Catolicismo global versus anglobalização. Artigo de Massimo Faggioli

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16 Outubro 2020

Neste texto, o historiador italiano Massimo Faggioli analisa o projeto político do papa conforme explicitado na última encíclica, Fratelli tutti.

Faggioli é professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 15-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

As palavras política [substantivo], político [adjetivo] e políticos repetem-se mais de 100 vezes na nova encíclica do Papa Francisco, a Fratelli tutti.

O capítulo V intitula-se “A política melhor”.

Trata-se de uma acusação ao populismo, ao individualismo e à economia do gotejamento. Lamenta-se a crise dos Estados-nação e das Nações Unidas. E apela-se a um novo modelo de participação social, política e econômica que se inspire na subsidiariedade e na solidariedade, possibilitando a globalização do mais básico dos direitos humanos.

O papa clama por um melhor tipo de política baseada no “amor social” e no “amor político”. Isso soa como um projeto social e político, não apenas religioso ou inter-religioso, e é uma das diferenças mais interessantes na abordagem à relação da Igreja com o mundo moderno em comparação com o seu antecessor.

Bento XVI alegava ostensivamente a superioridade da Igreja sobre a política, ao mesmo tempo que transmitia a mensagem de um necessário alinhamento entre o catolicismo e a civilização ocidental.

 

Uma alternativa ao neoliberalismo, ao nacionalismo e ao populismo

Francisco abandonou o agostinianismo político, segundo o qual a alta soberania da Igreja inibe o envolvimento da Igreja nas questões políticas. Ao mesmo tempo, ele também adotou a nova dimensão global do catolicismo, deixando para trás uma ideia eurocêntrica do cristianismo. A visão social e política do Papa Francisco claramente toma um lado e busca oferecer uma alternativa ao neoliberalismo, ao nacionalismo e ao populismo.

Mas qual é o seu projeto político? Como a sua visão pode se tornar parte dos sistemas públicos de governança – a forma como os Estados, os governos e os parlamentos operam, definem políticas e supervisionam a administração pública?

Como a visão do papa sobre a política pode moldar a forma como os líderes e representantes são formados e escolhidos? Como ela pode reviver as organizações internacionais? Como pode influenciar a cultura dos negócios?

 

 

Um conto de duas encíclicas

Uma forma de nos ajudar a entender os desafios que o projeto de Francisco enfrenta é comparar a Fratelli tutti com a última encíclica de João XXIII, Pacem in terris. Assim como a Fratelli tutti, a encíclica de abril de 1963 foi publicada no rastro de uma crise global: a crise dos mísseis de Cuba em outubro do ano anterior. As elites políticas cristãs e católicas do hemisfério ocidental deram à Pacem in terris uma recepção, no mínimo, morna.

Por exemplo, eles não ficaram felizes com o fato de o Papa João XXIII estar agindo para desvincular a Igreja Católica de um alinhamento ideológico com o Ocidente na Guerra Fria. Isso marcava o início de uma nova cultura de paz na tradição magisterial do catolicismo. O chanceler católico da Alemanha, Konrad Adenauer, ficou consternado com aquilo que chamou de “ingenuidade política” do papa. O chanceler havia proferido o mesmo veredito em 1961, depois que João XXIII divulgou a sua primeira encíclica social, Mater et magistra.

Só podemos imaginar o que os atuais embaixadores da Santa Sé estão escrevendo sobre a Fratelli tutti nos relatórios para os seus ministros das Relações Exteriores – especialmente os embaixadores de países liderados por líderes nacionalistas e populistas que manipulam a religião e a Igreja para servirem à sua plataforma anti-imigração.

Isso é realmente reconfortante para aqueles que compartilham a visão do Papa Francisco.

 

 

Uma situação eclesial sobrecarregada

Mas a situação é mais complicada para Francisco do que para João XXIII.

Em primeiro lugar, a situação eclesial é diferente. A Mater et magistra e a Pacem in terris faziam parte do processo do Concílio Vaticano II, que o Papa João XXIII convocou em 1959, e que Paulo VI levou à sua conclusão em 1965.

A Pacem in terris, em especial, teve um impacto enorme sobre as discussões do Concílio e sobre os seus documentos finais.

Mas agora não há nenhum processo eclesial como o Vaticano II. Existe algo diferente. A ideia de Francisco de uma Igreja sinodal depende muito mais dos processos sinodais nas Igrejas locais, que só poderemos ver – se acontecerem – nos próximos anos.

Além disso, o pontificado de Francisco desencadeou reações intracatólicas muito mais hostis contra ele do que as que inegavelmente já existiam contra João XXIII, que nunca teve que lidar com a ameaça de um cisma. Estamos atualmente em uma situação eclesial sobrecarregada, e isso terá um impacto sobre o processo de recepção eclesial da Fratelli tutti.

 

 

Uma encíclica em um tempo de pandemia

Também existem significativas diferenças na dinâmica da recepção política desta nova encíclica sobre a fraternidade humana do que em relação à encíclica anterior de Francisco sobre o cuidado da casa comum, a Laudato si’. Aquele texto foi publicado em junho de 2015, apenas seis meses antes da assinatura do Acordo de Paris de combate às mudanças climáticas.

A Fratelli tutti é uma encíclica que fala claramente sobre os últimos anos. Desde 2016, a situação global piorou consideravelmente do ponto de vista dos potenciais interlocutores do papa: o Brexit, a eleição de Trump e Bolsonaro, e a situação em outras nações latino-americanas.

O contexto cronológico da Fratelli tutti é a pandemia do coronavírus que começou no início de 2020 e agravou os males sociais e econômicos de que fala Francisco. Por exemplo, desde a eclosão da Covid-19, a riqueza total dos bilionários saltou para o seu nível mais alto de toda a história.

 

 

Amigos ou inimigos?

Os nomes daqueles que se opõem à visão de Francisco são bem conhecidos. Mas os de seus aliados, muito menos. Em comparação, o século anterior na história da doutrina social católica agora se parece quase a uma era de ouro.

A face pública e política do catolicismo era feita (pelo menos no hemisfério ocidental) de partidos políticos, sindicatos de trabalhadores e associações comerciais católicos ou cristãos. Os líderes políticos nacionais e os dirigentes de organizações internacionais provinham dessa rede que se originou com a Rerum novarum de Leão XIII. Esse mundo já desapareceu em grande parte, senão totalmente, exceto em alguns países como a Alemanha.

Todo o jogo mudou, não apenas por causa da secularização e do desaparecimento de partidos católicos ou cristão-democráticos, mas também porque a Igreja precisa falar em nome de uma Igreja global e de um mundo global para o qual não há nenhum equivalente possível ao partido cristão-democrático na Itália ou na Alemanha.

Os movimentos populares, que Francisco enfatizou repetidamente em seu pontificado, não podem ser um substituto para aquele mundo agora extinto que foi moldado pela classe política de partidos católicos ou cristão-democráticos. Podemos ver as complexidades dessa dimensão global pelo que está acontecendo particularmente naquele canto específico do cristianismo global que é a América do Norte.

 

 

“Anglobalização”: a marca do neoimperialismo ocidental

Embora não seja explicitamente afirmado, um dos maiores interlocutores polêmicos da Fratelli tutti é o liberalismo anglo-americano e a ideologia da “anglobalização”. O termo foi cunhado pelo historiador escocês-estadunidense Niall Ferguson, que, na época da invasão do Iraque em 2003, definiu a si mesmo como “um membro de pleno direito da gangue neoimperialista”.

Os Estados Unidos e o catolicismo estadunidense, que está dividido – pelo menos na hierarquia clerical –, em sua avaliação sobre o pontificado de Francisco, desempenham um papel particular aqui. Se há algum alinhamento entre Francisco e os políticos estadunidenses, ele pode ser encontrado com o Partido Democrata em muitas questões, não em todas (e não apenas no aborto). O Partido Republicano de Trump está do lado oposto da mensagem social e política de Francisco em quase tudo.

Assim, é óbvio que Francisco não pode contar com uma sólida aliança de forças, mesmo dentro da Igreja Católica. E não é apenas por causa da campanha política rumo à eleição presidencial do dia 3 de novembro. Essa campanha está amplificando a recepção de algumas mensagens da encíclica e também corre o risco de interferir em sua recepção teológica geral – algo semelhante ao que já aconteceu com a Amoris laetitia, a exortação apostólica do papa sobre o matrimônio e a família, de 2016.

 

 

A necessidade urgente de reformas institucionais da Igreja

Como eu já indiquei antes, o papa precisa iniciar reformas institucionais na Igreja. A questão-chave deste pontificado é a relação entre a profunda leitura espiritual de Francisco sobre o catolicismo no mundo contemporâneo e as perspectivas de longo prazo para a reforma da Igreja (especialmente sobre o papel das mulheres na Igreja).

Por outro lado, o seu ensinamento não visa a criar novas alianças políticas ou mesmo eclesiais que estejam destinadas a ser transitórias nesta mudança de época. Esse esforço não faria muito sentido em áreas do mundo onde o catolicismo é uma pequena minoria (ou não é mais uma maioria) e tem pouca ou nenhuma influência política.

Por outro lado, a transformação social e ecológica não acontecerá enquanto a Igreja não mudar a sua política de gênero. E é para aí que Francisco aparentemente não quer ir.

A conquista mais importante deste pontificado é do ponto de vista da tradição magisterial da Igreja sobre questões sociais, políticas e econômicas. Essa tradição está tomando uma nova forma por causa da virada global de Francisco.

 

 

Através dos olhos dos pobres

Essa virada envolve uma redefinição de conceitos-chave – como liberdade religiosa, dignidade humana e a única família humana de todas as religiões – que foram moldados por um alinhamento político e geopolítico com o Ocidente, um alinhamento que Francisco rejeita.

Agora, o ensino papal se libertou – de uma forma ainda mais clara do que antes – de todas as cautelosas advertências em torno da opção preferencial pelos pobres. Francisco não tem medo de colocar o magistério da Igreja de forma clara e sem reservas do lado dos pobres e do lado da justiça. O ensino papal não está adotando o comunismo.

 

 

A crítica do papa ao liberalismo certamente não é a mesma que está sendo expressada por uma nova geração de sofisticados antiliberais, iliberais e integralistas – mas católicosanglobalizados” – que se encontram em lugares como os Estados Unidos e a Hungria. Em vez disso, trata-se de uma tradição magistral que está se tornando global e aprendendo com a história do colonialismo. Foi um ganho importante para a Igreja Católica ter um papa do hemisfério Sul.

As esperanças dos anti-imperialistas e dos anticolonialistas foram frustradas no fim da Primeira Guerra Mundial com a Conferência de Paz de Versalhes em 1919. Mas, um século depois, o ensino papal está finalmente interpretando a retórica da democracia liberal que se tornou segura para o capitalismo global com os ouvidos e os olhos do mundo outrora colonizado ou semicolonizado.

E esse é o mundo que constitui visivelmente a maioria do catolicismo global.

 

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