12 Novembro 2025
Estamos iniciando uma série de entrevistas com feministas que participaram do Congresso de Economia Feminista realizado em Sevilha em outubro passado. E começamos com Miriam Nobre, uma das figuras de destaque do programa.
A entrevista é de Marina Reig, publicada por El Salto, 11-11-2025.
Miriam Nobre é uma ativista feminista brasileira, agrônoma e mestre em Integração Latino-Americana. Integrante da Marcha Internacional de Mulheres com décadas de experiência, ela explica como o feminismo e a agroecologia se cruzaram na luta por alimentos sustentáveis e pela visibilidade do trabalho feminino na agricultura.
Eis a entrevista.
Miriam, você trabalha com comunidades e, ao mesmo tempo, é uma autoridade acadêmica em agroecologia e soberania alimentar. Como essas duas facetas coexistem?
Não me considero uma acadêmica no sentido tradicional; sou ativista feminista há muitos anos. Meu trabalho sempre se situou entre a ação e a reflexão coletiva. A academia me proporcionou a oportunidade de aprofundar e sistematizar reflexões que surgem da prática, mas sempre em diálogo com a organização e a ação social. Por exemplo, na SOF (Sempreviva Organização Feminista), a organização feminista no Brasil onde trabalho, nos desafiamos a escrever sobre nossas experiências, conectando-as a outras áreas do conhecimento. Essa interação entre prática e reflexão é vital: conferências, como esta em Sevilha, e pesquisas nos permitem continuar explorando questões que, no dia a dia, precisam ser resolvidas rapidamente, sem tempo para pausas e reflexões.
Como surgiu sua conexão com o feminismo e a agroecologia?
Cresci em Volta Redonda, uma cidade industrial com forte movimento operário. Desde jovem, participei de organizações estudantis e políticas, e foi confrontando o sexismo que me deparei com o feminismo. Mais tarde, cursei Agronomia na Universidade de São Paulo, em um contexto de agricultura industrial, mas logo me envolvi com práticas alternativas e comunidades agrícolas. Lá, descobri a agroecologia: a integração do conhecimento científico e tradicional, como ensinado pela grande Ana Primavesi, sobre o solo vivo, entre muitas outras coisas.
Meu trabalho em políticas públicas surgiu dessa experiência. No final da década de 1980, no município de São Paulo, promovemos a compra de merenda escolar de agricultores familiares, garantindo que fossem saudáveis e culturalmente adequadas. Antes, a comida escolar era ultraprocessada e focada apenas em nutrientes; queríamos comida de qualidade que refletisse a vida das comunidades. Além disso, começamos a dar destaque à produção de mulheres rurais, que sustenta famílias e comunidades fora do mercado formal.
Qual a relação entre feminismo e agroecologia?
O movimento surgiu da auto-organização das mulheres. Simplesmente aplicar ferramentas baseadas em gênero não basta: vontade política e reconhecimento das contribuições das mulheres para a produção são essenciais. Por exemplo, formamos um grupo de trabalho dentro da Articulação Nacional de Agroecologia. Propusemos coisas como o registro, por parte das mulheres, do destino de seus produtos para tornar seu trabalho visível. Elas praticavam a agroecologia, mas não a denominavam: eram responsáveis pelas sementes, mas quando um banco de sementes foi criado, as mulheres não foram envolvidas. Dissemos às pessoas do movimento agroecológico: "Vejam, as mulheres têm uma riqueza de conhecimento, mas não estão participando; estamos perdendo esse conhecimento." Através da auto-organização e da pressão, gradualmente conquistamos presença.
Em um de seus discursos no Congresso, o senhor falou sobre a mudança geracional: Quais são os desafios que ela enfrenta?
É complexo. As jovens frequentemente migram para a cidade para estudar ou trabalhar, e o distanciamento da vida rural começa cedo. A escola, a discriminação urbana contra as áreas rurais e as oportunidades econômicas da cidade fazem com que poucas continuem na agroecologia. Estamos experimentando cursos que oferecem incentivos financeiros e atividades que aproximam as crianças do campo, para manter a transmissão do conhecimento. É crucial também que as cidades se conectem com essas práticas: levar jovens urbanos a intercâmbios ou projetos comunitários muda sua percepção e fortalece os laços.
Também achei interessante sua contribuição sobre hierarquias e eficiência: Como os projetos agroecológicos são gerenciados sem hierarquia?
Precisamos nos organizar coletivamente, mas a chave está na atenção e no tempo, não na hierarquia. Não queremos replicar estruturas hierárquicas, mas sim abraçar a diversidade de produção e ritmos. Por exemplo, nas redes de mulheres, elas realizam um "mutirão", um dia de trabalho colaborativo a cada mês. As mulheres trocam tarefas e experiências, valorizando seu tempo e esforço, mas também integrando as crianças à atividade, conectando-as com a terra e o alimento. A eficácia surge da cooperação e do cuidado, não da imposição de uma produtividade rígida.
Você percebe a influência do colonialismo nessas práticas hierárquicas e heteropatriarcais?
Está muito presente, mesmo naquilo que parece natural, como separar as crianças do trabalho comunitário. Uma perspectiva “civilizadora” pode levar-nos a crer que as crianças só devem estar na escola, mas devemos questionar que tipo de escola e que conhecimento está a ser transmitido. O colonialismo também molda as nossas conceções de tempo, produtividade e autoridade. É por isso que é crucial resgatar as nossas próprias temporalidades e formas de organizar a vida, inspiradas nas experiências indígenas e comunitárias, onde o tempo, o espaço e o conhecimento se integram.
Nesse contexto, qual a contribuição que sua experiência pode dar à visão europeia da agroecologia e do feminismo?
Para mostrar que a mudança exige processos coletivos e interdisciplinares ligados ao cotidiano: alimentação, educação, relações comunitárias. A resistência não é apenas política; é também cultural e emocional: cuidar da terra, das sementes e das conexões humanas faz parte da construção de um futuro possível. Participar de espaços como conferências ou mobilizações permite compartilhar essas lições e destacar alternativas às lógicas produtivistas ou hierárquicas, demonstrando que a prática e a reflexão coletivas geram transformação real.
Mas aqui no Congresso, gostei muito de compartilhar e aprender sobre as perspectivas de outras mulheres: como a possibilidade de outras formas de expressão: arte, o corpo e estar em um espaço de luta e resistência. Adorei o que uma agricultora disse na sessão de abertura: “Aprendi com a agricultura a conviver com a incerteza”. É um guia sobre como navegar no contexto político. É melhor do que acreditar que a direita já venceu... estamos vivas, resistindo, tanta coisa está acontecendo. Lembro-me de um poema palestino que resume tudo: “Enquanto tivermos as sementes para plantar novamente, estaremos lá”.
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