Teoconservadores contra o Papa Francisco

Foto: Vatican News

30 Julho 2022

 

Nunca na história recente um papa foi tão criticado a partir de dentro da própria Igreja. Por ser considerado liberal, globalista, progressista, até mesmo “comunista”. E até “herético”. É desnecessário dizer que não é assim.

 

Fernando Massimo Adonia, jornalista e ensaísta italiano, resenhou o livro “Francesco. La Chiesa tra ideologia teocon e ‘ospedale da campo’” [Francisco. A Igreja entre ideologia teoconservadora e “hospital de campanha”] (Jaka Book, 2021), de autoria de Massimo Borghesi.

 

O artigo foi publicado em Il Pensiero Storico, 26-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Há um problema entre o Papa Francisco e os Estados Unidos da América. Um problema sério que passa pelas dilacerações que atravessam a nação líder das democracias ocidentais e que mina até os fundamentos do edifício da Igreja estadunidense.

 

Rebobinando a fita dos eventos e chegando a 2013, ano da renúncia de Bento XVI e do início do pontificado bergogliano, lembraremos como foi decisivo o ativismo dos cardeais estadunidenses para que um europeu, e mais precisamente um italiano, não subisse novamente ao sólio. Uma forma para conter e punir aqueles que ofuscaram as finanças vaticanas e aqueles que não conseguiram enfrentar a chaga dos padres pedófilos.

 

Parece uma era atrás, porque, terminada a lua de mel, as maiores incógnitas para Bergoglio vieram justamente do clero estadunidense.

 

Nunca na história recente um papa foi tão criticado a partir de dentro. Por ser considerado liberal, globalista, progressista, até mesmo “comunista”. E até “herético”. É desnecessário dizer que não é assim.

 

Do outro lado do Oceano Atlântico, porém, tais atributos encontraram terreno fértil e uma consequente repercussão mundial: parte das palavras de ordem contra o atual bispo de Roma – seja de maneira consciente ou reflexa – embebem-se plenamente nas coordenadas do debate político-cultural estadunidense.

 

Para entender a questão, é necessário enquadrar o peso da agenda teocon na vida pública estadunidense.

 

Há anos, Massimo Borghesi iniciou um programa de estudos destinado a codificar os estatutos intelectuais de Jorge Mario Bergoglio. Especialista na obra do ítalo-alemão Romano Guardini, não foi difícil para ele identificar como o papa está em dívida com uma das mentes inspiradoras do catolicismo contemporâneo, inclusive do Concílio Vaticano II.

 

Reconduzindo as diretrizes da práxis pastoral de Bergoglio e a relativa abordagem das realidades mundanas ao princípio da Gegensatz (“a oposição polar”), Borghesi quis enfrentar e desfazer aquele lugar-comum que afirma que o atual pontífice não tem uma sólida base narrativa.

 

Com o ensaio “Francisco. A Igreja entre ideologia teoconservadora e hospital de campanha” (Jaca Book, 2021), o professor de Filosofia Moral em Perugia, dá mais um passo na compreensão do atual pontificado: investigar as razões profundas de uma dissensão nada ocultável, um desafio aberto com o catolicismo do outro lado do oceano. Um estudo que vale tanto quanto uma introdução cientificamente voltada aos Estados Unidos contemporâneos.

 

Há um fato que, mais do que outros, sinaliza plasticamente uma fratura que, ao longo do tempo, assumiu tons até mesmo apocalípticos: o retumbante pedido de renúncia que o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio nos Estados Unidos, exigiu do papa. No pano de fundo, a dinâmica inédita de querer coroar o ex-presidente Donald Trump como improvável defensor fidei do catolicismo dos Estados Unidos e, portanto, mundial.

 

Evidentemente algo não fecha nessa conta. Borghesi escreve:

 

“As suas duas Cartas ao Presidente, de 7 de junho e 25 de outubro de 2020, representam um exemplo único, às vezes delirante, do maniqueísmo político que circula em alguns setores eclesiásticos. Se, na primeira carta, trata-se de dois alinhamentos bíblicos, ‘os filhos da luz e os filhos das trevas’, o primeiro encarnado por Trump e o segundo pelo deep State e pela deep Church globalista, é na segunda carta, o de outubro próximo às eleições, que o tom apocalíptico atinge o seu ápice. Nela, Trump se torna o kathékon paulino, o ‘poder que freia’ a potência do mal, aquela potência que encontraria expressão no papa romano retratado como uma espécie de anti-Cristo” (p. 16).

 

É preciso dar um passo atrás para compreender como mudou profundamente a relação entre o catolicismo e os Estados Unidos da América nos últimos 40 anos, isto é, desde que o republicano Ronald Reagan era o inquilino da Casa Branca e trabalhava no colapso da URSS estabelecendo uma ponte ideal com João Paulo II, o papa polonês que deu o golpe decisivo contra os regimes do Leste.

 

Antes disso, o peso da Igreja romana na vida nacional estadunidense era bastante reduzido em comparação com os tempos atuais. Com a queda do Muro de Berlim, triunfou a ideia de que não há alternativas possíveis ao liberal-capitalismo e a um desenvolvimento diferente da história mundial.

 

Em 1º de maio de 1991, um século depois da Rerum novarum de Leão XIII, o pontífice João Paulo II publicou a encíclica Centesimus annus. A interpretação de Michael Novak, filósofo católico e conservador que leu no documento papal o manifesto que põe fim à orientação anticapitalista da doutrina social da Igreja, abriu espaço na cultura estadunidense e aplainou caminhos largos nem sempre alinhados com a orientação romana. Daí o abraço entre catolicismo e capitalismo.

 

Para Massimo Borghesi, trata-se de uma hermenêutica tão errônea quanto enganosa, mas que produz efeitos teológico-políticos notáveis, contribuindo para polarizar o tecido civil estadunidense, até às dilacerações atuais. Se o mundo liberal, a esquerda, é favorável ao aborto e atento às questões LGBT, o catolicismo conservador, estreitando uma aliança com os conservadores de matriz evangélica, desposa totalmente as guerras culturais (“cultural wars”) em defesa da vida e contra os casamentos homossexuais. Uma contraposição irredutível, que de certa forma o Papa Francisco decidiu superar colocando no centro da agenda católica a solidariedade, o ambiente e um passo missionário rumo àquelas que o pontífice define como “periferias existenciais”.

 

O resultado, por sua vez, é que Bergoglio, nesse confronto muscular, acaba dentro dele, sugado por um vórtice cheio de conflitualidade que não se esgota no debate estadunidense, mas também tem prosélitos na Itália.

 

 

Massimo Borghesi escreve, propondo uma análise exaustiva:

 

“Por que a perspectiva do papa não é compreendida? Por que ela é liquidada como modernista, progressista, até mesmo ‘herética’? O que é que não funciona mais no pensamento católico contemporâneo, já que ele não consegue mais traduzir a mensagem do Concílio da hora presente? No caso estadunidense, para entender a coupure, a ‘ruptura’, é preciso partir da histórica sentença ‘Roe versus Wade’, com a qual a Suprema Corte dos Estados Unidos legitimou o direito ao aborto em 1973, e das reações e das transformações do catolicismo estadunidense durante a presidência de Ronald Reagan (1980-1989). Foi então, com a corrente dos neoconservadores promovida por intelectuais católicos como Michael Novak, George Weigel, Richard Neuhaus, Robert Sirico, que tomou forma a orientação dos teoconservadores. Uma corrente importante que, a partir dos anos 1990, se tornaria hegemônica no mundo católico estadunidense, a ponto de definir os dois pilares de uma nova Weltanshauung: plena reconciliação entre catolicismo e capitalismo e cultural wars no terreno ético. Surge o catocapitalismo, uma nova forma do ‘americanismo católico’ dominado pela exigência de uma plena interpenetração entre a fé e o ethos estadunidense. A orientação política passa a condicionar a religiosa” (p. 22).

 

Os eventos do 11 de setembro de 2001 e a subsequente campanha global contra o terrorismo de matriz islamista, “o eixo do Mal”, só exasperariam a postura combativa dos teoconservadores, que identificam os novos inimigos no Islã e naqueles que gostariam de abrir janelas de diálogo com ele. Uma atitude maniqueísta punida não apenas por Bergoglio, mas antes ainda por João Paulo II e Bento XVI. Mas foi o papa argentino que acabou no banco dos réus.

 

A laicidade estadunidense conhece uma modulação totalmente particular, marcada por uma sacralização do poder e que recentemente contagiou também o mundo católico “made in USA”. Uma dimensão de pensamento que custa a distinguir os âmbitos e que coloca como horizonte último o ideal messiânico da nação abençoada por Deus e chamada a uma missão histórica, a de exportar a democracia para o restante do globo.

 

 

Trata-se de um credo implícito que, de certa forma, une direita e esquerda. De fato, a novidade do pensamento neoconservador foi justamente a de ter transferido para o campo conservador as expectativas que, em épocas anteriores, estavam do outro lado da barricada.

 

Massimo Borghesi explica:

 

“O movimento teocon, que a partir dos anos 1980 tomou o lugar do messianismo catomarxista dos anos 1970, representa uma teologia política conservadora, uma variante de direita da teologia política de esquerda. Assim como esta última, a primeira também concebe a fé como uma mensagem inteiramente terrena nos meios e, no fim, usa-a como volante de secularização. Por isso, a sua parábola está inteiramente ligada ao movimento da política estadunidense com as presidências de Reagan e de Bush Jr. […] A investidura messiânica que marca a era Bush implica uma metamorfose do político, que se torna religioso, e do religioso, que se torna político. […] Um processo que, depois de Bush, também caracterizaria o messianismo democrático promovido por Barack Obama” (pp. 30-31).

 

Os efeitos desse complexo de ideias irrompem dos Estados Unidos até a Europa. Daí a passagem de cristãos para “cristianistas”, segundo a definição dada pelo vaticanista Lucio Brunelli e que Borghesi assume como bússola interpretativa:

 

“Todos os cristianistas têm o ar do católico combativo. Chega de conversinhas ecumênicas, é preciso uma identidade forte. Eles se sentem em minoria. Na política, estão preferencialmente com a centro-direita; na economia são ultraliberais; em nível internacional, fervorosos americanistas [...] Mas a verdadeira novidade é o pathos que põem em prática. O espírito de militância. E sobretudo a forte motivação ideológico-religiosa. Da teologia da unicidade de Cristo Salvador, decorre, sem dúvidas, uma atitude beligerante em relação ao Islã. Da crítica ortodoxa ao pelagianismo, vem a acusação desdenhosa contra aqueles cristãos que se dedicam predominantemente às iniciativas sociais em favor dos ‘últimos’. Da denúncia do irenismo ideológico, chega-se ao entusiasmo pelas expedições militares aliadas. Todas essas características são a essência do perfeito cristianista.”

 

A abordagem do Papa Francisco, evidentemente, move-se em coordenadas muito diferentes. Em primeiro lugar, há a atenção à divina misericórdia, colocada sobre uma linha de urgência missionária que precede a formulação e a defesa das verdades morais individuais. Há o primado da solidariedade e da promoção humana diante das palavras de ordem do mercado. Por fim, há o primado da paz diante das proclamações de guerra.

 

Massimo Borghesi analisa e denuncia o mal-entendido totalmente estadunidense que considera Bergoglio um pontífice “bonzinho, de pensamento adocicado e feminino”. Segundo o filósofo de Perugia, o pensamento do Papa Francisco é integralmente católico e se embebe não apenas nas intuições de Romano Guardini e na doutrina social, mas também está modelado plenamente segundo a mística de Santo Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas. E o pontífice é jesuíta.

 

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