O assombro do ponto de referência absoluto

Personagem que perpassa os dez episódios da série Decálogo

Foto: Reprodução do YouTube

09 Abril 2021

 

O fundamento dos dez episódios da série Decálogo concentra-se essencialmente no primeiro episódio, que nos conduz ao que Kieślowski chama de "o ponto de referência absoluto". 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

Eis o texto. 

 

Ao comentar a sua série televisiva Decálogo [Dez Mandamentos], o diretor de cinema polonês Krzysztof Kieślowski deu a seguinte declaração: "Há seis mil anos, esses mandamentos têm sido inquestionavelmente corretos. Porém, nós os desobedecemos todos os dias".

No livro Kieślowski on Kieślowski (1994), baseado em entrevistas que o diretor concedeu à Danusia Stok, ele expressou sua compreensão sobre o autor dos dez mandamentos: "Acredito que realmente existe um ponto de referência absoluto. Embora eu deva dizer que quando eu penso em Deus, frequentemente é mais o Deus do Velho Testamento do que o do Novo. O Deus do Velho Testamento é um Deus autoritário, cruel; um Deus que não perdoa; que determinantemente requer obediência aos princípios por ele estabelecidos. O Deus do Novo Testamento é um velho homem piedoso e de bom coração, com uma barba branca, que apenas perdoa tudo. O Deus do Velho Testamento outorga-nos muita liberdade e responsabilidade, observa como usamos essa liberdade, e então recompensa ou pune, e não há apelo ou perdão. É algo que é duradouro, absoluto, evidente e não relativo. E é assim que deve ser um ponto de referência, especialmente para pessoas como eu: que são fracas, que estão buscando alguma coisa, e que não sabem".

Na mesma série de entrevistas, o diretor resumiu o núcleo central de suas obras: "Todos os meus filmes, desde o primeiro até os mais recentes, são sobre indivíduos que não conseguem encontrar seu ponto de apoio, que não sabem como viver, que não sabem realmente o que é certo e o que é errado e estão procurando saber desesperadamente. Procurando por respostas para questões básicas do tipo: Para que serve tudo isso? Por que levantar de manhã? Por que ir para cama de noite? Por que levantar de novo? Como passar o tempo entre um despertar e outro? Como empregá-lo de modo a estar apto para se barbear ou se maquiar de manhã estando em paz comigo mesmo?"

Desiludido com a política e com os efeitos do comunismo na Polônia e, igualmente, com a Polônia capitalista, antes da sua morte, nos anos 1990, ele chegou a seguinte constatação: "Percebi que a política não era realmente importante. De certo modo, é claro, ela define quem somos e o que nos é ou não permitido fazer, mas ela não resolve as questões humanas realmente importantes. Ela não está numa posição capaz de fazer algo para responder qualquer uma de nossas questões essenciais, fundamentais, humanas e humanísticas. Na verdade, não importa se você vive num país comunista ou num próspero país capitalista no que diz respeito a essas questões. Questões do tipo: 'Qual é o verdadeiro sentido da vida? Por que levantar de manhã?'. A política não responde isso".

A série Decálogo, classificada entre os dez melhores filmes produzidos nos últimos 25 anos, segundo a revista britânica Sight & Som, já foi tema de inúmeras análises desde que foi transmitida pela primeira vez no final da década de 1980. Para além dos recortes filosóficos ou teológicos possíveis, um ponto de análise comum que permeia os dez episódios concentra-se nos dilemas morais que emergem no cotidiano das personagens que residem no mesmo conjunto habitacional em Varsóvia e nos dramas pessoais que cada uma vive na tentativa de encontrar a melhor solução para resolvê-los e como justificá-la.

Entretanto, o que parece ser o fundamento dos dez episódios, concentra-se essencialmente no primeiro, que nos conduz ao que Kieślowski chama de "o ponto de referência absoluto": Amarás a Deus sobre todas as coisas. A narrativa que conduz o espectador neste episódio, o coloca diante de duas visões de mundo que nos são apresentadas cotidianamente, às vezes de forma difusa e confusa, e que nos levam a compreendê-las como uma disjunção ou conjunção ou até mesmo negação: a crença em Deus e a crença na ciência.

Assim como nós nos vemos diante de duas amplas visões de mundo que propõem explicar a realidade em sua totalidade, tateando em qual delas acreditar ou como uni-las de modo que nos deem uma compreensão da complexidade do universo e das nossas próprias vidas, a personagem central do episódio, um menino de dez anos de idade, se vê dividido entre responder aos fenômenos que lhe são apresentados cotidianamente pela visão científica do pai, um professor universitário, ou pela religiosa de sua tia católica, que acompanha os discursos do papa com entusiasmo e identifica sentido neles.

 

 

Para além do modo instigante como o pai e a tia reagem às interrogações do menino, as reações do próprio menino diante das respostas que lhe são apresentadas sempre de modo insuficiente, e dos enigmas que são acrescentados às cenas, como uma espécie de charadas que nos conduzem a um quebra-cabeça, o ponto alto do episódio ocorre logo após um momento de inflexão na vida das personagens: a morte do menino, engolido pelo lago enquanto patinava no gelo, convicto, a partir dos cálculos probabilísticos feitos pelo pai, de que o gelo não cederia.

É ali, naquele minuto de incredulidade e desolação, diante da sua falha e da sua impotência, que o pai, até então descrente, volta-se para o Deus uno e trino em dois movimentos: primeiro, a revolta, manifesta na destruição do altar de uma igreja diante da injustiça da morte do filho. Como se Deus, até então em silêncio, falasse com ele através das lágrimas que são derramadas na face da Virgem Maria, por causa das velas que caem sobre o ícone quando o altar é destruído, acontece o segundo movimento: a conversão do coração, a maravilha do primeiro encontro - como lembrou o papa Francisco em sua homilia na Vigília Pascal deste ano -, e, portanto, o cumprimento do primeiro mandamento, que simboliza uma mudança de rota, uma nova disposição para viver os outros nove, porque o Deus uno e trino é amor e misericórdia e sempre perdoa.

 

 

 

Leia mais