‘Jamais Fomos Modernos’ e a potência da transformação do pensamento de Bruno Latour. Entrevista especial com Fernando Silva e Silva

O professor aponta que “o próprio Latour não tem um compromisso definitivo com as ideias desse texto”, o que nos liberta de uma leitura fiel ao livro e abre a possibilidade de se criar a partir dele

Foto: Pixabay

Por: Edição: João Vitor Santos | 17 Novembro 2021

 

O jovem professor Fernando Silva e Silva, dentro do 2º Ciclo de Estudos A (in) Existência de Um Mundo Comum. Pensamento vivo e Mudanças Possíveis à Luz de Bruno Latour, trouxe sua leitura de um dos livros considerado como um dos clássicos do autor: Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica (São Paulo: Editora 34, 2019). Para Fernando, esse livro até pode ser tomado como um clássico. Porém, é preciso se ter a consciência de que muitas das ideias contidas nele são inseridas num contexto muito específico do final da década de 1980 e início da década de 1990. “Jamais Fomos Modernos é um texto datado, especialmente no sentido de que certos termos e raciocínios, em especial o tipo de imaginação política que o livro apresenta, já não se estende a obras seguintes de Latour”, observa, na conferência realizada em 3 de novembro de 2021.

 

A seguir, reproduzimos na forma de entrevista o conteúdo dessa palestra realizada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Nela, Fernando ainda detalha que “no livro, a principal ideia que vai atravessar a obra é a ideia da constituição moderna”. Ou seja, é nessa obra que Latour vai refletir sobre a Modernidade para afirmar que, efetivamente, nunca chegamos a ser modernos. “Não seria possível afirmar sermos efetivamente modernos porque aquilo que o Ocidente acreditou que o tornava moderno, isto é, a distinção entre natureza e cultura e essa radical diferença entre os outros, não tem a radical capacidade de distinguir entre natureza e cultura”, aprofunda Fernando.

 

O curioso, segundo o próprio Fernando, é que esse é um dos pontos menos destacados quando se fala nesse livro. Porém, é justamente nisso que vê a atualidade da obra. “Então, ficamos com esses 30 anos desse texto como um clássico capaz de nos introduzir questões bastante complexas da sociologia, da antropologia, das ciências, mas que ao mesmo tempo não é representativo do que é o pensamento desse pesquisador hoje”, sugere. “Pode parecer negativo o que eu falei sobre a própria leitura do texto, mas não é. Isso justamente é o que nos libera para que nossa leitura do Jamais Fomos Modernos seja sempre criativa e criadora com o texto. O próprio Latour não tem um compromisso definitivo com as ideias desse texto, então, nem mesmo nós precisamos fazer uma leitura fiel desse escrito”, aponta.

 

O 2º Ciclo de Estudos A (in) Existência de Um Mundo Comum. Pensamento vivo e Mudanças Possíveis à Luz de Bruno Latour, promovido pelo IHU, segue até o dia 30 de novembro. A próxima conferência ocorre hoje, dia 17 de novembro, às 19h30. Nela, a Prof. Dra. Alyne Costa, da PUC – Rio e Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e o Prof. Dr. Marcos Matos, da Universidade Federal do Acre – UFAC, apresentam sua leitura de Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres (2021).

 

Fernando Silva e Silva durante a conferência no IHU (Foto: Reprodução | Youtube)

Fernando Silva e Silva possui graduação em Licenciatura Letras Francês pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e mestrado em Estudos da Linguagem pela mesma universidade. Atualmente, é graduando em Filosofia na UFRGS, e doutorando, também em Filosofia, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Seus principais temas de pesquisa hoje são a filosofia ambiental, a história das ciências e da filosofia e as obras de Alfred N. Whitehead e Isabelle Stengers.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como você situa o livro Jamais Fomos Modernos na obra de Bruno Latour?

Fernando Silva e Silva – Jamais Fomos Modernos é, com certeza, a obra mais conhecida, citada, mencionada, odiada de Bruno Latour e que está fazendo 30 anos agora em 2021. Na ocasião desses 30 anos, pensei no que seria apropriado falar desse texto que é tão célebre. Apesar de ser uma obra que saiu relativamente recente, já é um clássico em diferentes áreas, como para os estudos de ciência, tecnologia e sociedade, para Sociologia, Antropologia e provavelmente vai continuar a ser pelas próximas décadas.

Quando conhecemos a obra de Latour, percebemos que Jamais Fomos Modernos é um texto datado, especialmente no sentido de que certos termos e raciocínios, em especial o tipo de imaginação política que o livro apresenta, já não se estende a obras seguinte de Latour. Muito do que está presente ali não chega a durar uma década no pensamento do próprio Latour. Na entrada desse nosso milênio, ele já entra com um repertório conceitual e político diferente. Isso não é uma avaliação possível de fazer conhecendo os textos dele, mas é uma avaliação que ele mesmo faz. Nas próprias obras, nomeia determinados conceitos os quais ele foi abandonando e dizendo que não eram mais de seu interesse.

O que me interessa, justamente hoje, é situar essa obra, porque quando falamos de um clássico tentamos dar essa ideia de que ele seria, de alguma forma, atemporal – embora o próprio Latour já apresenta indícios de superação dessa obra. Mas essa atemporalidade pode nos levar a fazer uma apropriação ou leitura descontextualizada do próprio texto. Por isso, me proponho a buscar entender onde esse texto fica na obra mais ampla de Latour, assim como indicar em que debates esse livro está inserido em 1991. Isso tudo para que possamos entender que, ao mesmo tempo em que esse texto é um clássico, é uma porta de entrada nos estudos de tecnologia e sociedade ou mesmo na própria obra de Latour. Assim, o texto diz respeito a um momento bem específico e que tem pretensões muito específicas. E, claro, podemos pensar de que maneira podemos ou não estender isso até hoje.

 

 

Science wars

Em 1991, o que está em jogo, em questões disciplinares, mas não tão internas ao texto, é um debate no que tomaria forma na chamada science wars, a guerra da Ciência. É essa disputa entre a tripla posição entre um realismo, um realismo científico, filosófico, e um relativismo fraco. É o que no texto Latour vai chamar de relativismo absolutista, é o embate entre essas duas posições de afirmar de que nada na ciência é construído e tudo na ciência é socialmente construído, e a terceira posição, que é a que Latour, entre outros estudiosos, tenta articular. Trata-se da posição construtivista, que afirma que os objetos da chamada natureza são externos, objetivos e verdadeiros porque eles foram coletivamente construídos, tentando utilizar o melhor desses repertórios do que seria um realismo ou um relativismo, ou ainda tentando evitar uma armadilha desses dois repertórios.

No outro sentido, como o próprio Latour vai dizer, esse construtivismo é também o que chama de um relativismo relativista ou um relacionismo, no sentido de que seu objeto é a análise e produção de relações e não simplesmente a afirmação de que as coisas são relativas. Além disso, nos outros contextos que se compõem em 1991, temos, ao longo dos anos de 1980, importantes novidades nos estudos da ciência que vão integrar a constituição dessa obra. Por um lado, temos a contribuição de Bruno Latour com Michel Callon, que é um estudioso da ciência e da economia a partir de uma perspectiva muito próxima da de Latour, pois eram colegas, e sobretudo o Shapin e Schaffer, que vai ser fundamental para a construção do argumento do Jamais Fomos Modernos. Essas novidades nos estudos da ciência, essas mais refinadas construções de história e antropologia das ciências vão ser elementos importantes nas condições de produção do Jamais Fomos Modernos

Por outro lado, ainda, temos as novidades da antropologia do final dos anos de 1970 e início da década de 1980, que no livro aparecem personificados nos estudos de Philippe Descola, em que teremos essas novas tecnologias que estão se colocando em questão pelas divisões entre natureza e cultura ou natureza e sociedade. É claro que é algo mais antigo dentro da antropologia, mas se atinge um certo tipo de reflexão em que será possível analisar o próprio repertório mobilizado pela antropologia.

 

 

1989

Além desse contexto disciplinar, há ainda outro que é algo que é objeto do próprio livro, principalmente falando do ano de 1989. Há três fatores que interessam Latour sobre esse ano. Ele é o ano do bicentenário da Revolução Francesa, 1789, mas no momento em que a própria ideia de revolução parece falha ou não estar mais no horizonte. É esse o cenário de todas as discussões sobre o fim da História, mas sobretudo sobre os outros dois acontecimentos.

O segundo deles é a queda do Muro de Berlim, que é esse acontecimento contraditório. Por um lado indica o fim da possibilidade de outro sistema ocupar o lugar que o capitalismo ocupa, na medida em que se entende coletiva e socialmente que o socialismo falhou. Mas a vitória do capitalismo, que para os ideólogos do capitalismo seria a vitória da liberdade, se dá nessa dupla situação da extensão da dominação sobre os trabalhadores e da extração de valor. Ao mesmo tempo, ainda temos um momento em que desponta com muita clareza o desastre climático.

Temos assim, em 1989, na análise de Latour, essa confluência de um legado de revolução, da impossibilidade de revolução e de uma contradição sobre a natureza do futuro. Isso forma um caldo disciplinar e histórico que está em jogo no texto. Na própria obra de Bruno Latour temos uma série de textos que antecipam o Jamais Fomos Modernos. Temos, nesses textos, diversos autores e, em especial o texto Ciência e Ação, que é o mais importante que vem antes do Jamais Fomos Modernos, que organiza teórico e metodologicamente muitas dessas possibilidades da investigação científica que Latour e outras pessoas estavam fazendo naquele momento.

 

 

IHU – O que esses momentos de estudos anteriores ao Jamais Fomos Modernos revelam?

Fernando Silva e Silva – É interessante entendermos que Jamais Fomos Modernos, em 1991, é a culminância de um programa de pesquisa que antecipa ele desde o final dos anos de 1970, com Vida de Laboratório, até o Ciência em Ação [outros textos de Latour], e tudo isso conflui nele. Assim, o texto não pode ser entendido isoladamente nem mesmo em relação ao seu passado porque tem algo de organizador e de propor algo para se ir além do que já havia sido feito até aquele momento.

Em outro sentido, ser uma culminância significa que ele é um retrato daquele momento muito específico do pensamento de Latour. Isso é algo importante para pensarmos sobre os conceitos principais dele e como esses conceitos se estendem depois desse momento. Assim, podemos compreender o quanto essa fotografia que é o Jamais fomos Modernos é tão situada em 1991.

 

 

Constituição moderna

No livro, a principal ideia que vai atravessar a obra é a ideia da constituição moderna. O que é curioso porque essa ideia de constituição não é o que mais se fala hoje quando se trata sobre a obra. Se fala dessa ideia da modernidade contraditória, sobre o parlamento das coisas, sobre híbridos, trabalho de tradução e purificação, mas o que sustenta toda a argumentação do texto é a maneira como Latour organiza isso nessa ideia de constituição moderna. Isso será a tese forte tanto histórica quanto antropológica desse texto, porque a constituição é a articulação intelectual na qual se apresenta os resultados do que Latour pretende fazer, que é um trabalho antropológico sobre os modernos ou sobre o Ocidente.

Ele se coloca nessa questão de ser um antropólogo, ou mesmo etnógrafo, da modernidade numa situação em que historicamente essa possibilidade foi barrada. A possibilidade de fazer etnografia estava barrada pelos próprios elementos que constituem essa modernidade. Isso acontece porque o antropólogo ocidental, por definição, pode ir até não ocidentais modernos e fazer um trabalho completo de descrição em que não haja mais um abismo, uma separação entre o que seriam elementos naturais e elementos sociais, divinos, etc.

Ou seja, é possível o antropólogo fazer uma descrição unificadora daquela comunidade que é de interesse dele, mas, quando esse antropólogo retorna ao Ocidente ele não é capaz de fazer o mesmo movimento. Está vetado de descrever da mesma maneira uma associação de bairro e um laboratório científico, porque se entende que são essencialmente diferentes não só as atividades que essas comunidades desempenham, mas que elas dizem respeito a zonas ontológicas diferentes na sua atividade. É justamente essa situação que Latour vai tentar contornar com o trabalho dele ao sugerir fazer essa antropologia dos modernos no seu texto.

 

 

IHU – E como podemos compreender em profundidade o que é a essa constituição moderna?

Fernando Silva e Silva – Para entendermos o que é essa constituição, precisamos ver que, para Latour, a modernidade se organiza em torno de quatro repertórios, de quatro maneiras diferentes de abordar esses polos de seus pensamentos. Isso vai organizar o dizível e o indizível.

Latour, assim, vai dizer: “os modernos desenvolveram quatro repertório diferentes que acreditavam ser incompatíveis para acomodar a proliferação do quase-objetos.

1) O primeiro repertório trata da realidade exterior de uma natureza da qual não somos mestres, que existe fora de nós e que não conta nem com nossas paixões e nem com nossos desejos, ainda que sejamos capazes de mobilizá-la e de construí-la”. Então, esse primeiro repertório é a natureza.

2) Ele segue: “o segundo repertório trata do laço social, daquilo que liga os humanos entre si, das paixões e desejos que nos agitam, das forças personificadas que estruturam a sociedade a qual nos ultrapassa ainda que seja construída por nós”. Assim, temos no segundo repertório a sociedade.

3) “O terceiro repertório trata da significação e do sentido dos actantes que compõem as histórias que contamos uns aos outros, das provas que eles enfrentam, das aventuras que atravessam, dos tropos e dos gêneros que os organizam, das grandes narrativas que nos dominam infinitamente ainda que sejam simultaneamente texto e discurso”. O terceiro repertório é a linguagem ou a semiótica.

4) “E o quarto repertório, enfim, fala do ser e desconstrói aquilo do que nós esquecemos quando nos preocupamos apenas com o ente ainda que a diferença do ser seja distribuída pelos entes coextensivos a sua própria existência”. E o quarto repertório é essa própria metafísica moderna, sejam ela presente ou ausente.

A confluência desses quatro repertórios vai formar o que Latour chama de a constituição moderna, essa relação entre o dizível e o indizível ou ainda as entidades que estão ou não estão presentes na coletividade que vão orientar a maneira como nós distribuímos aquilo que existe no mundo. Essa é a grande novidade da análise que Latour faz e parte do que ele tenta provar ao longo do texto dele. O que Jamais Fomos Modernos está tentando fazer nesse momento, em 1991, é o que Latour chama de uma contrarrevolução copernicana, pensando nisso que a gente chama, em Kant, da sua revolução copernicana.

Para Latour, essa revolução em Kant vai ser o que confirma essa cisão entre sujeito e objeto, entre natureza e sociedade. Latour tenta assim fazer uma contrarrevolução copernicana em que essas garantias contraditórias que a natureza oferece, que a sociedade oferece, descritas nessa constituição seriam desmontadas. E, dessa maneira, feito esse desmonte da constituição, os polos natureza e sociedade não seriam mais incomensuráveis, não seriam mais grandes planetas totalmente distantes. E, ao mesmo tempo, o abismo entre o sujeito e objeto seria desfeito. E na linha que liga os dois polos, que liga o polo natureza e sociedade, nessa linha se poderia encontrar incontáveis quase-objetos e quase-sujeitos habitando.

 

 

IHU – O que pode ser potente nessa análise latouriana?

Fernando Silva e Silva – O interessante da análise latouriana seria compreender como, nessa linha, esses quase-sujeitos e quase-objetos se tornariam progressivamente sujeitos e objetos. Essa descrição da constituição moderna e a descrição da atividade moderna por um lado pode purificar certas entidades em entidades que chamaríamos de naturais e sócias. Mas, ao mesmo tempo, fazer um trabalho subterrâneo de tradução pelo meio do qual efetivamente esses quase-sujeito e quase-objetos sempre navegaram entre esses polos.

O que faz Latour dizer que "jamais fomos modernos", é que não seria possível afirmar sermos efetivamente modernos porque aquilo que o Ocidente acreditou que o tornava moderno, isto é, a distinção entre natureza e cultura e essa radical diferença entre os outros, não tem a radical capacidade de distinguir entre natureza e cultura. A afirmação bombástica de Latour naquele momento é que aquilo que os modernos diziam fazer, na verdade, estavam por trás das cortinas, ou lá na cozinha, não fazendo.

Enquanto ele se entendia na constituição moderna de que os modernos eram capazes de manipular puramente objetos naturais e objetos sociais, às escondidas, nisso que chama das atividades da parte de baixo dos modernos, os modernos produziam traduções entre quase-sujeitos e quase-objetos sem parar. Uma vez que reconhecemos isso, o texto de 30 anos nos levava de fato à admissão de que de fato era isso que acontecia, não era somente um trabalho de purificação, mas havia conjuntamente um trabalho de tradução.

Esse reconhecimento seria, então, a própria sanha de ser moderno, pois o moderno poderia se reconhecer como jamais ter sido moderno. E, nesse sentido, sendo desde sempre pré-moderno. Por isso, temos essas várias figuras que habitam o texto positiva e negativamente, que são o moderno, o pré-moderno, o anti-moderno, o pós-moderno. A intenção de Latour é de que se reconheça que aqueles que nem mesmo se acreditavam modernos são modernos. Nesse sentido, tanto as críticas anti-modernas quanto as pós-modernas não farão qualquer sentido, porque seriam extensões desse projeto moderno quando, na verdade, jamais fomos modernos. Afinal, a posição que sempre realmente existiu foi a condição pré-moderna em que os quase-sujeitos e quase-objetos se proliferavam e se produziam continuamente no trabalho tradutório e de purificador da organização dessas entidades em diferentes polos de natureza e sociedade.

 

 

Híbridos

Isso que ele chama de quase-sujeitos e quase-objetos é o que também vai chamar no seu texto de híbridos, essas entidades em que ainda não é possível dizer se são natureza ou se são sociedade. E essa incapacidade de dizer não está ligada ao fato de que ainda não houve instrumentos para corretamente purificar aquela entidade, mas está ligada ao fato de que as naturezas das entidades são assim e ainda é necessário realizar um trabalho purificador. Não é uma ignorância daquele que analisa a incapacidade de dizer, mas o que nada encontrado vai ser puramente natureza ou puramente sociedade.

Aquilo que é puramente natureza ou sociedade é sempre resultado de um trabalho purificador. Então, antes disso é preciso produzir essa comensurabilidade passo-a-passo a partir de um trabalho introdutório. Nesse trabalho que descrevi, é importante que se sublinhe isso até para compreendermos o papel que Latour desempenha no discurso intelectual desse momento. É um momento em que a solução que Latour nos sugere e que está descrevendo vai manter os polos de natureza e sociedade, ou natureza e cultura.

 

Mediações

Assim, em Jamais Fomos Modernos Latour não se desfaz a contradição entre natureza e sociedade. O que faz é pluralizar as naturezas e as sociedades entendendo que elas vão ser sempre resultados de uma série de processos de mediação, ao invés de ser a natureza a origem dos objetos e a sociedade a origem primeira dos sujeitos. Significa que vai defender uma não separabilidade da produção comum das sociedades e das naturezas. Ou seja, quando se produz sociedade se produz natureza.

 

Natureza subjetiva e transcendental e uma sociedade livre e imanente

Ainda assim, ao mesmo tempo, Latour tem interesse em reafirmar a existência de uma natureza subjetiva e transcendental e de uma sociedade livre e imanente. Para ele, esses conceitos são capazes de produzir uma vida social e coletiva desejável, mas produzidos a partir do signo de uma comensurabilidade dessa natureza objetiva transcendental e dessa sociedade livre e imanente. É ambas serem capazes de conviver, quando na constituição moderna elas não eram assim, precisavam ter uma constituição dicotômica. Esse é o arranjo que Latour vai fazer nesse momento no Jamais Fomos Modernos, em 1991.

 

IHU – E a ideia de "parlamento das coisas"?

Fernando Silva e Silva – É somente nas últimas páginas do texto que Latour vai trazer a ideia de parlamento das coisas. É algo bastante pequeno e que aparece quase que como uma ideia a mais não desenvolvida, mas é uma ideia que teve muita atração na discussão dos usos das ciência, das novas sociologias ou antropologias.

De certa forma, essa ideia de parlamento das coisas é muito representativa dessa imaginação política de Latour. É uma imaginação um tanto fraca, porque nesse momento ela se coloca na intenção de resolver ou produzir uma boa articulação, lá em 1991, para esses problemas das mudanças climáticas, da exploração capitalista e supondo que essa solução seria possível através da extensão da democracia liberal europeia às "coisas". E mais: imagina que essa extensão da democracia às coisas seria necessariamente feita por intermédio dos cientistas.

É claro que para nós pesquisadores da América Latina, mesmo na época, não era difícil imaginar que um pouco mais de democracia liberal europeia não seria capaz de solucionar seja a exploração capitalista, seja a exploração do corpo da terra. Mas essa proposta latouriana daquele tempo e de alguns anos depois tenta pensar de que maneira é possível estender os recursos democráticos envolvidos na Europa em favor de uma espécie de justiça social não muito clara, pois ela é de um certo grau anticapitalista, mas não é pró alguma coisa exatamente.

 

 

A real novidade

O que o esquema do parlamento das coisas trouxe de novidade naquele tempo é justamente essa questão de fazer o que se faz os que chamamos de não-humanos, ou simplesmente das coisas. Isso vai gerar desentendimentos produtivos e improdutivos. O próprio Latour aponta que se entendeu algo que ele não queria dizer com isso, principalmente que o parlamento daria voz às coisas ou daria voz aos não humanos. Na verdade, o que ele defendia é que o parlamento das coisas colocaria um acento no parlamento para os cientistas na medida em que a influência da ciência se dava por debaixo dos panos. Sua proposta é de que isso se desse de maneira explícita e anunciada, sabendo o que e quem os cientistas estavam representando.

Na verdade, não é por nada que se fez a leitura mais radical de Latour, principalmente, talvez, aqui na América latina ou em outros lugares parecidos. A ideia de que se daria voz aos não humanos parece um tanto mais efetiva e capaz de mudança do que simplesmente essa extensão da democracia liberal para incluir os cientistas.

 

IHU – O que persiste de Jamais Fomos Modernos no pensamento de Latour?

Fernando Silva e Silva – Repassei rapidamente algumas das questões principais do texto para que possamos compreender de que maneira vai haver ou não uma continuidade do que está aqui nesse texto de Jamais Fomos Modernos. Esse esquema que trouxe aqui (essa separação de natureza e sociedade através do trabalho de purificação, a ideia desses quase-sujeitos e quase-objetos situados na linha que conecta natureza e sociedade, o trabalho tradutório, o trabalho de mediação, a ideia de uma simetria na abordagem das ciência e das outras áreas de uma vida coletiva, de uma simetria na abordagem do natural e do social – simetria essa que aliás está no subtítulo do Jamais Fomos Modernos, que chama Ensaio de Antropologia Moderna – e conceitos de híbridos e etc.), com todos esses conceitos que reúnem o principal daquilo que foi reproduzido ou copiado, criticado ou mesmo atacado desse texto. Essas ideias que o texto trouxe até hoje se entende, seja no sentido positivo ou negativo, serem as características do pensamento latouriano.

Essa é, talvez, a nossa situação mais contraditória porque justamente o que somos capazes de observar analisando a obra latouriana, ou mesmo acompanhando suas reflexões ao longo de conferências que profere, é que basicamente nenhum desses termos ou dessas formas de pensar vai persistir no seu pensamento.

 

IHU – O que significaria, então, o fato desse texto ser entendido ainda como um modelo teórico-metodológico?

Fernando Silva e Silva – Há muitos críticos de Latour, alguns com mais, outros com menos razão, que se reportam a esse livro. A questão é: o que se está criticando? Essa pessoa está criticando Latour, uma disciplina ou um texto específico de 1991? As mesmas questões também valem para quem se baseia nesse texto.

Essa contradição é a própria limitação dos termos que se articula no texto, podendo ser facilmente verificada, ainda sem a necessidade de sair dos anos de 1990. Olhando para oito anos depois, em 1999, no Políticas da Natureza, veremos que Latour não falava mais em simetria, que estava no subtítulo do Jamais Fomos Modernos. A ideia de antropologia simétrica ou de simetria já não interessa mais a Latour, que vai dizer que a simetria acaba passando uma ideia equivocada do que ele tentou construir porque ela parece sugerir que o interessa no movimento que ele está fazendo é o estudo simétrico da natureza e da sociedade ou estudo simétrico dos humanos e não humanos.

Então, nesse sentido, a simetria funcionaria, contra a vontade dele, para dar uma continuidade ao arranjo em que estão divididas natureza e sociedade ou os humanos e não-humanos. Quando, na verdade, sua intenção seria não estar mais preso nessa polarização entre natureza e sociedade. Mas, claro, isso entra no fato de que em Jamais Fomos Modernos a distinção entre natureza e sociedade é mantida. É, inclusive, defendida, apenas num novo tipo de abordagem. Latour vai se ver, poucos anos depois, na situação de fato querer se livrar (que é um movimento que ele faz) da polarização entre natureza e sociedade, o conceito de simetria que acaba sendo um problema para ele.

 

IHU – E que outro conceito vai abandonar?

Fernando Silva e Silva – Um dos outros conceitos que Latour vai abandonar é a ideia de híbrido. A partir de 1999, com o Políticas da Natureza, ele não vai mais falar nessa ideia de híbridos por uma série de razões, passando a mobilizar muito mais ativamente o conceito de questões de interesse ou simplesmente o conceito de coisa, no sentido de coisa enquanto uma reunião. Esses conceitos vão substituir completamente a ideia de híbrido da qual ele não vai mais falar.

 

 

Parlamento das coisas

Oito anos depois, também, falando no Políticas da Natureza, a própria ideia de parlamento das coisas, que foi tão produtiva e ainda se discute hoje, é deixada de lado, embora que, no Políticas da Natureza, Latour sugira uma outra ideia de parlamento que vai refinar um pouco mais e elaborar de outra maneira, seguindo uma pouco essa ideia de democracia europeia. Com isso, o parlamento das coisas vai ganhar uma outra forma como república. Inclusive, a ideia de constituição moderna, que foi aquilo no qual se fundamenta a tese do Jamais Fomos Modernos, se transforma, e a ideia de constituição passa a ser aquilo que sustenta essa República, conceito de República que seria uma nova figuração dos coletivos sociais naturais que ainda tenta estender o conceito da democracia liberal como um modelo de sociedade.

Veremos que todos os esses principais conceitos de Jamais Fomos Modernos, oito anos depois, são transformados ou abandonados. E mesmo essa inclinação latouriana ao uso do modelo da social democracia liberal, mesmo hoje, falando em 2021, Latour entende aquele momento como ingênuo. Ou ainda um excesso de otimismo da parte dele sobre a possibilidade de pura e simplesmente estender um modelo de democracia europeu e a forma com que isso seria capaz de lidar com as contradições da constituição dos coletivos ou as contradições da socialidade.

 

IHU – Qual a virada de Latour, que o vai fazer abandonar essa "ingenuidade"?

Fernando Silva e Silva – O que ele vai dizer hoje é que se nota que os adversários ou aqueles que fazem parte das contradições do debate público não estão dispostos nem mesmo a concordar e discordar. Essa era aposta dele quando falava em parlamento das coisas, que nós seríamos capazes coletivamente de concordar e discordar e, num chão comum, construir algo a partir dessa discordância. Mas afirma hoje que nem isso é possível já que, como vimos até nos textos mais recentes de Latour, como Onde Aterrar e Onde Estou, vai falar que habitamos planetas diferentes. Então, nem mesmo aquilo que se entendia como chão comum é ainda algo possível de ser produzido.

 

IHU – Diante de tudo, podemos considerar que O Jamais Fomos Modernos é um clássico?

Fernando Silva e Silva – Essa é uma questão que, pelo caminho que fiz, não é fácil de responder. Ele é um clássico da disciplina sem nenhuma dúvida, mas é, nesse sentido, uma fotografia de um momento muito específico da disciplina e de um momento muito específico do pensamento de Bruno Latour. As principais teses que ele articula são datadas. Ainda que a gente possa reconhecer como um pensamento latouriano ou ainda que seja de nosso interesse reutilizar essas teses como recurso teórico ou recurso metodológico, não podemos negar o fato de que Jamais Fomos Modernos é repleto de teses datadas.

Então, ficamos com esses 30 anos desse texto como um clássico capaz de nos introduzir questões bastante complexas da sociologia, da antropologia, das ciências, mas que ao mesmo tempo não é representativo do que é o pensamento desse pesquisador hoje. Pode parecer negativo o que eu falei sobre a própria leitura do texto, mas não é. Isso justamente é o que nos libera para que nossa leitura do Jamais Fomos Modernos seja sempre criativa e criadora com o texto. O próprio Latour não tem um compromisso definitivo com as ideias desse texto, então, nem mesmo nós precisamos fazer uma leitura fiel desse escrito.

 

 

Leitura de clássicos

Talvez, em boa parte seja o sentido não só desse clássico, mas de um texto clássico em geral, estarmos sempre livres para criar em cima dele. Clássico não é fiel nem mesmo ao autor e nem mesmo a sua própria época, ele vai ser fiel às traduções que produzirmos.

Assim, afirmo a importância da leitura desse texto como um clássico com o qual jamais se coloca a obrigação da reprodução com fidelidade de suas teses, mas um clássico que nos convida a criar em cima da tese meta-histórica de que jamais, então, talvez, tenhamos sido aquilo que acreditávamos ser. O que já era uma tese estranha, então, segue soando como uma tese diferente e que, no próprio texto, Latour vai jogando com essa ideia de que fomos modernos, mas que não podemos mais ser. Mas, também, ao mesmo tempo, jamais fomos modernos porque não fazíamos o que a gente dizia fazer.

 


Ao fim da conferência, Fernando Silva e Silva respondeu a algumas reações e questões do público. Reproduzimos, a seguir, os principais pontos do debate.

 

Guilherme Tenher – A partir da leitura de Latour da pandemia, dos recentes negacionismos climáticos e sanitários, o que a ciência deve abandonar ou avançar para se manter relevante nos espaços políticos e da sociedade?

Fernando Silva e Silva – A resposta de Jamais Fomos Modernos não tem nem essa validade toda hoje, o próprio Latour hoje daria uma resposta completamente diferente. Vamos pensar no que ele diria em Jamais Fomos Modernos e no que diria hoje, até como um parâmetro de reflexão.

A resposta na situação em que foi escrito Jamais Fomos Modernos seria de fazer acontecer o parlamento das coisas, no sentido de que a presença explícita dos cientistas no debate da constituição do coletivo seria aquilo capaz de orientar as negociações. No parlamento das coisas, há ideia de que algumas pessoas falariam pelas comunidades de um certo bairro, de um certo país por demandas sociais específicas em relação a pandemia, por exemplo. E os cientistas falariam a partir de demandas epidemiológicas, alguém falaria pelo próprio vírus da Covid-19. A articulação desse parlamentos das coisas seria a possibilidade de posteriormente constituir uma sociabilidade que leve em conta as demandas das coisas, aqui, por exemplo, o vírus, e as demandas da socialidade, construindo um novo coletivo que leva em conta a Covid-19.

 

 

Trazendo o pensamento para atualidade

Se pensarmos no trabalho atual de Latour, teríamos um situação diferente, pois o que está em jogo é essa articulação entre os planetas. Isso que Latour chama de guerra entre humanos e terrestres levaria a pensar qual é a resposta terrestre a se dar à pandemia. Qual é a resposta possível, ao invés de buscar simplesmente modernizar o problema da pandemia? Consiste, ainda, em situar o evento pandêmico dentro do acontecimento antropoceno, no reconhecimento das mudanças climáticas e sociais que o antropoceno implica. Ao colocar essa guerra em jogo, Latour está dizendo que a ideia de parlamento das coisas será capaz de produzir um chão comum com esses negacionismos climáticos e sanitários, porque esses negacionismos não estão mais em jogo.

Como ele coloca no Onde Aterrar, por exemplo, sobre o negacionismo climático de [Donald] Trump, vai dizer que isso situa completamente num outro planeta que está num vetor de distanciamento com a organização do planeta terrestre que tem interesse em persistir e multiplicar a sua vida em Gaia. Ou, ainda, na zona crítica no planeta terra enquanto tal e não interesse de habitar o planeta como visto de fora ou como se nós vivêssemos no espaço.

Assim, uma abordagem mais recente de Latour teria relação com a construção, a partir dessas ramificações terrestres, o desenvolvimento do que ele, num texto recente, inclusive, de gestos barreira que bloqueiam ou produzem essa condição de saúde, proteção ou defesa em relação aos humanos que não têm interesse em habitar a terra. Até porque, desde a COP15, de Copenhague, [Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009], Latour perdeu de vista essa ideia de que é preciso produzir um convencimento racional desses que negam o clima. Ele vai falar em uma elite obscurantista que deliberadamente produz a confusão e desconhecimento sobre a questão climática.

O que está em jogo, uma vez que ele mobiliza muito mais o vocabulário da guerra, é uma questão estratégica e organizacional do bloqueio da recriação de redes e fluxos que promovam a afirmação climática e a afirmação sanitária da necessidade de se articular em relação ao vírus de uma maneira construtiva.

 

 

João Vitor Santos – Jamais Fomos Modernos evidencia o fim de uma Modernidade ou propõe uma nova leitura sobre a Modernidade?

Fernando Silva e Silva – Essa é uma questão bastante presente não só no texto, mas também naquele momento de pós-queda do Muro de Berlim etc., em que não se sabia dizer se algo tinha acabado, retornado ao estado anterior ou se seria a grande chegada de algo novo. O movimento teórico-histórico, que nem sempre se consolida com tanta clareza no texto, que Latour está tentando fazer é de justamente dizer que não é fim de uma modernidade, pois a modernidade jamais começou.

A modernidade jamais começou no sentido de que aquilo que se considerava que diferenciava radicalmente os modernos, a ideia de que os modernos eram capazes de distinguir entre natureza e sociedade, eram capazes de verdadeiro conhecimento enquanto todos os outros humanos da terra eram capazes apenas de crenças, mostrou como eles não eram capazes de verdadeiros conhecimento. Isso na medida em que não eram capazes de distinguir conhecimento e crença que isso jamais foi verdade. Latour entende que essa formulação específica jamais foi verdadeira não só porque ele nega essa distinção entre saber e crença como a modernidade conceitua ela, mas porque ele diz que o próprio funcionamento da produção de conhecimento moderno depende disso que seria essa indistinção entre ciência e crença que se dá nos quase objetos, quase sujeitos ou híbridos.

Então, num sentido, podemos responder isso dizendo que não há fim da Modernidade, pois jamais houve Modernidade. Na verdade, o que acaba é a ideia de que fomos modernos ou a ideia de que nós precisávamos seguir ampliando a modernização, fazendo com o que o que entendemos por conhecimento destruísse tudo aquilo que fosse crença.

 

 

Fim da história

Num outro sentido, esse problema dos fins está presente no texto quando vamos pensar em teses como o fim da história, porque de fato Latour fala de um fim. Isso está ligado a 1989, que é o fim da possibilidade de se ignorar a exploração capitalista e de se ignorar os não-humanos na medida em que eles se manifestam de uma maneira irreversível que são as mudanças climáticas.

Esse vocabulário é um pouco ambíguo em Jamais Fomos Modernos, mas nas obras seguintes isso se esclarece, por isso retroativamente entendemos com mais facilidade quando Latour está falando do parlamento das coisas, de escutar os não humanos. Ele não está falando exatamente que se trata de conceder direitos aos não-humanos da bondade de nosso coração, simplesmente porque achamos que é justo ou que seria belo que os não-humanos possuíssem uma voz. O que vai dizer é que os não-humanos precisam se sentar na mesa de negociações do parlamento porque acabou a nossa possibilidade de os ignorar. Se não pararmos para escutar eles diante da situação das mudanças climáticas, o azar é o nosso, não são os não-humanos que estão implorando para serem escutados. Nesse sentido, existe aqui algo de um fim, que é o fim da possibilidade de ignorar os não-humanos.

 

 

João Vitor Santos – Então, jamais fomos modernos mesmo e nem se trata de buscarmos ser. Correto?

Fernando Silva e Silva – Exato, a ideia que o Jamais Fomos Modernos vai tentar nos dar é que, de certa forma, é preciso acabar com a farsa de que nós somos modernos. É claro que, nos textos seguintes, Latour vai complicar essa resposta, porque num primeiro ponto não é possível dizer que os modernos se entendem assim. Como se dissessem, “bem, então vamos admitir o que estávamos fazendo”, pois isso não vai resolver as contradições que a Modernidade e os modernos vivem. E, noutro sentido, esse movimento não é o suficiente para unir aqueles que se acreditavam modernos com o que se chama de pré-modernos.

O fato de que se constata é que Jamais Fomos Modernos nem em uma equivalência e nem uma justiça entre aqueles que se acreditavam modernos e os que não eram modernos. Ainda que sim, jamais fomos modernos e não se trata de o ser, essa é a defesa principal desse e de diversos outros textos de Latour. E essa resposta se torna muito mais complicada na medida que a gente tenta ponderar sobre as consequências disso.

 

Matilda Silva – A Modernidade separa homem de natureza, é isso que Latour vai questionar em seu livro. Como Latour interpreta abordagens que se pretendem como universalista? Daria para classificarmos Latour como indigenista?

Fernando Silva e Silva – Aqui, de novo, temos essa questão que podemos responder dentro do livro ou podemos responder com o que Latour produziu depois. De toda forma, o texto de Jamais Fomos Modernos coloca em jogo o entendimento moderno de que as pessoas estavam separadas de algo que se chamava natureza. Isso é algo, então, que Latour vai tentar desfazer.

Agora, quando falamos em universalismo, temos uma resposta mais complicada, inclusive dentro do Jamais Fomos Modernos, porque a intenção de Latour não é exatamente acabar com os universalismos. Ele entende, inclusive, que essa é uma ideia meio furada dos pós-modernos de tentar fazer esse movimento. O que interessa a ele é fazer com que o universalismo faça todas as baldeações, que faça o salto de algo que seria local a algo global.

 

 

Universalismo em rede

Para Latour não interessa essa distinção entre global e local. Interessa, e por isso é tão importante o conceito de rede, ponto a ponto como as redes se estendem. E nesse sentido existe um universalismo da rede. Dentro de uma rede, é possível construir algo como universal. Mas só é universal na medida em que está constituído dentro daquela rede, na medida em que a todo momentos os pedágios, os custos de baldeação, de tradução são pagos repetidamente em todos os pontos da rede. Ele tem um novo tipo de universalismo, que é esse universalismo em rede.

Não poderia dizer simplesmente que Latour defende uma espécie de tese localista ou antiuniversal. Não é essa a questão. O que ele é contra é a um universalismo moderno que não paga o preço de universalizar, simplesmente estende um conceito próprio a universal sem querer fazer todos os movimentos de conexão que uma rede exigiria ou que uma trama tradutória usaria. Então, não é possível falar de Latour como indigenista, ainda que possamos dizer que, nos trabalhos mais recentes dele, ele mesmo diria que faz um esforço para ser terrestre, pois ainda está falando na constituição de um certo tipo de universal. Como qualquer coisa no pensamento dele, é um universal cuidadosamente construído. E não um universal que está dado de antemão.

 

Louise Trivizol – Quais as ferramentas analíticas atuais que Latour pensa para abordar os híbridos? A superação das dicotomias passa por aceitar a dualidade e seguir em frente, ou alterar a forma de se referir a essa separação em polos para reconciliar as coisas? Precisamos de uma virada linguística?

Fernando Silva e Silva – Primeiramente, há ideia de que Latour não trabalha mais com a ideia de híbrido, sobretudo porque para ele esse termo se torna inadequado porque dá a entender que existe algo que é natural e existe algo que é o social e a gente estaria trabalhando com entidades que seriam um pouco naturais e um pouco sociais. Essa é uma ideia que poucos anos depois de Jamais Fomos Modernos ele vai rejeitar, dando preferência a um conceito como o de coisa ou um conceito de questões de interesse, na medida que não se tenta afirmar, de antemão, até porque seria contraditória com a tese que ele tenta defender.

Essa tese consiste em pensar que algo é parte natureza ou parte sociedade - ou parte ainda da coisa - porque essas categorias precisam ser todas posteriores ao trabalho tradutório ou ao trabalho de mediação. É nesse sentido que ele vai abrir mão desse conceito e vai considerar que é um conceito inadequado em outras situações justamente porque a ideia de superação de uma dicotomia seria uma ideia que em um sentido mais dialético do que aquilo que ele pretende fazer.

Não é interesse de Latour nem identificar dicotomias e nem sugerir um movimento de superação de todas as dicotomias. O que ele tem interesse, em sua obra recente, é que a gente nem mesmo fale mais nesses polos. O que nos interessa são os processos de produção do coletivo, reunindo humano e questões de interesse.

 

 

Virada linguística

Se precisamos de uma virada linguística? Latour diria: “Deus me livre”. No próprio Jamais Fomos Modernos, mas também em outros textos, ele fala muito contra a ideia de uma virada linguística porque entende que a virada linguística que efetivamente ocorreu produziu uma primazia da linguagem que nos torna incapazes de fazer essa análise da distinção entre o natural e o social, no que diz respeito às questões de interesse.

Eu ainda diria que talvez se trate de uma virada linguística no sentido de que existe todo um novo vocabulário que precisamos elaborar, que é o esforço que Latour vai fazer ao longo de todas essas décadas de pensar um vocabulário que não é marcado por essa bifurcação entre natureza e humanos ou entre natureza e sociedade. Podemos dizer que existe uma transformação de vocabulário na medida em que as nossas maneiras de falar ainda são completamente atravessadas por essa bifurcação entre o natural e o social, o objetivo e o subjetivo, etc. Certamente, quanto a esse vocabulário, é preciso produzir algum tipo de alternativa ou superação.

 

 

Ricardo Machado – O que significa pensar um mundo em que o que é da ordem da natureza e da cultura não está previamente dado nem é puro? Quais são as consequências filosóficas e sociais de viver em mundo em que as relações passam a ser, portanto, políticas, ou melhor dizendo, cosmopolíticas?

Fernando Silva e Silva – No Jamais Fomos Modernos, vamos ter essa ideia que faz a manutenção desses polos do natural e do cultural, se entendendo que são não mais origem e sim produtos. E isso ainda não chegaria num nível de articulação que é necessário para essa pergunta. Essa pergunta começa quando se chega no texto de Políticas da Natureza, em 1999, quando ele lê as cosmopolíticas da Isabelle Stengers (e vai até dizer na introdução de seu Políticas da Natureza que rouba completamente a ideia de cosmopolítica e constrói em cima essa virada do pensamento dele).

Aquilo que é da natureza e da cultura não estar previamente dado ou não ser puro é um primeiro problema no sentido do próprio Jamais Fomos Modernos. Esse livro tenta responder essa pergunta dizendo que estamos em relação com aquilo que é híbrido e nos interessa realizar processo tradutórios em que se medie esses quase-objetos e quase-sujeitos para produzir depois aquilo que será natural ou cultural.

A segunda pergunta que me colocas, vai se dar num outro nível quando já a própria distinção entre natural e social não funciona. Isso é uma coisa importante porque quando chegamos no Políticas da Natureza e seguimos para outros textos de Latour a própria ideia de natural e social vai sendo tirada de campo, não ajuda mais a pensar. Temos uma ideia de coletivo que aparece em Jamais Fomos Modernos, mas que aparece melhor e mais bem articulada depois como aquilo que aparece ao mesmo tempo como natural e social, reúne coisas, pessoas, deuses, paisagens, etc. e a natureza diz respeito simplesmente a essa construção moderna, histórica que se usou num certo momento e que tinha uma função política e epistemológica específica.

 

Cosmopolítica

Esses termos vão saindo de campo em favor justamente da construção dessa política do coletivo, ou ainda a cosmopolítica do coletivo, em que se coloque em jogo a produção do coletivo. É isso que é emergencial e problemático para esse Latour posterior ao Jamais Fomos Modernos. É que o trabalho cosmopolítico seja feito de forma aberta e coletivamente na distribuição desses papeis entre humanos, coisas, animais e paisagens, etc.

A principal consequência disso está na maneira como Latour vai usar a cosmopolítica, que vai se distinguir bastante da forma como a Stengers vai usar cosmopolitica. O interesse de Latour é pensar na produção desse cosmo, a partir de diversos cosmogramas, como se dá politicamente a construção de um cosmos enquanto um certo arranjo coletivo. A consequência realmente política, no sentido filosófico-social de se viver nesse mundo é que os cosmos estão em negociação. E é interessante se colocar ativamente aberto a essa possibilidade de negociação das condições do cosmos, ao invés de simplesmente se colocar que era o problema todo ao qual Latour se opunha em que os humanos se colocassem como aqueles que podem opinar sobre questões humanas estritamente, como aqueles que podem votar para representantes, sejam municipais, federais e que esses representantes sejam capazes de produzir outras articulações político-sociais.

O que o convite da cosmopolitica dentro do Latour, nesse momento ainda em meio aos anos de 1990, início dos anos de 2000, é que as pessoas podem se colocar no trabalho de produção do cosmos como um todo, juntando todas essas diferentes atribuições que se interessam por diferentes tipos de atores. Se trazemos isso para a obra mais recente de Latour, as consequências têm a ver como a própria maneira com que se vai habitar a terra, seja como um humano ou como um terrano. E, então, de que maneira eu ou meu coletivo nos situamos em relação a Gaia. Vão aparecer essas outras perguntas a partir dessas outras entidades que Latour vai colocar para jogo.

 

Daniele C. B. – Qual é diferença principal, então, de como Latour e Isabelle Stengers pensam a cosmopolítica?

Fernando Silva e Silva – Para Stengers, cosmopolítica não diz respeito a um cosmos definido, não diz respeito a qualquer tipo de organização harmoniosa. Diz respeito a intervenção de um desconhecido na organização política quando existe um encontro de heterogêneos. Assim, existe a possibilidade de intervenção de um desconhecido, o inesperado no trabalho da política. E isso que é desconhecido e inesperado é o cosmos. Aqui, o cosmos pode ser algo que descrevemos cientificamente, religiosamente, a partir de uma ideia de divindades, a partir da ficção.

Para ela, o que está em jogo é de que maneira os arranjos políticos heterogêneos são abertura ao desconhecido e de que maneira esse desconhecido enquanto cosmos é transformador, tem um efeito em que precisamos pensar como dar conta politicamente. Aquilo que intervém enquanto cosmos é aquilo que nos coloca em movimento, nos coloca em questionamento sobre o arranjo político que foi sugerido, e aquilo que ele exige de nós não é algo específico, mas um ato de criação em relação ao desconhecido.

 

Latour

Para Latour, especialmente nesse primeiro momento do Políticas da Natureza, em que vai se apropriar do conceito de cosmopolítica, o que está faltando é de bons arranjos do coletivo, na ideia de que existem diferentes coletivos por diferentes cosmogramas, diferentes maneiras de organizar e representar o cosmos. O trabalho cosmopolítico seria o trabalho de colocar em diálogo e organização essas diferentes maneiras de organizar o cosmos. Não tem esse aspecto intrusivo ou interpelativo da intrusão do desconhecido.

Em Latour, existe uma ideia muito mais tradicional de política no sentido de uma produção negociada de um arranjo harmônico desse coletivo, com a distinção que agora esse coletivo é natural – social, não é nem natureza e nem sociedade, onde simplesmente ele é um coletivo cosmopolítico na medida em que vamos abandonando esses conceitos de natureza e sociedade.

 

 

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