12 Novembro 2025
"A bioética latino-americana se ergue como palavra e caminho, e proclama que a vida — humana e não humana — vale mais do que o lucro, e que a justiça começa quando reconhecemos nossa corresponsabilidade com a vida, com os outros e com a Terra", escreve a Rede Latino-americana e do Caribe de Bioética (Redbioética), 07-11-2025.
Redbioética é uma rede independente de especialistas, intelectuais e acadêmicos dedicados à bioética, à ética da pesquisa e da ciência, com especial atenção à investigação, à educação e à promoção de princípios éticos relacionados à vida e à saúde.
Documento aprovado no encerramento do X Congresso Internacional da Redbioética Unesco: 20 anos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, 07-11-2025.
Eis a carta.
A América Latina e o Caribe vivem uma realidade que reflete o modelo global com diversas expressões em cada país e região. A expansão de novas formas de crescimento do capitalismo global, denominado biotecnocapitalismo, impacta todas as formas de vida das comunidades humanas e não humanas, atuais e futuras, em escala planetária. Trata-se de um modelo econômico-político incapaz de garantir os direitos e necessidades básicas de milhões de pessoas no Sul global, que impõe formas de controle e dominação individual e social para perpetuar sua hegemonia, ao mesmo tempo em que gera uma crise ambiental planetária, evidente nas mudanças climáticas, na degradação ambiental, na perda da biodiversidade e na instabilidade da Terra.
Resumimos alguns dos sinais desse avanço nos seguintes nove pontos:
1
O aviltamento e o descrédito do sistema internacional de direitos humanos (DH) e do sistema das Nações Unidas, que permitem a normalização de gravíssimas violações ao direito internacional dos direitos humanos e ao direito humanitário, sem qualquer resposta dos países centrais, como ocorre com as ações contra a população civil na Faixa de Gaza e com o tratamento dado a milhões de migrantes nos países centrais.
2
O aumento progressivo e alarmante das desigualdades estruturais, como resultado da concentração econômica em poucos poderes que impactam diretamente o acesso à saúde, à educação, à precarização do trabalho e à participação pública. Isso se reflete em uma matriz de desigualdade marcada por raça e etnia, gênero, classe social, idade e território, entre outros fatores, a qual, em escala global, responde a uma estratégia bio e geopolítica. A necropolítica e o racismo estrutural sustentam a lógica contemporânea de um poder que decide quem pode viver e quem deve morrer, com clara exclusão dos povos originários e da população afrodescendente.
3
O retrocesso democrático progressivo nos países da região, em que muitos governos expandem uma agenda neoliberal e neoconservadora que se expressa na perda de direitos básicos, na perseguição a movimentos sociais e sindicais e no enfraquecimento das instituições democráticas. Essas estratégias são viabilizadas por meio de lobby político, manipulação midiática e manobras de lawfare. Soma-se a isso o endividamento progressivo dos países da região, que anula qualquer possibilidade de desenvolvimento científico, tecnológico ou industrial e de soberania política e territorial, colocando as decisões nas mãos de organismos de crédito internacional e da banca financeira, submetendo os governos a uma situação de absoluta subordinação econômica, política e cultural.
4
A criminalização e censura em temas de gênero, sexualidade e direitos reprodutivos, acompanhadas de campanhas de desinformação e retrocessos normativos que atentam contra a autonomia sobre o próprio corpo e a igualdade de direitos de diversas minorias, a exemplo da comunidade LGBTIQ+.
5
A permanente ameaça de governos de países do Norte global que, sob o discurso da liberdade, da suposta defesa dos direitos ou da luta contra o narcotráfico, pretendem avançar sobre a soberania de países independentes, sobre seus territórios e recursos naturais e industriais.
6
O ataque sistemático aos marcos éticos e normativos internacionais que regulam a ética em pesquisa com seres humanos, com expressão nítida na região, flexibilizando salvaguardas históricas e colocando em risco a integridade e a segurança dos participantes. Assim, impõem-se duplos padrões éticos em pesquisas clínicas — com uso de placebo e sem garantir o direito ao acesso pós-estudo em estudos multinacionais — e sem assegurar o compartilhamento equitativo dos benefícios. Paralelamente, avançam tentativas de enfraquecer e desacreditar o trabalho dos Comitês de Ética em Pesquisa, dificultando sua atuação ético-normativa frente às empresas farmacêuticas, Organizações Representantes de Pesquisa Clínica e seus parceiros locais.
7
O avanço indiscriminado das tecnologias de inteligência artificial, assim como de estratégias de informação e comunicação por meio de plataformas internacionais que difundem grande volume de informações não verificadas e notícias falsas, promovendo formas diversas de controle, induzindo preferências políticas e de consumo e extraindo informações sensíveis por meio de um aparato de mineração de dados conhecido como colonialismo digital.
8
O aprofundamento de uma lógica neoextrativista e de expropriação, que agrava os conflitos socioambientais, ameaça os territórios de povos originários e comunidades tradicionais, destrói ecossistemas vitais e gera grave perda de biodiversidade — sob o discurso do desenvolvimento ou do crescimento econômico — que apenas beneficia as empresas multinacionais que o conduzem.
9
A tentativa de restauração tecnocrática da bioética, por meio de enfoques biomédicos reducionistas e instrumentais, que invisibilizam a dimensão política e social da vida e do cuidado, impulsionada pelo avanço do discurso da “integridade científica”, que progressivamente desloca a bioética social do centro do debate.
Desde 2003, a Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco mantém seu compromisso em defesa de uma ética da vida, atenta às suas dimensões sociais, ambientais e histórico-culturais, denunciando com voz firme os modelos neoliberais e extrativistas que avançam sobre os direitos humanos e destroem ecossistemas na região.
Diante do exposto:
- Reivindicamos a vigência e atualidade dos princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos — hoje sob ameaça de flexibilização — como ferramenta ético-normativa voltada à construção de sociedades mais justas e equitativas, com pleno respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, no marco do direito internacional e do sistema das Nações Unidas.
- Afirmamos a necessidade de uma Bioética desde o Sul, com enfoque crítico e decolonial, que enfrente explicitamente o racismo estrutural e epistêmico contra povos indígenas e afrodescendentes, reconhecendo seus saberes, espiritualidades e modos próprios de cuidado e resistência.
- Promovemos o respeito à institucionalidade democrática em nossos países, com atenção aos direitos sexuais e reprodutivos, à equidade de gênero e à igualdade no direito à gestão dos corpos.
- Propomos o debate de marcos normativos que defendam a soberania territorial de nossos países, seus bens e recursos naturais, bem como a formulação de acordos de cooperação regional.
- Instamos nossos governos a desenvolver políticas públicas e marcos regulatórios que protejam a soberania digital, assegurando a governança e a proteção de dados sensíveis, e evitando a manipulação da opinião pública por redes sociais e plataformas tecnológicas. Defendemos, para tanto, a Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial da Unesco, visando à promoção e defesa dos direitos humanos no uso de dispositivos digitais, com ampliação da acessibilidade e da alfabetização digital.
- Propomos ampliar o ensino de uma bioética social, laica e politicamente comprometida em todos os níveis educacionais, integrando-a aos programas das universidades de nossos países, como ferramenta estratégica para o desenvolvimento de capacidades humanas, a construção da cidadania e a defesa das instituições democráticas.
A bioética latino-americana se ergue como palavra e caminho, e proclama que a vida — humana e não humana — vale mais do que o lucro, e que a justiça começa quando reconhecemos nossa corresponsabilidade com a vida, com os outros e com a Terra. Pensar a natureza como bem comum é declarar o fim de seu submetimento ao cálculo e ao mercado, afirmando que seu valor não nasce do uso nem do preço, mas da pertinência compartilhada à teia da vida.
Diante da situação atual, a Redbioética Unesco convoca a um compromisso com uma transformação ética, política e cultural, centrada no respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, e ancorada na justiça social e ambiental.
Convidamos todas e todos a somar-se à expansão de uma bioética ampla, politicamente ativa e respeitosa dos direitos humanos e da institucionalidade democrática em nossos países.
E o fazemos hoje, porque é urgente - e este é o nosso chamado.
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