"A morte pertence à vida. É seu ponto culminante. Ela nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos, invisível a nós, mas real". Entrevista especial com Leonardo Boff

Cerezo Barredo. Mural da Catedral de São Felix do Araguaia | Imagem: Portal da CEBs

Por: João Vitor Santos, Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo | 14 Dezembro 2018

A Teologia não deve ser uma ciência fechada e encastelada, assim como a Igreja não tem de ser algo posto no olimpo, num nível quase inatingível que a afasta das realidades. São essas as perspectivas que orientam as concepções de Leonardo Boff. “A teologia sempre é possível e deve ser feita para responder com sentido crítico às demandas derradeiras da condição humana, mas ela deve desembocar numa espiritualidade”, define. Reconhecido como um dos maiores nomes da teologia brasileira e um dos principais pensadores da Teologia da Libertação, Leonardo está completando 80 anos hoje, dia 14 dezembro. Para ele, um momento de revisitar pensamentos e de se conectar com o que ainda há de vir. “Estou convencido mais e mais de que a solicitação maior não é por teologia, mas por espiritualidade. Todos estão saturados de mil mensagens de todo tipo, cansados de discursos religiosos, de encíclicas e coisas do gênero. Não querem mais que se fale sobre Deus, mas pedem como experimentar Deus realmente”, observa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele recorda os primeiros movimentos que deram origem ao que se irá formular como a Teologia da Libertação. “A teologia estava na academia e a pastoral no meio do povo e dos operários. Não se escutavam”, lembra. E acrescenta que “dom Helder [Câmara] foi o primeiro a perceber que o nosso desenvolvimento significava um desenvolvimento do subdesenvolvimento” e que, por isso, era necessário conceber uma nova forma de ser Igreja que desse conta das duras realidades de países periféricos. “Não tivemos mestres específicos. Foi a inserção dos teólogos no meio dos pobres, onde descobrimos o Cristo crucificado que devia ser baixado da Cruz e de nossos bispos proféticos que corajosamente defendiam os direitos humanos, sob a opressão da ditadura militar”, observa.

Entretanto, reconhece que a atuação de leigos foi fundamental para atualizar essa necessidade de “ser Igreja”. “A Teologia da Libertação não seria o que foi e como hoje é se não fosse a presença de Paulo Freire com seu método libertador e seus dois clássicos”, acrescenta. E define: “a Teologia da Libertação não é uma nova disciplina teológica, mas um novo modo de fazer teologia, arrancando do inferno da pobreza e optando pelos condenados da Terra”. A quem ainda vê, nessa forma de pensar, apenas um instrumental marxista, responde que “Marx não foi nem pai nem padrinho da Teologia da Libertação”. “Mas há que reconhecer que Marx nos ajudou a ver no pobre não apenas um pobre, mas alguém feito pobre”, dispara.

Além de uma avaliação dessa experiência acerca da Teologia da Libertação – que para ele tem como principal reconhecimento a eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa, pois considera que ele “provém do caldo cultural da Teologia da Libertação” –, Leonardo também retoma conceitos que são importantes para sua concepção de cristianismo. Entre eles, o da morte. “Para mim, a morte pertence à vida. É seu ponto culminante”, pontua. Afinal, segundo ele, “a Ressurreição de Jesus nos veio mostrar esse outro lado nosso: a irrupção do “novissimus Adam”, a emergência do ser novo, unido à realidade divina”.

Por fim, falar em Leonardo Boff é também falar em ecologia, ou nos cuidados da Casa Comum, como ele diz. Aliás, numa outra concepção de pensamento ecológico, até então, pouco usual. “Dei-me conta de que não somente as florestas gritam, gritam também os animais, as águas, os solos e os ares. Todos são explorados pelo ser humano na sua voracidade de buscar comodidades e riqueza. O planeta Terra é o mais explorado de todos. Ele já está perdendo a sustentabilidade”, lembra. Assim, numa outra cosmovisão, ele tensiona a tomar esta também como uma das questões a serem abarcadas por uma teologia em sintonia com os problemas do mundo. “Dentro da opção pelos pobres, devemos incluir o Grande Pobre que é a nossa Mãe Terra. Daí nasceu uma Ecoteologia da Libertação”, pontua.

Leonardo Boff (Foto: Reprodução do Facebook)

Leonardo Boff é doutor em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Referência no campo da Teologia, é um dos fundadores da Teologia da Libertação. Em 1985, foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record). A partir da década de 1980, dedicou-se à questão ecológica como prolongamento da Teologia da Libertação. Foi membro da Ordem dos Frades Menores (franciscanos) até 1992, quando pediu seu desligamento da congregação e do sacerdócio, dedicando-se exclusivamente aos estudos teológicos. Agora em 2018, quando celebra seus 80 anos de vida, está lançando Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).

Entre os inúmeros livros publicados, destacamos: Ecologia, Mundialização, Espiritualidade (Rio de Janeiro: Record, 1993), Civilização planetária (Rio de Janeiro: Sextante, 1994), A voz do arco-íris (Rio de Janeiro: Sextante, 2000), Saber cuidar (Ed. 20. Petrópolis: Vozes, 2014), Ética e ecoespiritualidade (Petrópolis: Vozes, 2011), Homem: satã ou anjo bom (Rio de Janeiro: Record, 2008), Evangelho do Cristo cósmico (Rio de Janeiro: Record, 2008), Do iceberg à Arca de Noé (Rio de Janeiro: Sextante, 2002), Opção Terra. A solução da Terra não cai do céu (Rio de Janeiro: Sextante, 2009), Proteger a Terra-cuidar a vida. Como evitar o fim do mundo (Rio de Janeiro: Record, 2010), Ecologia: grito da Terra, grito do pobre (Petrópolis: Vozes, 1995), além de Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).

Assista ao testemunho do entrevistado durante a comemoração dos seus 80 anos realizada, em 07 de dezembro, pela Editora Vozes e Instituto Teológico Francisco, em Petrópolis, no Rio de Janeiro:

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Teologia da Libertação trouxe uma outra percepção do “ser Igreja” num momento, especialmente no Brasil, de grande dureza. Gostaria que o senhor recuperasse esse momento e nos contasse quais as fontes, autores e teóricos, que inspiraram esse primeiro grupo que apostou nessa perspectiva teológica?

Leonardo Boff – A Teologia da Libertação nasceu da preocupação da Igreja com a pobreza das grandes maiorias empobrecidas. Foram os profetas da Igreja como dom Helder Câmara, dom José Maria Pires, dom Antônio Fragoso, dom Pedro Casaldáliga, cardeal dom Paulo Evaristo Arns, entre outros, que sentiram que a missão da Igreja junto aos pobres devia ser libertadora e não mais assistencialista. Dom Helder foi o primeiro a perceber que o nosso desenvolvimento significava um desenvolvimento do subdesenvolvimento. Deveríamos fazer não uma teologia do desenvolvimento, mas da libertação das amarras que nos prendiam a um tipo de desenvolvimento feito à custa dos muitos pobres em favor de poucos ricos. Numa reunião de bispos do Conselho Episcopal Latino-Americano – Celam em Montevidéu no final dos anos 1960, caiu da boca de dom Helder a palavra libertação. Ela foi retomada por Gustavo Gutiérrez quando ele, estando em Itaipava-Petrópolis, numa reunião de bispos latino-americanos que faziam um balanço das sessões do Vaticano II , falou que a missão da Igreja em nosso Continente empobrecido deveria ser libertadora.

Depois, em 1971, em Lima, lançou seu livro-fundador “Teologia da libertação: perspectivas” (São Paulo: Loyola, 1999). Eu, sem saber nada dele, escrevia cada mês, na revista para religiosas Sponsa Christi, artigos sobre Jesus Cristo Libertador. Fazia-o para escapar da repressão dos militares, pois a palavra libertação era proibida. Em janeiro de 1972, reuni os artigos e saiu o livro “Jesus Cristo Libertador” (Petrópolis, RJ: Vozes, 1972) , tido como iniciador no Brasil desse tipo de teologia.

Inspirações

Não tivemos mestres específicos. Foi a inserção dos teólogos no meio dos pobres, onde descobrimos o Cristo crucificado que devia ser baixado da Cruz e de nossos bispos proféticos que corajosamente defendiam os direitos humanos, sob a opressão da ditadura militar. Aqui cabe dizer: a Teologia da Libertação não seria o que foi e como hoje é se não fosse a presença de Paulo Freire com seu método libertador e seus dois clássicos “Pedagogia do oprimido” e “Educação como prática da liberdade”.

Ele sempre se considerou, como cristão, um dos fundadores da Teologia da Libertação. Nele descobrimos o método: de sempre escutar primeiramente o povo, depois pensar e elaborar o que recolhemos. Freire nos ajudou a assumir o método da Ação Católica mundial do ver, julgar, agir e celebrar (isso é acréscimo da Teologia da Libertação).

Em segundo lugar, está o principal da Teologia da Libertação, sem o qual não se pode falar em libertação: a opção especial pelos pobres, contra sua pobreza e pela justiça social que significa verdadeira libertação. Os sujeitos dessa libertação, isso aprendemos de Paulo Freire e da prática pastoral junto aos oprimidos, são os pobres mesmos quando conscientizados e organizados. Nós entramos pela porta de trás e como força auxiliar. Portanto, a Teologia da Libertação não é uma nova disciplina teológica, mas um novo modo de fazer teologia, arrancando do inferno da pobreza e optando pelos condenados da Terra.

Sem esse amor pelos mais desvalidos e sem a experiência espiritual de ver neles a atualização da Paixão de Cristo, nunca teria nascido a Teologia da Libertação. Sem o amor e sem espiritualidade a Teologia da Libertação não teria conservado seu caráter eminentemente teológico com efeito claramente social, pois a libertação constitui um valor social em si mesmo, mesmo nascida de uma prática religiosa.

Reações da Igreja

Infelizmente, as autoridades doutrinais da Igreja não se deram conta dessa base espiritual e passaram a considerar a Teologia da Libertação, segundo diziam, como um cavalo de Troia mediante o qual o marxismo entraria na América Latina. Eles tinham boa intenção, só que essa intenção não era boa, pois começaram a censurar teólogos e bispos.

Marx não foi nem pai nem padrinho da Teologia da Libertação. Foi o grito dos oprimidos do Êxodo, foram os profetas bíblicos, foi a mensagem e a prática de Jesus e dos apóstolos que estão na base desta Teologia. Mas há que reconhecer que Marx nos ajudou a ver no pobre não apenas um pobre, mas alguém feito pobre, portanto, um empobrecido, vale dizer, um oprimido por um sistema que explora seu trabalho e lhe suga o sangue.

IHU On-Line – Como a Teologia da Libertação impactou a produção teológica no mundo?

Leonardo Boff – Esse modo de fazer teologia impactou enormemente a comunidade teológica mundial, pois era a primeira vez que, na periferia do mundo e da Igreja, irrompia um pensamento diferente, ligando prática com teoria, pastoral com teologia. O que se conhecia era uma dissociação dessas duas realidades. A teologia estava na academia e a pastoral no meio do povo e dos operários. Não se escutavam. Ainda havia os desafios que vinham deste mundo e que obrigariam a teologia a mudar de método e de agenda. Essa foi a colaboração que a Teologia da Libertação trouxe para a Igreja Universal.

Ela se espalhou na África, na Ásia, por toda a América Latina e em grupos de solidariedade com o então chamado “Terceiro Mundo” na Europa e nos Estados Unidos. Percebia-se claramente que era o pensamento adequado para a relação da fé com a injustiça social. Esta significava opressão, e contra a opressão vale a libertação. Nos grandes encontros que organizávamos no Brasil ou no México, estes aliados se faziam presentes. Fomos enriquecidos, com o passar do tempo, pela teologia negra norte-americana de libertação e com a teologia feminista de libertação. Por fim, recebemos a grande contribuição da teologia a partir dos povos originários, dos indígenas, com sua sabedoria ancestral.

Geralmente, uma nova corrente teológica demora uma ou mais gerações para ser sentida no centro do poder religioso que está em Roma, especialmente nas instâncias doutrinárias. Logo cedo, dentro da primeira geração se deu a primeira reação da Congregação da Doutrina da Fé, carregada de incompreensões e vítima do horror do comunismo, fruto da Guerra Fria. A reação foi de suspeita e até de condenação. O documento do cardeal Joseph Ratzinger cautamente dizia que eram condenações de alguns aspectos desta teologia. Mas logo foi entendido como pura e simples condenação desse tipo de teologia. Houve muito sofrimento.

As sanções

Sob suspeita de participarem desse ideário, muitos teólogos e teólogas perderam suas cátedras, foram desconvidados de cursos e de retiros espirituais e até condenados ou levados a se justificar em Roma, como Gustavo Gutiérrez (por meio dos bispos peruanos reunidos em Roma e assessorados pelos teólogos do Vaticano). E eu pessoalmente que saudei com honra a cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno também sentaram, além de outros melhores que eu.

Universalidade teológica

Temos nos dado conta da universalidade desta Teologia nas várias sessões do Fórum Social Mundial. Três dias antes, no mesmo local, fazia-se um congresso da Teologia da Libertação com a representação de duas ou três mil pessoas, vindas das várias partes do mundo onde ela era atuante. Depois, esses participantes se misturam nas várias temáticas do Fórum. Geralmente as conferências dos teólogos da libertação estavam e ainda estão entre as mais concorridas. Nesses locais, não se diziam palavras, mas coisas que movem os corações pelo alto apelo em favor dos pobres e oprimidos e por sua libertação integral.

Papa Francisco

Para nós, o impacto maior foi a ascensão do cardeal Bergoglio à Cátedra de Pedro com o nome significativo de Francisco. Ele provém do caldo cultural da Teologia da Libertação, da vertente argentina que enfatizava a libertação da cultura silenciada e do povo oprimido. Ele, desde jovem, estudante de teologia, segundo o testemunho de seu professor Juan Carlos Scanonne, ainda vivo, se entusiasmou por esse tipo de teologia. Viveu-a como cardeal, despojando-se de todo o aparato que cerca um cardeal, usando o ônibus, vivendo num pequeno apartamento e visitando com muita frequência as “villas miseria”, como são chamadas as favelas na Argentina.

Francisco levou ao centro da cristandade esta cultura teológica e pastoral. Despojou-se de todos os símbolos pagãos que ornavam a figura do Papa. Renunciou ao palácio pontifício e foi viver numa casa de hóspedes. Come junto com todos, coloca-se na fila da comida e diz com humor: “assim é mais difícil que me envenenem”. Podemos imaginar seu patrono São Francisco, o poverello “pútrido e fétido, mesquinho, miserável e vil” como dizia de si mesmo, vivendo num palácio pontifício? Essa contradição o papa Francisco captou e foi consequente deixando os espaços pomposos dos edifícios pontifícios.

IHU On-Line – Hoje, a Teologia da Libertação ainda dá conta do enfrentamento dos problemas deste mundo pós-moderno, em que as relações são atravessadas pela tecnologia e no qual vivemos uma retomada da extrema direita?

Leonardo Boff – Hoje, mais do que antes, faz-se urgente a Teologia da Libertação. Sua centralidade está nos pobres e marginalizados do mundo e atualmente o número deles aumentou exponencialmente. Vivemos tempos cruéis e sem piedade. Vigora uma acumulação espantosa de riqueza em pouquíssimas mãos à custa da espoliação da grande maioria dos seres humanos, de seus países e da exploração desenfreada dos parcos bens e serviços da Mãe Terra. Por causa dessa realidade é que a Teologia da Libertação se internacionalizou e abriu um leque novo de questões desafiadoras: como preservar a Casa Comum, como organizar a resistência das vítimas e como podem se articular em nível mundial, para fazer frente à desumanização e às agressões à natureza que podem pôr em risco o futuro da espécie humana?

Um capítulo à parte é como fazer Teologia da Libertação num contexto onde prevalecem a intolerância e a ascensão da direita e extrema direita. Creio que para os teólogos da Libertação, mais do que discutir politicamente essas questões que devem ser discutidas, o desafio é estar ao lado das vítimas, no caso do Brasil, dos homoafetivos, dos LGBTI, dos quilombolas, dos afrodescendentes (55,4% da população), dos membros do MST e dos Sem-Teto, com o risco de serem condenados por terrorismo com a violência que pode ocorrer contra eles. Devemos caminhar com eles e, se for o caso, participar de seu destino. Como dizia uma mulher negra resistente: “se decidiram nos matar, nós decidimos não morrer”. E eu acrescentei: “nós decidimos ressuscitar a cada morte”.

IHU On-Line – O que é fazer teologia hoje? Qual o espaço do pensamento teológico neste mundo pós-moderno?

Leonardo Boff – Estou convencido mais e mais, frequentando vários ambientes do mundo, daqui e de fora, mesmo do meio popular, de que a solicitação maior não é por teologia, mas por espiritualidade. Todos estão saturados de mil mensagens de todo tipo, cansados de discursos religiosos, de encíclicas e coisas do gênero. Não querem mais que se fale sobre Deus, mas pedem como experimentar Deus realmente. Escutam com atenção as pessoas que falam a partir de Deus, irradiando uma aura do sagrado e do divino que de alguma forma pervade nossa existência.

Na espiritualidade, todos nos encontramos. Geralmente, as religiões fazem guerra entre si ou justificaram guerras. A espiritualidade, ao contrário, vai ao profundo do humano, onde se encontra sob cinzas uma brasa sagrada que pode ser despertada e transformar-se numa chama ardente. Ela gera entusiasmo (ter um deus dentro, em grego), uma paz que nenhum psicotrópico pode dar e uma discreta alegria de viver com poucas coisas e se tornar capaz de solidariedade e de compaixão com os sofredores humanos e da natureza.

A teologia sempre é possível e deve ser feita para responder com sentido crítico às demandas derradeiras da condição humana, mas ela deve desembocar numa espiritualidade. Ela deve ser boa para as pessoas e levá-las a descobrir o seu caminho para o encontro com a Suprema Realidade.

IHU On-Line – O senhor foi um dos ideólogos das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. Hoje, depois de mais de 50 anos da sua criação, como o senhor avalia a atuação desses grupos?

Leonardo Boff – As Comunidades Eclesiais de Base significaram uma criação de emergência suscitada pela própria Igreja brasileira por causa da falta de sacerdotes para atender a maioria católica. Inicialmente, as CEBs estavam ligadas a alguma paróquia. Lentamente foram se autonomizando, pois os leigos foram assumindo as várias funções de ler e comentar a Palava de Deus e as diferentes atividades, como a catequese, a liturgia, o cuidado com os doentes e a participação nos sindicatos. Elas têm esta propriedade: ser de base, seja eclesial, formada de leigos, homens e mulheres, seja de base, constituída de pobres. Realizam a essência da Igreja que é de ser “comunitas fidelium”, comunidade de fiéis, a fé que congrega as pessoas. Onde há dois ou mais reunidos, é palavra de Jesus, aí está presente o Ressuscitado.

Portanto, há quatro presenças reais: da fé, da Palavra de Deus, da comunidade e do Ressuscitado. Isso forma o núcleo central do que significa Igreja concreta. Não se trata como teólogos oficialistas diziam: elas possuem elementos eclesiais, mas não são Igreja. Assim pensava também o papa João Paulo II. Quando dom Helder lhe explicou que, se retiramos delas o caráter de Igreja, baixaria a repressão militar sobre elas e as destruiria. Foi aí que o Papa atalhou: então que sejam consideradas Igreja.

Logicamente as CEBs podem e devem ser enriquecidas pelos sacramentos, pela Eucaristia, pelo grupo de animação e direção e outros elementos mais. Mas é decisivo enfatizar que é a Igreja verdadeira na base. Sob o regime da ditadura militar, eram um dos poucos espaços onde as pessoas podiam se reunir sem serem logo reprimidas. Ganharam força social e grande visibilidade, pois eram ativas na defesa dos direitos humanos, a partir dos direitos dos pobres. Chegaram ao número de cem mil.

CEBs na atualidade

Hoje, na democracia, surgiram muitos outros movimentos e elas diminuíram em número. Elas não possuem a mesma visibilidade, mas existem por todos os lados e mostram um modo novo de ser Igreja, mais comunidade do que sociedade eclesial piramidalmente organizada. Elas estão presentes em quase todos os Continentes. Levam, quiçá, como semente, o futuro da Igreja dentro do processo de mundialização. Não será mais a Igreja ocidental distribuída pelo mundo, mas a Igreja de Cristo que ganha raízes nas várias culturas na forma de pequenas comunidades que assumem um rosto novo consoante a diversidade cultural.

IHU On-Line – Suas posições com relação à hierarquia da Igreja Católica lhe renderam processos e uma série de sanções. O que fica dessa experiência para o senhor?

Leonardo Boff – Fui punido com o “silêncio obsequioso”, um eufemismo para a proibição de ensinar, de falar em público e de escrever. Isso foi por causa do livro “Igreja: carisma e poder” (São Paulo: Record, 2005), no qual fazia críticas à forma centralizadora da organização da Igreja com a exclusão dos leigos e das mulheres no processo de decisão dos caminhos da Igreja. Essa crítica foi vista como certo protestantismo e marxismo de minha teologia. Curiosamente, não condenaram nenhuma doutrina, mas se dizia no texto oficial que minha prática punha em risco a fé dos fiéis. Nunca na história da Igreja se condenaram práticas, mas doutrinas sobre fé e moral. Sentia-me em boa companhia com Jesus, que dizia: “vim trazer fogo à terra e o que mais quero é que arda”. Não há prática mais revolucionária que esta.

Mas nunca guardei rancor por causa dessa condenação. Disse ao cardeal Ratzinger, que sempre foi meu amigo, em longas conversas durante as reuniões para preparar a revista Concilium em alguma cidade da Europa, sempre na semana de Pentecostes, pouco depois de meu interrogatório: “eu sinto pena do senhor, pois tem que me condenar, pois é obrigado pelo tipo de teologia vigente no Vaticano, teologia do poder sagrado que não tolera nenhuma crítica; vê a crítica como deslealdade”. Ele silenciou, pois tenho certeza que, pelo que ouvi dele nas conferências na Alemanha, no fundo, me dava razão. Nunca rompemos a amizade, a ponto de, pela passagem de seus 90 anos, solicitar uma página minha sobre ele. Foi o que fiz gostosamente sem me referir a esse fato que ficou no século passado. Estamos num novo século, com outro Papa e com outro tipo de teologia mais benigna e servidora da vida.

IHU On-Line – Ao longo dos seus 80 anos, a Igreja passou por muitas transformações? Que Igreja o senhor viu, que Igreja vê hoje e qual imagina ser a Igreja do futuro?

Leonardo Boff – Durante 30 anos, vivemos um inverno na Igreja sob os pontificados do papa João Paulo II e o de Bento XVI. Representava uma volta à grande disciplina passando por cima das decisões do Concílio Vaticano II. Foram tempos de controle doutrinário rigoroso, de censuras e de proibição de introduzir novidades na Igreja e na teologia. Mais de 100 teólogos e teólogas foram punidos, perderam as cátedras ou foram silenciados.

O mais grave foi a nomeação de novos bispos, muitos deles vindos do Direito Canônico, conservadores, apresentando-se mais como autoridades eclesiásticas de costas para o povo do que pastores no meio do povo. Isso se refletiu como um refluxo da Igreja no seu compromisso com os pobres e com os Direitos Humanos, contra a injustiça social. Esse vazio foi preenchido por um cristianismo tradicionalista e pietista que usa as rádios e, especialmente, programas de televisão para anunciar uma fé sem conexão com os pobres e a injustiça social, mediocrizada, mais interessada no espetáculo do que na transformação das consciências, sensíveis às angústias dos mais vulneráveis.

Creio que este tipo de cristianismo tem mais a ver com uma visão medievalista da Igreja do que com a tradição de Jesus, pobre, humilde, caminhando no meio do povo pelas estradas poeirentas da Palestina. Este tipo de Igreja não honra a grandeza da figura histórica de Jesus, muitas vezes, melhor captada até por ateus. Na nova fase da humanidade, a planetária, na qual todos estão conectados com todos e o Ocidente é considerado mais um acidente histórico do que o centro da cultura do mundo, vejo a Igreja de Cristo constituída por redes de comunidades, encarnadas nas muitas culturas, com suas teologias próprias, sua forma de rezar a Deus e de organizar-se.

Elas terão o Papa como ponto de referência comum. E ele andará peregrinando pelo mundo, visitando as comunidades e confirmando-as na fé, pois essa é a missão dada por Jesus a Pedro. As várias congregações da Cúria não precisam mais ficar em Roma, mas podem tranquilamente estar distribuídas pelo mundo, a que cuida da inculturação na África, a que se ocupa com o diálogo inter-religioso na Ásia, a que zela pelos Direitos Humanos na América Latina e na Europa, a que leva o diálogo ecumênico entre as igrejas cristãs. Aí está o Skype e outros meios pelos quais podem visivelmente se comunicar e realizar mesas-redondas visuais. Seria a Igreja de Cristo na sua forma adequada ao novo patamar, alcançado pela humanidade. Fiz chegar ao papa Francisco esta minha visão. Oxalá ele ou outro de sua genealogia o possa realizar.

IHU On-Line – O senhor trabalhou conceitos de forma muito particular, como a morte. Gostaria que recuperasse o seu entendimento sobre ‘o que é a morte’.

Leonardo Boff – Trabalhei bastante este tema, ligado à Ressurreição de Jesus e às muitas palestras que tenho dado a médicos e a operadores da saúde. Para mim, a morte pertence à vida. É seu ponto culminante. Ela não significa o fim, mas uma transformação “alquímica” através dela. A morte nos permite dar um salto para o outro lado de nós mesmos, invisível a nós, mas real. Esse salto nos permite continuar a viver dentro de outra forma.

A Ressurreição de Jesus nos veio mostrar esse outro lado nosso: a irrupção do “novissimus Adam”, a emergência do ser novo, unido à realidade divina. São Paulo nos garante que ele é “o primeiro entre muitos irmãos e irmãs, nós seguiremos a Ele”. Tenho afirmado que não vivemos para morrer. Mas morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor. Seria bom se a Igreja, em sua catequese e evangelização, voltasse a essa doutrina de São Paulo ao invés de ficar refém da ideia platônica da imortalidade de uma parte de nós, só da alma. É o homem inteiro que morre. É o homem inteiro que ressuscita, não como Lázaro que acabou morrendo porque era só a reanimação de um cadáver, mas como Jesus que tem uma presença cósmica.

Como Ele, penetramos no coração do universo, onde tudo é um só coração, unidos com o coração da montanha, com o coração da planta, com o coração do animal, com o coração do ser humano no seio do coração do Deus-Trindade.

IHU On-Line – A ecologia é outro conceito muito presente em suas reflexões. Quando e por que o senhor sentiu a necessidade de trabalhar esse conceito a partir da teologia?

Leonardo Boff – Minha preocupação com a ecologia vem do fato de ter sido franciscano por mais de 30 anos. Sempre guardei o espírito do “Sol de Assis”, como o chama Dante Alighieri. Mais concretamente, foi uma consequência da própria opção pelos pobres, eixo central da Teologia da Libertação. A partir dos anos 1980, dei-me conta de que não somente as florestas gritam, gritam também os animais, as águas, os solos e os ares. Todos são explorados pelo ser humano na sua voracidade de buscar comodidades e riqueza. O planeta Terra é o mais explorado de todos. Ele já está perdendo a sustentabilidade. Precisa de um ano e meio para repor aquilo que lhe tiramos durante um ano.

Portanto, dentro da opção pelos pobres, devemos incluir o Grande Pobre que é a nossa Mãe Terra. Daí nasceu uma Ecoteologia da Libertação. Para estar à altura de reflexão contemporânea, tive que ocupar-me, por bastante tempo, com as novas ciências da vida e da Terra, como a mecânica quântica, a astrofísica, a cosmologia e a nova biologia e antropologia. Fruto deste esforço foi o meu livro mais complexo e volumoso, escrito em parceria com um cosmólogo canadense, Mark Hathaway: “O Tao da libertação: uma ecologia da transformação”, de 2010 (Petrópolis, RJ : Vozes, 2010). Lendo o manuscrito, Fritjof Capra ficou tão entusiasmado que quis escrever ele mesmo um prefácio.

A comunidade científica norte-americana acolheu bem o livro a ponto de recebermos em 2010 a medalha de ouro em ciência e nova cosmologia. Esse trabalho a quatro mãos nos custou 13 anos de estudo e trabalho lendo a principal literatura científica na área. Mas modificou minha visão do mundo. É mais fácil fazer teologia dentro desta visão do novo paradigma do que dentro do velho, herdado dos gregos e dos pais fundadores da modernidade, no século XVII.

IHU On-Line – Em seu novo livro, “Reflexões de um velho teólogo e pensador”, o senhor formula seu pensamento dentro da nova cosmologia, que vê o universo em cosmogênese e o ser humano em antropogênese e como Deus emerge nesse processo. Pode nos detalhar no que consiste essa sua cosmologia?

Leonardo Boff – Não é fácil detalhar o que seja a nova cosmologia. Depois de anos de estudo, publiquei um livro, belissimamente ilustrado, onde tento, para o grande público, resumir a nova visão das coisas. O título é “De onde vem: o universo, as estrelas, o sol, a Terra, a vida, o espírito e Deus” [Rio de Janeiro: Mar de Ideias, 2017]. No fundo, é o que diz a nova cosmologia, especialmente seu maior representante, Brian Swimme, que junto com o teólogo Thomas Berry escreveu uma história da evolução, do big bang aos dias de hoje: “The Universe Story”[Estados Unidos: HarperOn, 1992]. Aí se afirma a profunda unidade complexa de todo o processo cósmico, incluindo todos os seres e suas manifestações que irrompem da Energia de Fundo, inicialmente chamada de Vácuo Quântico. Mas como de vácuo não tem nada, pois é um oceano sem margens de virtualidades, passaram a chamar de Fonte Originária de todo o Ser ou de Abismo gerador de Tudo.

Daí irrompeu, ninguém sabe como e por quê, um pontinho, menor que a cabeça de um alfinete, mas repleto de energia. De repente, explodiu dando origem a tudo o que existe hoje, inclusive a Terra e cada um de nós. Nunca podemos ultrapassar aquilo que se chama o “Muro de Planck”, aquela realidade anterior ao big bang. Mas se entendeu que este big bang remete a esta derradeira realidade. Os cosmólogos lhe atribuem as qualidades de infinitude, de suprema plenitude, de misteriosidade e outras.

Ora, dizem alguns deles, essas são as características que as religiões atribuem àquilo que chamamos de Tao, Shiva, Alá, Javé, Olorum e Deus. Eu diria que essa Energia de Fundo não seja Deus, porque Deus é ainda maior. Mas seguramente é sua melhor metáfora, seu sacramento essencial. De todas as forças, Deus emerge de dentro do processo cosmogênico como aquela Suprema Energia que tudo move e a atrai para uma Suprema Realidade a qual Teilhard de Chardin chamou de Ponto Ômega. Ela é poderosa e amorosa. O ser humano pode abrir-se à ela, acolhê-la porque a sente também dentro de si. Ela nos assegura o fim bom de toda criação.

IHU On-Line – Estamos novamente vivendo um tempo de advento. Quais os desafios para nos prepararmos hoje para a Boa Nova?

Leonardo Boff – Na verdade, estamos sempre numa situação de advento. Advento de nós mesmos, porque nascemos completos, mas não prontos. Há um futuro para nós próprios. Esse futuro é um advento que nos convida a uma sempre maior perfeição. Mas também há um advento de Deus. Ele sempre veio e está vindo nos visitar. Cabe a nós acolhê-Lo com o coração nas mãos. Ele vem cada vez, uma única vez só. Se não estamos despertos ele poderá chegar e nós não perceberemos sua chegada. Então, o advento é esse momento da espera vigilante para que, quando quiser nos visitar, encontre nossa morada aberta para entrar. E que ele se esqueça de ir embora. Então será o Deus conosco, o Natal do Filho de Deus entre nós.

 

Sobre os 80 anos do entrevistado, leia também o artigo de Faustino Teixeira

 

Leia as entrevistas concedidas por Leonardo Boff à IHU On-Line:

 

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