A degradação do Pampa e desinteresse político. Entrevista especial com Carmen Oliveira

Arroz, soja e silvicultura estão descaracterizando o bioma Pampa, afirma a pesquisadora

Foto: Beduka

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 05 Outubro 2021

 

As principais transformações no solo do bioma Pampa estão ocorrendo nos campos nativos, onde a atividade agrícola "segue em curva ascendente". De outro lado, as áreas de florestas estão estáveis. Esse panorama geral do bioma, contudo, apresenta apenas uma visão parcial do que tem acontecido no ecossistema nos últimos anos. Segundo Carmen de Oliveira, autora da pesquisa "Análise de mudanças da cobertura e uso do solo no Bioma Pampa com matrizes de transição", uma análise detalhada do bioma revela que 46% da vegetação é nativa e 44% é "vegetação nativa suprimida em uso antrópico".

 

De acordo com ela, "a conversão dos campos por lavouras de monoculturas, principalmente grãos, ou silvicultura para obtenção de celulose" é hoje uma das principais causas de mudança do ecossistema.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Carmen explica que a continuidade da expansão agrícola "implicará alterações no ambiente como um todo, como a perda da biodiversidade, degradação do solo por causa da influência dos processos de arenização, contaminação da água por causa dos cultivos de arroz e o uso de herbicidas que causam contaminação e empobrecimento do solo".

 

Ela pontua ainda as dificuldades de o governo gaúcho colocar em prática a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, criada em 2012 e regulamentada em 2015 no Rio Grande do Sul. "Parece que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA ainda não implementou o Programa de Regularização Ambiental – PRA. Esse desleixo deixa nas mãos dos proprietários a proteção da vegetação nativa de suas propriedades", menciona.

 

Carmen de Oliveira é graduada em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário La Salle, Canoas e mestre em Sensoriamento Remoto pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Desde 2015 faz parte da equipe do Laboratório de Geoprocesamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Em seus estudos, a senhora aponta que campos nativos do Pampa do Rio Grande do Sul “vêm, de forma consistente, sendo fragmentados e descaracterizados”. Por que isso tem ocorrido? E como se dá essa descaracterização?

Carmen Oliveira - A descaracterização ocorre pela prática intensiva da agricultura. Ou seja, a conversão dos campos por lavouras de monoculturas, principalmente grãos, ou silvicultura para obtenção de celulose. Claro que, essa intensificação está atrelada a fatores como a falta de políticas públicas de conservação, a implantação dos diversos sistemas agrários, muitas das vezes não sustentáveis, além do uso de herbicidas, que contaminam o solo e a água subterrânea.



IHU - Onde estão as regiões do Pampa mais impactadas? Das áreas alteradas, que tipo de vegetação tem sido mais abundante?

Carmen Oliveira - A região da Fronteira (oeste) está entre uma das mais antropizadas. Essa região é conhecida como tradicional no cultivo de arroz e soja. No Planalto Médio e Missões, ocorre o predomínio da soja. A região da Campanha (leste) possui vegetação campestre com grande diversidade, portanto, é típica a prática da pecuária extensiva, além da tradicional prática do cultivo de arroz e soja. O extremo Oeste é a região com maiores porções de campos conservados. Bem como o Planalto da Campanha, considerado a região mais bem preservada, apresentando alta riqueza de espécies. Contudo, esse “título” foi dado devido a presença dos solos rasos e de difícil mecanização. Na Depressão Central há um “mix” de culturas, desde arroz, soja e silvicultura. A Serra do Sudeste tem a prática da silvicultura. Nessa região ainda temos áreas formadas por campos de florestas naturais. Já a Zona Costeira é tradicional ao cultivo de arroz.

 

 

IHU - O que essas transformações podem acarretar?

Carmen Oliveira - Implicará alterações no ambiente como um todo, como a perda da biodiversidade, degradação do solo por causa da influência dos processos de arenização, contaminação da água por causa dos cultivos de arroz e do uso de herbicidas que causam contaminação e empobrecimento do solo. Como resultado, estamos caminhando para a extinção de espécies importantes para a manutenção da biodiversidade local, que poderá interferir nas demais regiões do bioma, visto que esse se estende para a Argentina e o Uruguai.

 

 

IHU - Qual a atual situação do bioma Pampa hoje? O que se tem em termos de áreas originais?

Carmen Oliveira - Quando se fala em áreas originais, podemos destacar dois pontos importantes. De um lado, as maiores transformações ocorrentes são nos campos nativos, onde a perda se intensificou nas últimas décadas devido ao aumento da agricultura que segue em curva ascendente, sem indícios de estabilização. De outro lado, as áreas de florestas se mantêm estáveis. De acordo com os dados do MapBiomas, em 2020, cerca de 32% [das áreas do bioma] são áreas campestres, 11% florestas, 2% silvicultura, 39% agricultura, 12% outras áreas. Olhando assim, não parece tão preocupante, certo? Então analisaremos em detalhes: do território do Pampa, 46% é vegetação nativa e 44%, vegetação nativa suprimida em uso antrópico – dados preocupantes! Ou seja, houve uma transformação muito significativa nesse período, a qual não há previsão de estabilizar, e/ou reduzir (em um cenário muito sonhador, eu diria) e assim, manter um X de áreas preservadas. Ainda temos 9,8% de água e areia.

 

 

IHU - O Pampa é um ecossistema que se configurou a partir da presença da pecuária. Como as transformações dessa cultura tão característica do Rio Grande do Sul têm contribuído para as transformações e conversões de uso de solo?

Carmen Oliveira - Na verdade, o Pampa não se configurou a partir da presença da pecuária. O que acontece é que desde a colonização ele vem sofrendo alterações. Nesse período ocorreram as demarcações de fronteiras e a introdução da pecuária. Porém, essa prática não necessita suprimir a vegetação campestre. Claro que a intensificação da pecuária, como a grande quantidade de animais, por vezes maior que a capacidade de uma propriedade, faz com que a vegetação campestre não resista. Consequentemente, a falta de pasto natural/nativo leva os produtores a recorrerem à plantação, principalmente de espécies exóticas de gramíneas e algumas leguminosas, aderindo ao uso de herbicidas que contaminam o solo e a água subterrânea. Sendo assim, [a pecuária] pode ser uma atividade economicamente viável e sustentável com a conservação da diversidade ali existente quando comparada com a agricultura, que, para tal, a vegetação campestre é totalmente transformada em monoculturas.


IHU - Seus estudos também apontam a agricultura como central nessa conversão dos usos de solos e transformações da cobertura vegetal do Pampa, mas gostaria que detalhasse de que tipo de agricultura estamos falando? Quais são as culturas e como são cultivadas?

Carmen Oliveira - Dentre as culturas, podemos citar como principais: arroz, soja, silvicultura. Claro que temos outros tipos de monoculturas, como, milho, feijão, mas em proporções menores.

 

 

IHU - É possível reverter a descaracterização de áreas do bioma Pampa? Como?

Carmen Oliveira - Creio que essa seria uma tarefa quase impossível, uma vez que os dados apontam aceleração nas transformações das áreas naturais e não há políticas adequadas para a restauração do Pampa. Contudo, a pecuária sustentável, onde se faz o manejo da vegetação nativa sem impactar na biodiversidade local, seria a forma de não perder o campo nativo, mantendo sua riqueza.

 

 

IHU - Quais os desafios para a preservação do Pampa?

Carmen Oliveira - São grandes. Por ser predominantemente formado por vegetação campestre, muitas vezes pode passar despercebido aos olhos da sociedade, contudo, apresenta grande riqueza e diversidade. Talvez isso tenha contribuído, infelizmente, para [o Pampa] ser hoje o segundo bioma mais devastado. Isso é bem preocupante e mostra que temos um desafio longo pela frente.

 

 

IHU - Em que medida a política ambiental do atual governo federal tem contribuído para o aumento da degradação do Pampa? Como reagir a essa degradação?

Carmen Oliveira - Na verdade, o grande problema não está tão somente no governo federal, mas também no governo estadual, embora no que cabe ao âmbito federal, deveria cobrar do estadual o cumprimento da Lei. Veja bem, em 2012 o governo federal criou a Lei Federal 12.651 (conhecida como Lei de Proteção da Vegetação Nativa), sendo somente em 2015 regulamentada por decreto no RS. Mas parece que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA ainda não implementou o Programa de Regularização Ambiental – PRA. Esse desleixo deixa nas mãos dos proprietários a proteção da vegetação nativa de suas propriedades. O que claramente não o fazem e áreas que deveriam ser preservadas continuam sendo usadas em lavouras. Também temos o não cumprimento do artigo 203, da Lei Estadual 15.434/ 2020, no que trata da proteção e conservação do Pampa. O que me parece é que a falta interesse político movimenta a degradação do Pampa.

 

IHU - Deseja acrescentar algo?

Carmen Oliveira - Está passando da hora de estimular o desenvolvimento sustentável por meio da implantação de políticas públicas voltadas à conservação e ao manejo adequado e assim, quem sabe, termos uma estabilização da degradação desse bioma tão jovem (reconhecido como bioma em 2004) e cheio de riquezas.

 

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