Na fila de espera. Artigo de José de Souza Martins

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

18 Abril 2020

"A epidemia não se encaixa no modelo econômico adotado no mundo sob influência do neoliberalismo. Nem no presente nem no futuro. Antes do vírus começar a matar, as carências e imprevidências desse modelo já haviam começado a preparar-lhe o caminho", escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial). O artigo foi enviado pelo autor. 

Segundo ele, "o capitalismo que conhecemos terá que passar por ampla, urgente e criativa reforma e transformação para o que provavelmente será uma nova era histórica. A teoria econômica socialmente excludente que o conforma terá que ser substituída por outra, em que, sem o reconhecimento de que a sociedade é a protagonista e destinatária de suas conquistas e resultados, o capitalismo continuará a ser jogatina irresponsável".

O apogeu da alucinação antissocial, pretensamente teórica e científica,  - analisa o sociólogo - é justamente este governo e sua política de supressão de direitos sociais, de sua incapacidade para definir uma política de economia que coloque a pátria antes do PIB, voltada também para o mercado interno e a multiplicação da renda e do emprego".

E conclui:

"Irresponsável, o Estado bolsonarista decide não só sobre a vida, mas também sobre a morte, reduto poderoso das crenças e dos liames de família. Não há dinheiro que cure os males desse desrespeito materialista e ateu à condição humana"

 

Eis o artigo.

 

Não tem sido consideradas as causas e consequências desta epidemia, o seu antes e o seu depois, na desorganização de uma sociedade subdesenvolvida como esta. A preocupação tem sido com os aspectos médicos da doença, o que é urgente, e com os lucros cessantes da economia, o que não o é.

Epidemia é imprevisível. Economia que subestima as carências da sociedade, não. É inútil pensar no primado do lucro quando o país se desindustrializa e a diversidade produtiva e o emprego encolhem. A exclusão social decorrente, econômica e politicamente produzida, é a condição da difusão da pobreza e, com ela, de doenças que podem ser fatais.

A epidemia não se encaixa no modelo econômico adotado no mundo sob influência do neoliberalismo. Nem no presente nem no futuro. Antes do vírus começar a matar, as carências e imprevidências desse modelo já haviam começado a preparar-lhe o caminho.

O capitalismo que conhecemos terá que passar por ampla, urgente e criativa reforma e transformação para o que provavelmente será uma nova era histórica. A teoria econômica socialmente excludente que o conforma terá que ser substituída por outra, em que, sem o reconhecimento de que a sociedade é a protagonista e destinatária de suas conquistas e resultados, o capitalismo continuará a ser jogatina irresponsável.

Todos sabemos, e a maioria não diz, que no centro de tudo o que vem ocorrendo está a morte. Morte conformada por esse modelo de economia, que se baseia no pressuposto de que uma certa proporção de mortes, em ocorrências como a pandemia, é o preço a pagar pela opção econômica.

O país que mais expressa esse modelo, os Estados Unidos da América, é o mais atingido pela peste. Mortos sendo sepultados aos montes em vala comum. O sistema econômico falsamente lucrativo afunda porque socialmente imprevidente.

Nunca estivemos coletivamente tão perto da morte nem ela tão perto de nós. É inevitável considerar que nós mesmos poderemos ser, ou os que amamos, um daqueles números da estatística sinistra dos contaminados e dos mortos, que um servidor do Ministério da Saúde lerá no boletim desta tarde.

Brasil e o mundo são hoje uma fila de espera do dia e hora de cada um. Dos sensatos, que se protegem em silêncio no isolamento para proteger a vida dos outros. E dos néscios, confinados no egoísmo em que foram educados, o da cultura individualista do neoliberalismo coisificante.

A epidemia expõe o que é de fato esta realidade social, tanto no silêncio que fala quanto na fala que esconde. O país se divide entre os que mencionam irresponsavelmente a morte e os que não lhe pronunciam o nome, recolhidos ao silêncio litúrgico com que a reconhecem como a força que inverte e revela o sentido do mundo.

A travessia socialmente proposta pela morte abre o mundo do avesso que nos revela que avesso é o mundo de carências criado pela obsessão autoritária do ganho sem limite e do ganhador sem consciência social. É no outro lado que está a chave do segredo do lado de cá.

As causas ocultas e distantes de um ontem que nos aflige hoje são explicáveis. As condições sociais para a disseminação do vírus mortal tem em cada país sua história. Infiltrou-se entre nós trazido pelos abonados de sociabilidade internacional intensa. Mas a saliva mortífera é cuspida na cara de todas as classes. E vem espalhando o vírus na escala inteira das desigualdades sociais.

Consequência do neoliberalismo que, desde 1964, tem sido aqui a opção doutrinária que preside a política econômica do Estado mínimo e da minimização dos custos do trabalho na reprodução ampliada do capital.

O apogeu dessa alucinação antissocial, pretensamente teórica e científica, é justamente este governo e sua política de supressão de direitos sociais, de sua incapacidade para definir uma política de economia que coloque a pátria antes do PIB, voltada também para o mercado interno e a multiplicação da renda e do emprego.

Eles não dizem, mas a lógica do sistema econômico diz, esta foi uma opção fácil e barata de enriquecimento porque a taxa de desemprego no país é muito alta e a oferta de trabalho é insuficiente. Até aqui, essa economia criou uma grande massa de mão-de-obra sobrante, à procura de trabalho e disposta a aceitar a redução de salários e de direitos que a catástrofe propicia.

Por ela, mortes são irrelevantes porque mortes dos descartáveis, no limite dos sem funeral, sem ritos de passagem para o além, o que fere as tradições religiosas do povo brasileiro.

Irresponsável, o Estado bolsonarista decide não só sobre a vida, mas também sobre a morte, reduto poderoso das crenças e dos liames de família. Não há dinheiro que cure os males desse desrespeito materialista e ateu à condição humana.

 

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Na fila de espera. Artigo de José de Souza Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU