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02 Outubro 2015

Neste "domingo das famílias", data de abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Família, a Palavra de Deus nos dá o fundamento do projeto de Deus: a criação do ser humano como homem e mulher. As relações entre o homem e a mulher estão no coração das leituras deste domingo.

A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 27º Domingo do Tempo Comum - Ano B (04 de Outubro de 2015). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.

Eis o texto.

Referências bíblicas:
1ª leitura: Gênesis 2,18-24
Salmo: Sl 127(128)
2ª leitura: Hebreus 2,9-11
Evangelho: Mc 10, 2-16

Adão, 'Ish e 'Ishsha

Não esperemos de Gênesis 2 uma teoria completa da relação homem-mulher nem levantemos quanto a ele questões do feminismo do século XX. Trata-se aqui de uma espécie de poema, não de um tratado. Poema, no entanto, que dá o que pensar, se mais não fosse, ao menos pelos nomes que o texto dá ao homem e à mulher. Adão designa tanto o homem como a mulher, ainda que a mulher não fosse tirada da terra. Adão significa de fato "o ser que vem da terra". A partir daí, surge toda a diversificação entre masculinidade e feminilidade. O português, por estas duas palavras de raízes diferentes, e com sonoridades, portanto, também diferentes, apoia-se nesta diferença. Já o hebraico, com as palavras 'Ish e 'Ishsha, apoia-se sobretudo na unidade. Aliás, o texto todo está construído para promover a unidade. Isto justamente porque o autor está muito consciente de que esta diferença pode ser também divisão. Em Gênesis 3,12 e 3,16, esta divisão é dada como fruto do pecado. No desígnio de Deus ("No começo", como diz Jesus), as diferenças se conjugam numa unidade, em vez de se deteriorarem em divisões.

O animal e a mulher

Este título fará as 'Ishsha todas gritarem de raiva! A situação da mulher reduzida à mesma posição do animal é, no entanto, o ponto de partida, uma vez que o universo humano é construído sob o signo do pecado. Em Gênesis 3,16, vemos o homem dominar a mulher, assim como o vemos, em 1,26, dominar os animais. O texto está escrito para que esta situação seja recusada. O macho, de certo modo, é que é semelhante ao animal, pois todos os dois são tirados da terra. E por que, então, o animal não é para o macho um "auxiliar semelhante a ele" quando este é o mesmo nome dado à mulher em 2,18? A meu ver, é aqui que o texto se supera. É claro que, ao fazer a mulher sair do homem, o autor introduz uma imagem inversa à do nascimento. Seria uma revanche patriarcal, do homem "nascido da mulher"? Aqui a mulher não se prende ao solo, exceto pela interposição do homem. Além disso, em 3,20, receberá o nome de Eva, que significa "Vivente", mas não é a mesma palavra que em 2,7. A vida já é outra, para além do pecado e da morte. Arrisco timidamente uma explicação: a mulher é vivente não só pelo sopro, mas pelo Espírito que, em hebraico, é feminino; a feminilidade de Deus. Ela, aliás, é quem recebe a promessa da redenção (3,15). Do macho é dito apenas que é "pó e ao pó tornará". Mais uma vez, temos de dizer que se trata de um poema, não de uma teoria.

"...e se unirá à sua mulher"

O texto de Gênesis 2 apresenta a unidade do homem e da mulher como uma conquista: "eles serão uma só carne". A unidade, portanto, é dada como um "possível", como algo "a se fazer". E o homem é quem deve se "deslocar": "o homem deixará seu pai e sua mãe". A mulher sai do homem e, no entanto, o homem é quem deve, deixando as suas raízes, meter o pé na estrada para unir-se a ela. Jesus cita este texto e tudo caminha no sentido, não da divisão, mas da unidade. Os fariseus introduzem uma dupla divisão: primeiro, a ruptura do "repúdio". Mas, em seguida, uma ruptura mais sutil; os estatutos do homem e da mulher são diferentes, uma vez que só falam de repúdio para o homem. Cristo restabelecerá a igualdade, ao falar também do repúdio do homem pela mulher; mas ele não fica no plano jurídico dos fariseus. Estas rupturas são devidas à "dureza do coração", ou seja, do pecado. Jesus não fala de conflito a não ser para projetar a imagem da unidade por se conquistar. Esta unidade é o desígnio de Deus. Por fim, tudo o que o homem e a mulher têm de viver é típico de toda a aventura humana: ali onde encontramos divisão, temos de buscar a unidade. Há uma aposta grande de que não chegaremos nunca a superar as nossas divisões e violências (entre Estados, classes, “raças” ou etnias, culturas, etc.) se, primeiro, não tivermos superado esta que é a mais fundamental de todas: a divisão entre o homem e a mulher. Esta unidade não é nem fusão nem nivelamento, mas articulação das diferenças, como num corpo vivo. 

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