28 Março 2016
“Os processos da lava-jato hoje, lastreados numa “exceção” não declarada e transformados em arma político-midiática contra o direito de defesa, a presunção da inocência e o direito à privacidade, ao mesmo tempo em que investigam tudo, deixam de investigar o essencial: perdem o foco na criminalidade e colocam a política e todos os partidos, num igual plano de responsabilidade, criminalizando a política em bloco e os partidos em abstrato. A assunção ao poder, dos grupos políticos que agora são majoritários na mira da lava-jato, promove uma metáfora mórbida do clássico de Lima Barreto. Com uma diferença brutal: agora é um país inteiro que pode ir para o hospício”, escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21, 28-03-2016.
Eis o artigo.
A narrativa política que seduziu milhões, mobilizou amplos setores das classes médias, atingiu inclusive parte das camadas de baixa renda e despertou uma ira fascista em setores minoritários, mas expressivos e violentos da nossa pirâmide social, está banhada em ironia. Mais do que isso: se é verdadeiro, que a unidade dos movimentos contra o Governo Dilma é a “extinção” da corrupção no Estado e a crise econômica, o resultado alcançado – caso seja aprovado o “impeachment” da Presidenta – dará vitória precisamente para aqueles grupos políticos mais comprometidos com o aprofundamento da crise e mais supostamente envolvidos na corrupção.
Digo “supostamente”, porque sempre é bom aguardar provas e sentenças. E não me reporto a partidos, mas a “grupos”, porque os financiamentos clandestinos são feitos, em regra, a “grupos” fechados, em todos os partidos com chances eleitorais no país, conhecidos há muitas décadas. Por maior que seja o número de apurações dos órgãos de Justiça, estes financiamentos não vão se reduzir, drasticamente, enquanto persistir o financiamento empresarial dos partidos e das campanhas. Este é, na verdade, o moto contínuo da corrupção nas principais democracias do mundo. Não se trata de que os servidores públicos, os empresários ou os “políticos”, sejam mais corruptos do que os outros, mas sim de que a corrupção é um modo de relacionamento histórico do capital com o Estado, desde que o Estado existe, assim como a luta pela redução das taxas de corrupção – luta da qual também participam servidores públicos, empresários e políticos – também é uma forma de legitimação do Estado perante a sociedade.
Não podemos esquecer que “corrupção” e “desigualdade” são elementos persistentes, até hoje, em todos os sistemas econômicos modernos e nos seus respectivos sistemas democráticos e, se é verdade, que a corrupção e a desigualdade se alimentam reciprocamente, não é menos verdade que a cidadania, no Estado Social de Direito – se é incapaz de acabar com as desigualdades – tem um enorme potencial de alterar os seus padrões e tornar a sociedade mais coesa e menos desigual, dentro da democracia política. Se os objetivos dos movimentos contra a Dilma, contra o PT e a esquerda, em especial, foram combater a corrupção e a crise econômica, eles estão sendo plenamente fraudados: o contingente supostamente mais corrupto do sistema político é que substituirá a Presidenta Dilma, em caso de impedimento (como se vê pelas mesmas investigações que já transcendem o PT e a Lula) e os contingentes mais radicais, em favor dos ajustes recessivos que já estão em curso, é que estarão no poder.
Em 1993, o professor Danilo Zolo publicava um dos seus artigos mais célebres sobre a questão democrática, vinculando-a aos princípios da tradição liberal ocidental, denominado “A cidadania numa era pós-comunista”. Nele, o professor Zolo referia uma certa “melancolia democrática", que seria uma reação intelectual generosa à quebra histórica do socialismo real, imprimindo à vida comum valores políticos com capacidade utópica de resistência à vitória do capitalismo, que se reerguia contra os direitos sociais-democráticos, em todos os “fronts”. O grande obstáculo que – de lá para cá – enfrentou esta “regeneração cidadã” em defesa da democracia, foi o deslocamento dos processos de formação da opinião, para novos centros de elaboração política, nos quais as opiniões não são formadas livremente. Elas são produzidas em série, pelos oligopólios “midiáticos”, que não refletem a diversidade da sociedade civil, mas enquadram-na e a formam, como “mercado” de opinião: a informação manipulada que irracionaliza o debate político, transforma adversários em inimigos e provoca a violência, na qual os valores democráticos se dissolvem.
A pergunta que se põe como relevante, neste fim de ciclo – haja ou não impedimento – é a seguinte: o resultado querido, pela parte da sociedade que milita pelo impedimento, é a substituição da Presidenta por uma “nova coalizão”, que tenha na sua linha sucessória Temer, Cunha e Renan, com Aécio, Fernando Henrique e Bolsonaro? Se for isso, os movimentos que visam golpear o resultado das eleições – feito o “impeachment”- serão bem sucedidos. Os seus dois motivos de fundo, porém, serão fraudados. De uma parte, porque a “lava-jato” vai ter que parar, para que estes cidadãos possam governar; de outra, porque a crise econômica vai se aprofundar, já que o “ajuste” será ainda mais profundo, do que aquele que já está sendo feito. A “exceção” não declarada instituída por Moro, fraudando o Estado de Direito, ajudaria – portanto – a deposição de uma Presidenta democraticamente eleita e se extinguiria, para dar estabilidade a um Governo composto – majoritariamente – pelas forças políticas predominantes, tanto no Governo atual, como nos processos criminais que a “exceção” ensejou. É a melancolia democrática se transformando em tragédia da democracia, que lançaria o país numa indeterminação política sem precedentes.
No clássico da Velha República “Triste fim de Policarpo Quaresma” (1915), do inigualável Lima Barreto, Policarpo é alvo de chacotas generalizadas, quando no auge do seu delírio nacionalista sugere à assembleia republicana a adoção do Tupi, como língua oficial nacional, no caso com intenções altruístas, para a construção de uma identidade própria à jovem nação brasileira. Lembro o personagem de Lima Barreto, para traçar uma analogia com o que acontece, hoje, no Brasil, que remete para apreciação menos apaixonada – que todos devemos ter na política – da relação entre fins e meios. Os meios a serem acionados, se não forem coerentes com as suas finalidades, tendem a deformar os fins pretendidos. Policarpo queria contribuir para formação de uma identidade nacional, adotando a língua Tupi, para promover aquela identidade com mais rapidez. Foi internado num manicômio, porque a sua proposta banhou-se na ironia e no ridículo, por melhores que fossem as suas intenções.
Os processos da lava-jato hoje, lastreados numa “exceção” não declarada e transformados em arma político-midiática contra o direito de defesa, a presunção da inocência e o direito à privacidade, ao mesmo tempo em que investigam tudo, deixam de investigar o essencial: perdem o foco na criminalidade e colocam a política e todos os partidos, num igual plano de responsabilidade, criminalizando a política em bloco e os partidos em abstrato. A assunção ao poder, dos grupos políticos que agora são majoritários na mira da lava-jato, promove uma metáfora mórbida do clássico de Lima Barreto. Com uma diferença brutal: agora é um país inteiro que pode ir para o hospício.
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A exceção e a atualidade de Lima Barreto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU