportou a tecnologia das urnas eletrônicas, mas essa não foi uma atividade comercial; foi muito mais uma colaboração entre tribunais eleitorais e o Brasil doou urnas eletrônicas para vários países que quiseram experimentar esse modelo. Logicamente, depois o mundo digital tomou conta dessa questão e a maioria dos países já têm urna eletrônica hoje e essa é uma tecnologia consagrada, mas não tem a marca brasileira.

O Brasil também teve sucesso tecnológico na produção de aviões com a Embraer, mas essa não foi uma tecnologia que o país desenvolveu, ainda que a Embraer tenha uma capacidade imensa de inovação tecnológica, que a tornou competitiva pelo fato de conseguir manter sempre a mais avançada tecnologia nos seus aviões, inclusive em vários aspectos de criações tecnológicas da própria Embraer.

Nós temos poucos exemplos. É muito difícil imaginar sermos um país desenvolvido se nós não caminharmos no sentido de uma industrialização acelerada, ou até de uma reindustrialização — o Brasil vem se desindustrializando nos últimos 20 anos. Mas a reindustrialização precisa ter uma base no século XXI, não pode ser baseada puramente em transformação material produtora de produtos primários. É preciso uma reindustrialização baseada nas novas tecnologias do século XXI, que se chama, pelo nome genérico, de 4ª Revolução Industrial.

A região Amazônica oferece a possibilidade de implantar um modelo que nenhum país do mundo ainda implantou: uma revolução industrial baseada no aproveitamento da biodiversidade de um país tropical. Nenhum país tropical tentou isso e não existe um modelo de desenvolvimento tecnológico, um modelo de desenvolvimento de uma industrialização avançada do século XXI baseado na biodiversidade. Há vários contextos tecnológicos, como a revolução digital, a revolução de nanomaterial e a de biotecnologia, mas nenhuma delas é centrada no aproveitamento da biodiversidade. Então, essa terceira via ofereceria aos países tropicais em geral, aos países amazônicos em particular, e ao Brasil, uma oportunidade de encontrar o que nunca encontramos nos 500 anos de história do Brasil: um modelo próprio de desenvolvimento. Nós sempre copiamos os modelos existentes bem-sucedidos em outros países: tivemos sucesso em algumas áreas e menos sucesso em outras. Por exemplo, nós ficamos totalmente fora da revolução digital e o Brasil importa tudo que diz respeito a essa tecnologia. Então, surge a oportunidade de criarmos um modelo de desenvolvimento tecnológico com uma característica própria brasileira, tropical, que é o aproveitamento econômico da biodiversidade.

IHU On-Line — O senhor defende o desenvolvimento de uma bioeconomia baseada na revolução 4.0 para a Amazônia. Pode explicar em que consiste essa proposta?

Carlos Nobre — Em poucos momentos o Brasil avançou em uma pauta de industrialização, onde a maior parte das exportações brasileiras foi de produtos manufaturados, ainda que não de alta tecnologia. Foi nesse período que o Brasil experimentou um ciclo de crescimento e de melhores empregos industriais. Mas nos últimos 20 anos há uma primarização da economia e, portanto, o Brasil tem uma economia de produtos primários, baseada em minério e produtos agrícolas. Esse modelo pode gerar renda em certo nível, mas ele não é inclusivo; é superconcentrador, concentra renda e, de certo modo, é muito instável.

No passado, quando falávamos em altas tecnologias, isso parecia algo distante, algo que demandava especialização, treinamentos, que ninguém tinha acesso. Tudo isso mudou com a 4ª revolução industrial. Hoje qualquer criança, qualquer pessoa, independentemente do estrato econômico ou educacional, usa smartphone. As tecnologias da 4ª revolução industrial tiraram aquela imagem que tínhamos de que alta tecnologia era coisa para pessoas com enorme capacitação e treinamento. A alta tecnologia virou uma coisa amigável, barata, acessível e durável.

Bioeconomia

A bioeconomia, a partir da biodiversidade com a floresta em pé e com os rios fluindo, é baseada na agregação de valor com essas tecnologias. Com a agregação de valor, o valor econômico, bruto e líquido, dessa nova bioeconomia é muito superior ao modelo econômico atual de substituição da floresta, de expansão da fronteira agrícola e pecuária.

Posso citar vários exemplos, entre eles, o açaí, que já atingiu escala global. A rentabilidade do açaí, ainda com média agregação de valor, é, por hectare, entre cinco e dez vezes maior do que o que substitui o açaí: é dez vezes mais rentável do que a pecuária de mais alta rentabilidade na Amazônia, é 20 vezes mais rentável do que a pecuária de baixa rentabilidade, e é até quatro ou cinco vezes mais rentável do que um hectare de soja. Este é um exemplo concreto: o açaí é um produto da biodiversidade amazônica, produzido com sistemas agroflorestais, que mantém a floresta em pé, que traz uma rentabilidade e, portanto, já melhora o nível econômico e social das famílias que o produzem.

Ainda não é o suficiente para uma transformação social de uma economia completamente inclusiva, para que todos os produtores desses produtos se tornem classe média. Ainda não chegamos nesse nível, mas já melhorou bastante e ainda falta melhorar mais. Essa melhora adicional é o que viria com a agregação de valor. Isto é, os produtores dos produtos da biodiversidade amazônica agregariam muito mais valor aos seus produtos. Com essa agregação de valor, a renda aumenta muito, fica mais na Amazônia e, portanto, transformaria esse paradigma que todos nós e todos os países do mundo perseguem, que é transformar o país em um país de classe média e não em um país em que a maioria é pobre, como é o caso do Brasil ainda.

Por esse modelo, poderíamos levar o desenvolvimento para o seio da Amazônia, para as comunidades nas florestas, para as pequenas cidades e para as cidades maiores também, com a criação de bioindústria na Amazônia para transformar a riqueza da biodiversidade. Esse é um modelo que não só aumentaria a renda total da região, mas diminuiria muito a desigualdade social e econômica, porque boa parte dessa renda seria apropriada pelas populações amazônicas. Essas populações agregariam valor aos produtos, que desenvolveriam milhares e milhares de bioindústrias, criariam empregos bons, de classe média, que são empregos industriais. Esse é um modelo de industrialização, de bioindustrialização da Amazônia, que poderia gerar uma bioeconomia na região, conectando-a com o resto da economia nacional e internacional.

IHU On-Line — A bioeconomia tem sido implementada em outros países? Se sim, pode nos dar alguns exemplos do que tem sido feito nesse sentido?

Carlos Nobre — A partir da biodiversidade, não. Tem exemplos pontuais na Índia, que tem muito menos floresta tropical do que o Brasil: os indianos têm polos tecnológicos para explorar o potencial de produtos farmacêuticos a partir da biodiversidade. No Peru e na Colômbia, assim como no Brasil, tem coisas muito pequenas. Mas já começamos a ver que existe, sim, um movimento, mas não é algo que possa se dizer que é um movimento econômico majoritário nem na Índia, nem no Peru, nem na Colômbia e nem no Brasil.

IHU On-Line — Na última entrevista que nos concedeu no ano passado sobre este tema, o senhor disse estavam sendo criados os Laboratórios Criativos Amazônicos, que são estruturas portáteis e itinerantes que viajariam pela Amazônia promovendo a capacitação de populações no uso de novas tecnologias. Como está esse processo? Houve algum avanço desde o ano passado?

Carlos Nobre — Nós conseguimos fazer um design completo de um laboratório para a cadeia do cupuaçu e do cacau e estamos torcendo muito para poder conseguir recursos para implementar esse laboratório; estou bastante otimista de que vamos conseguir. Temos em pauta e em desenvolvimento um laboratório criativo da Amazônia com ferramental para poder capacitar as populações locais para fazer o genoma das espécies de plantas e animais. Além disso, temos em perspectiva fazer um projeto e implementar um laboratório para o látex, a borracha. Estamos envolvidos com a preparação de uma proposta grande com o Fundo Amazônia, e se conseguirmos ter sucesso de aprovação pelo BNDES, conseguiremos desenvolver entre dez e 13 desses laboratórios com diferentes cadeias de valor, por exemplo, a genômica, a de açaí, do cupuaçu, castanha e vários outros.

IHU On-Line — Que grupos de pesquisa, institutos, ou governos têm incentivado o desenvolvimento da Amazônia a partir da revolução 4.0?

Carlos Nobre — Há muitos grupos que desenvolvem isso. Na Amazônia temos um centro da Embrapa em Belém, que tem pesquisas que procuram desenvolver essas cadeias produtivas, algumas até com alta tecnologia. Tem pesquisadores em várias universidades, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, na Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA em Santarém, na Universidade Federal do Amazonas - UFAM, na Universidade Federal do Pará - UFPA, na Universidade Federal Rural da Amazônia - UFRA etc. São vários grupos fazendo um trabalho não totalmente articulado ou financiado, mas que mostra que já há vários pesquisadores envolvidos em criar soluções tecnológicas e o conhecimento necessário para isso.

IHU On-Line — Como a sua proposta de desenvolvimento para a Amazônia tem sido recebida na região e no país como um todo? Como o senhor percebe a reação a essa proposta nos debates e reuniões em que participa, em especial com o setor do agronegócio?

Carlos Nobre — Esta proposta não vai contra os interesses do agronegócio, pelo menos não de forma objetiva, frontal, porque este é um modelo de agroindustrialização, que é muito baseado em sistemas agroflorestais. Então, quando se faz um sistema agroflorestal, se fala de um sistema que é florestal, mas que tem o “agro” também, isto é, esse modelo visa o aumento da densidade de algumas espécies, que tenham mais valor econômico, dentro de uma floresta natural.

Normalmente, nos sistemas agroflorestais da Amazônia é possível aumentar a densidade entre 15 ou 30 espécies: não necessariamente se investe só em plantação, mas em diversas espécies, porque os sistemas agroflorestais são feitos no sentido de que eles têm de gerar uma série de produtos, não apenas um produto. O modelo é muito distinto do modelo de monocultivo clássico de agricultura, porque se tem muitos produtos e, portanto, se aumenta muito a probabilidade de produção no caso de uma seca que poderia afetar determinada espécie, por exemplo. Os sistemas agroflorestais são manejados por comunidades e são agrobioindustriais. Portanto, em princípio, ele não se opõe a uma agrobioindustrialização. É lógico que nós temos que preparar o setor do agronegócio e o próprio Brasil como um todo para que haja uma mudança de cultura de produção. Esse já é um assunto muito debatido e estudado e por isso os sistemas agroflorestais têm que ser ensinados nas escolas de agronomia.

Este é um sistema que casa muito bem com a agricultura familiar, porque todo o modelo que nós estamos propondo vai na direção de criar um modelo de classe média para o Brasil. Logo, não é um modelo de grandes propriedades rurais que teriam um único dono ou grandes grupos industriais ou grupo econômico ou bancos que dominam propriedades gigantescas de dezenas de milhares de hectares, porque esse é um modelo que naturalmente está associado com a concentração; nosso modelo visa a inclusão social de toda a população rural.

Portanto, essa proposta para a Amazônia serve para todo o país, uma vez que o Brasil é o país mais biodiverso do mundo. Esse também é um modelo muito afinado com o novo salto tecnológico na agricultura familiar. Temos bons exemplos, inclusive na Amazônia, de cooperativas de agricultores familiares que exploram os sistemas agroflorestais colocando esse componente tecnológico para ter uma agregação de valor, para gerar bioindústria no campo, nas pequenas e médias cidades.

Agrobioindustrialização

Nós vamos realmente industrializar a área rural. Este até é um discurso muito comum da agricultura brasileira: a industrialização da agricultura, porque o Brasil exporta muito produto primário. Qual é o país que mais ganha dinheiro com o café? A Alemanha. Qual é o segundo país que mais ganha dinheiro no mundo com o café? A Itália. Se planta pé de café em algum desses países? Não. O Brasil ainda é o maior exportador de café do mundo, mas esses países compram o grão e o transformam em ‘n’ produtos. Além disso, a Alemanha é o maior exportador de máquinas de café do mundo. O próprio setor da agricultura brasileira tem noção de que não podemos só investir em produtos primários e não industrializar. Eles sabem que se não desenvolverem a agroindústria, o Brasil ficará sempre para trás e não gerará a renda que poderia gerar. Esse discurso de agroindustrialização soa muito bem para o setor agrícola. Agora estamos incluindo a agrobioindustrialização. Se esse modelo tiver sucesso, não vejo por que grande parte dos agricultores brasileiros não poderiam incorporá-lo.

Por exemplo, vamos pensar na disputa que está sendo gerada pela medida de dois senadores, um deles é o filho do presidente [Jair] Bolsonaro, Flávio Bolsonaro, de acabar com a Reserva Legal. Se adotarmos um modelo de sistemas agroflorestais, a Reserva Legal pode ser um sistema agroflorestal e é possível, sim, utilizar a Reserva Legal para fins econômicos. Portanto, esse modelo valorizaria demais a Reserva Legal para fins econômicos e as fazendas poderiam ter industrialização e poderiam entregar um produto de maior valor agregado. Esse modelo poderia, inclusive, revolucionar a agricultura brasileira não só na Amazônia, mas também poderia ser um modelo em que o produtor, em escala de agricultura familiar e em escala de agricultura industrial, poderia produzir um produto com maior valor agregado, aumentando muito a sua renda. Essa é a ideia central. O grande diferencial do nosso modelo é o foco em biodiversidade, que não foi até hoje explorado adequadamente do ponto de vista econômico em nenhum país tropical do mundo.

IHU On-Line — Como o Estado brasileiro se posiciona acerca da possibilidade de desenvolver a Amazônia a partir da revolução 4.0? Essa temática faz parte de um projeto de desenvolvimento para a Amazônia ou não?

Carlos Nobre — É uma ideia que está começando a ser divulgada e que está adquirindo mais visibilidade aos poucos. Se nós tivermos o sucesso de conseguir um financiamento do Fundo Amazônia — que é uma doação norueguesa e alemã — e se conseguirmos aprovar esse projeto que vamos submeter — estamos em negociação com o BNDES —, até o início de 2020 começaremos a ter produção em escala. Podemos desenvolver, num intervalo de três a quatro anos, cerca de 13 laboratórios criativos na Amazônia, ou seja, cerca de 13 diferentes cadeias de valor. Esses laboratórios são itinerantes, não são fixos, e devem fazer de quatro a seis atividades de capacitação por ano. Somando os laboratórios, teremos aproximadamente 70 atividades de capacitação por ano. Desse modo, em poucos anos, começamos a ter uma densidade.

O laboratório é o começo, é o elemento inicial. Atrás do laboratório terá que vir o interesse de empreendedores inovadores, jovens empreendedores de startups etc. Além disso, é preciso o dinheiro de investimentos, de investimento de impacto, que cada vez mais se torna uma coisa desejável, pois muitos fundos de investimentos internacionais começam a olhar para os investimentos de impacto que preservam a biodiversidade e a floresta e que dão grande importância à causa das mudanças climáticas. Com essas iniciativas, começa a mudar um pouco o discurso internacional e nacional, e os fundos de investimento começam a enxergar a possibilidade de investir em uma atividade econômica que dê retorno e que preserva a floresta.

A minha expectativa otimista é que no momento em que possamos mostrar, através dos laboratórios, que esse modelo é viável, começarão a surgir subsídios, porque esses laboratórios não têm como cobrir todos os gastos e fazer tudo sozinhos. Ao se mostrar disruptivamente a viabilidade disso, ao se mostrar que as altas tecnologias podem chegar na ponta da floresta, podem chegar nas cidades amazônicas e começar a desenvolver essas novas bioindústrias, os fluxos econômicos deverão seguir para lá. Inclusive, em momentos iniciais — como é em qualquer país do mundo — tem que ter um certo nível de subsídio. Por exemplo, os governos podem fazer mecanismos de impostos que incentivem esses investimentos, fundos de investimentos podem aplicar no projeto e ter benefícios porque estão aplicando em algo inovador. É muito parecido com qualquer atividade muito disruptiva, inovadora: sempre, por alguns anos, aquilo tem que receber alguns mecanismos de incentivos até que aquela atividade se torne viável e caminhe com os próprios pés. Queremos, com os laboratórios, mostrar de fato a viabilidade lá na ponta — nas florestas e nas pequenas cidades — e o que vem depois é toda essa cadeia de desenvolvimento de startups, de empreendedorismo inovador, que é a tendência mundial. No Brasil também tem muitos jovens, no entanto, muitos têm ido para o mundo digital, o que é normal, mas precisamos equilibrar um pouco o talento desses jovens empreendedores para que eles também possam se interessar por essa parte da agrobioindustrialização.

IHU On-Line — Como avalia as declarações do atual governo acerca da Amazônia e das questões ambientais?

Carlos Nobre — O governo está com um discurso muito desatualizado, que não tem mais apoio nos próprios dados. A tendência da agricultura mundial, onde ela é mais desenvolvida e, inclusive na China, é a chamada agricultura verticalizada, urbana e periurbana; é uma industrialização radical da agricultura. Cito dois exemplos:

A Holanda exporta mais do que o Brasil em produtos agrícolas, e muitos produtos têm alto valor tecnológico. A maioria das pessoas não sabe, mas a semente de quase todos os legumes, vegetais e verduras que são vendidos nos supermercados brasileiros, vieram da Holanda. Ou seja, os holandeses fazem algo tecnológico e de alto valor agregado. A Holanda é o maior exportador mundial de sementes de verduras e hortaliças. A Holanda exporta mais — em valor é mais de 100 bilhões de dólares — em produtos agrícolas do que o Brasil, que ocupa o quarto ou quinto lugar. Qual é a área que a Holanda utiliza para fazer tudo isso? 21 mil quilômetros quadrados – esse é o tamanho da área agrícola da Holanda. O Brasil utiliza 2,8 milhões de quilômetros quadrados. Então, a tendência da agricultura mundial é a verticalização e a industrialização. O Brasil não pode ficar fora dessa tendência.

Exemplo de fazenda vertical  (Foto: newfoodeconomy_org)

 

Carne vegetal

Se o Brasil for optar por um modelo expansionista de aumentar a área plantada, estará fora, perderá mercado e vai desaparecer no futuro. Em 2050, a agricultura será totalmente verticalizada e industrializada. Somente agora o setor da agricultura brasileira começa a se dar conta disso e a se preocupar com o fato de que já se desenvolveu em laboratório a carne vegetal, que é igual a carne animal. Em alguns restaurantes já é possível comer carne vegetal com gosto de carne animal. No Japão fizeram uma asa de frango com aparência, textura e gosto igual a carne animal. Essa é a nova indústria de proteína, e a nova geração já não liga muito se a carne é de origem animal ou vegetal; eles estão preocupados com o gosto. Essa carne ainda é cara, mas do mesmo jeito que aconteceu com a energia solar, que há dez anos ninguém acreditava que seria a forma mais barata de gerar energia no mundo, e hoje já é, vai acontecer com a carne. As projeções são de que em dez anos a carne de proteína vegetal se iguale ao preço da carne de origem animal.

Então, quanto de área será preciso para produzir o mesmo volume de carne? Um quilo de carne vegetal precisa de um décimo da área que é usada para produzir carne animal. O modelo expansionista de agricultura, que aliás sempre existiu no Brasil, hoje encontra mais defensores junto ao poder político. Não se pode dizer que o Brasil estava numa trajetória fantástica e agora houve uma reversão. Não, o país segue o modelo de sempre, mas agora os atores que defendem esse modelo têm mais poder político. Eles sempre tiveram muito poder, seja nos governos de esquerda ou de direita, mas a diferença agora é que essa não é mais uma questão apenas econômica; virou uma questão ideológica. Portanto, qualquer pessoa que se coloca contra esse modelo é atacada ideologicamente. A ideologização faz com que o Brasil se atrase para a mudança tecnológica. Vai ver se algum laboratório da Embrapa faz carne vegetal. Não faz. O Brasil já está atrasado, porque carne artificial já se vende nos EUA. Lá você já pode pedir um hambúrguer de carne vegetal ou animal no Burger King e eles custam o mesmo preço. Então, se o Brasil não entrar nessa linha, perderá mercados mundiais.

O que deveria ser a atitude da agricultura brasileira? Ela deveria acelerar radicalmente a produção de proteína vegetal, e o Brasil tem um enorme potencial para isso, porque o país produz muita soja. O consumo de carne vegetal reduzirá drasticamente a produção de ração animal – 70% da soja brasileira é usada para ração, que é vendida para vários países. Então, quando diminuir o consumo de carne animal mundialmente, vai precisar só da proteína para fazer a carne artificial. Com essa ideologia expansionista de agricultura, que não existe mais no resto do mundo desenvolvido, corremos o risco de ficar para trás e perder mercado. Então, os países que insistirem nesse modelo vão ficar para trás. A carne vegetal em dez anos será mais barata, terá um impacto ambiental muito menor, será mais industrializada e, portanto, o Brasil já deveria estar se preparando para estar entre os líderes mundiais de produção de carne vegetal. O setor agrícola não acordou para o modelo de agricultura do século XXI e, se ele não acordar, o Brasil ficará para trás.

 

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