De profundis. Clarice Lispector na oração inter-religiosa desta semana

Foto: Reprodução | Facebook

14 Mai 2021

 

Neste espaço se entrelaçam poesia e mística. Por meio de orações de mestres espirituais de diferentes religiões, mergulhamos no Mistério que é a absoluta transcendência e a absoluta proximidade. Este serviço é uma iniciativa feita em parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira, teólogo, professor e pesquisador do PPG em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.

 

De profundis

Deus meu eu vos espero,
deus vinde a mim,
deus, brotai no meu peito,
eu não sou nada
e a desgraça cai sobre a minha cabeça
e eu só sei usar palavras
e as palavras são mentirosas
e eu continuo a sofrer,
afinal o fio sobre a parede escura,
deus vinde a mim
e não tenho alegria
e minha vida é escura como a noite sem estrelas
e deus por que não existes dentro de mim?
por que me fizestes separada de ti?
deus vinde a mim,
eu não sou nada,
eu sou menos que o pó
e eu te espero todos os dias
e todas as noites,
ajudai-me,
eu só tenho uma vida
e essa vida escorre pelos meus dedos
e encaminha-se para a morte serenamente,
e eu nada posso fazer
e apenas assisto ao meu esgotamento
a cada minuto que passa,
sou só no mundo,
quem me quer não me conhece,
quem me conhece me teme
e eu sou pequena e pobre,
não saberei que existi
e daqui a poucos anos,
o que me resta para viver é pouco
e o que me resta para viver no entanto
continuará intocado e inútil,
por que não te apiedas de mim?
que não sou nada,
dai-me o que preciso, deus,
dai-me o que preciso e não sei o que seja,
minha desolação é funda como um poço
e eu não me engano diante de mim e das pessoas,
vinde a mim na desgraça
e a desgraça hoje,
a desgraça é sempre,
beijo teus pés e o pó dos teus pés,
quero me dissolver em lágrimas,
das profundezas chamo por vós,
vinde em meu auxílio
que eu não tenho pecados,
das profundezas chamo por vós,
e nada responde
e meu desespero é seco
como as areias do deserto
e minha perplexidade me sufoca,
humilha-me, deus,
esse orgulho de viver me amordaça,
eu não sou nada,
das profundezas chamo por vós,
das profundezas chamo por vós
das profundezas chamo por vós
das profundezas chamo por vós...

 

Fonte: Clarice Lispector. Perto do coração selvagem, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 198-199.

 

Clarice Lispector (Foto: Acervo Instituto Moreira Sales - Wikimedia Commons)

Clarice Lispector (1920 - 1977): Escritora e jornalista ucraniana, naturalizada no Brasil. É vista como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX, de grande influência na literatura nacional e no modernismo. Escreveu diversos romances, contos e ensaios, Clarice publicou uma vasta obra literária, com mais de 20 livros. Além de livros infantis, como, O mistério do coelho pensante (1967) e A mulher que matou os peixes (1968), é autora de Perto do coração selvagem (1943); O lustre (1946); A cidade sitiada (1949); A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G. H. (1964), Água viva (1973), Um sopro de vida (1978), entre outros. 

 

Leia mais