22 Abril 2014
"O Espírito Santo está fazendo travessuras”, diz a Irmã Simone Campbell ao final do documentário “Radical Grace”.
Esta citação da religiosa é um resumo pertinente do filme-documentário, que captura um dos anos mais extraordinários da história recente da Igreja Católica: começando em abril de 2012 com a resposta indignada à avaliação doutrinal da Conferência de Liderança das Mulheres Religiosas (Leadership Conference of Women Religious – LCWR, em inglês), chegando num crescendo à espetacular renúncia do Papa Bento XVI e acabando com a conclusão surpreendente que foi a eleição do Papa Francisco em março de 2013.
A reportagem é de Jamie Manson, publicada por National Catholic Reporter, 16-04-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando a diretora Rebecca Parrish decidiu fazer o vídeo “Radical Grace” em 2010, nem mesmo o mais experiente vaticanista iria prever tantas reviravoltas dramáticas nos eventos que se sucederam.
Parrish tinha aspirações muito mais simples. Estava interessada em documentar uma comunidade religiosa centrada no trabalho pela justiça social. Uma amiga recomendou que ela se encontrasse com a Irmã Jean Hughes, dominicana de Adrian (Michigan) que trabalha com ex-presidiários em Chicago. Mas Parrish estava com dúvidas. Tendo crescido numa outra tradição cristã, ela não compreendia bem do que se tratava o catolicismo progressista.
“Eu pensava que as freiras ainda eram enclausuradas e usavam hábitos”, disse ela em entrevista por telefone na semana passada. “Não tinha conhecimento de como as comunidades religiosas tinham se desenvolvido a partir do Vaticano II”.
Após se encontrar com a Irmã Hughes, Parrish ficou “atraída pela ideia de que trabalhar pela justiça social poderia ser uma prática espiritual”.
“Eu sempre tive uma fome espiritual, embora não tenha ainda certeza exatamente em que eu acredito”, disse. “Os momentos em minha vida nos quais mais senti o fator espiritual sempre aconteceram quando em estava participando de trabalhos sociais”.
Ela concordou com a ideia de que as histórias das irmãs precisavam ser contadas, e começou então a projetar as filmagens junto da Irmã Hughes.
Após centenas de conversas com religiosas de todo o país, Parrish finalmente acrescentou mais duas integrantes ao documentário: a Irmã Campbell, presidente da NETWORK, e a Irmã Christine Schenk, diretora fundadora da FutureChurch e colunista do National Catholic Reporter. Era o início de 2012, e Parrish nem imaginava que seu projeto rapidamente acabaria levando a equipe do documentário Radical Grace a estar entre envolvida nas histórias religiosas mais importantes do ano.
As filmagens com a Irmã Campbell começaram pouco antes que a Congregação para a Doutrina da Fé publicasse sua avaliação doutrinal, que severamente criticava a LCWR por enfatizar sobremaneira a questão da justiça social e por minimizar os ensinamentos da Igreja sobre mulheres, métodos contraceptivos e homossexualidade.
O momento se mostrou oportuno porque as câmeras de Parrish não apenas testemunharam a resposta da Irmã Simone Campbell dada ao Vaticano como também o nascimento da campanha “Nuns on the Bus” [Freiras no Ônibus], movimento inspirado não pela indignação com o Vaticano, mas com a proposta orçamentária draconiana de 2012 do deputado republicano Paul Ryan.
Muitas das cenas do documentário aconteceram dentro do ônibus mesmo, capturando momentos de exaltação, como a cena da manhã em que o Supremo Tribunal confirmou a Lei de Atendimento Acessível, mais conhecida como Obamacare, bem como momentos de pura exaustão, quando as irmãs atravessavam o Centro-Oeste do país no período mais quente do verão.
O filme também acompanha a Irmã Schenk, quando esta se junta ao clamor público após a avaliação doutrinal da Congregação, ajudando na organização do Nun Justice Project e trazendo junto Erin Saiz Hanna e Kate Conmy para a vigília da “fumaça rosa” da Women’s Ordination Worldwide [organização americana em defesa da ordenação de mulheres], ocorrida em Roma durante o conclave de 2013.
No início das filmagens, Parrish comprometeu-se em acompanhar Schenk em Roma para a peregrinação anual da FutureChurch aos lugares arqueológicos de liderança feminina na Igreja primitiva. Esta decisão seria uma das mais acertadas. Por sorte, a peregrinação aconteceu no mesmo tempo em que ocorria o conclave. Na última noite de filmagem, a fumaça branca surgiu da chaminé da Capela Sistina. A câmera de Parrish capturou a antecipação nervosa de Schenk – pois que ela se encontrava na Praça de São Pedro à espera de ouvir o nome do novo pontífice – e suas lágrimas de esperança enquanto o novo papa conduzia os fiéis em oração.
O documentário “Radical Grace” se torna numa meditação sobre os trabalhos de justiça e misericórdia realizados diariamente por milhares de religiosas em todo os Estados Unidos. Próximo da conclusão do filme, a Irmã Hughes se senta numa mesa de piquenique rodeada por nove afro-americanos de seu programa social. Ela está se aposentando após 25 anos de dedicação junto a ex-presidiários, e este é seu último dia de trabalho.
“O que vamos fazer depois, Irmã Hughes?”, um dos homens perguntou.
Para estas três mulheres, o trabalho pela justiça teria continuado com ou sem a avaliação doutrinal. Mas uma das seções mais ricas do Radical Grace vem na sua exploração das diferentes respostas das religiosas à crítica do Vaticano.
Para a Irmã Campbell, a avaliação da Congregação apresenta-se como uma oportunidade. “Pensávamos que éramos anônimas e invisíveis”, diz ela. “Este é um momento oportuno. Como o usaremos para a missão?”
A Irmã Schenk reage correndo riscos maiores ainda na luta em curso para promover a liderança feminina na Igreja. “Se a noção radical de que as mulheres são iguais for um pecado”, diz ela em resposta à afirmação do Vaticano segundo a qual as religiosas estavam promovendo temas feministas radicais, “então sou culpada”.
Para a Irmã Hughes, este é um momento para introspecção. Num dos momentos mais emocionantes do filme, Irmã Hughes faz um discernimento quanto ao seu próprio papel para falar a verdade à autoridade religiosa. Como membro de uma comunidade canônica, ela questiona a sua própria relação com o poder hierárquico.
Embora o documentário Radical Grace claramente admire os sujeitos nele presentes, ele resiste à tentação de idolatrar as religiosas e permite aos espectadores o acesso raro a dilemas morais e espirituais que algumas irmãs enfrentaram depois da avaliação doutrinal.
A Irmã Hughes trava uma batalha contra a culpa na questão de se as irmãs estiveram tão comprometidas na luta por justiça social dentro da Igreja Católica quanto estiveram fora de seus muros. As “Nuns on the Bus”, enquanto se preparavam para uma conferência de imprensa, praticaram formas de evitar perguntas sobre a saúde reprodutiva e o casamento homoafetivo.
Mesmo estas mulheres, cuja trabalho e integridade inspiraram gerações de católicos descontentes, precisaram fazer concessões.
O documentário não se distancia da realidade difícil de que a maioria das comunidades religiosas estão envelhecendo. Cenas múltiplas foram feitas nas instalações de lares para idosas e em celebrações jubilares. No entanto, mesmo diante do declínio das vocações, Parrish se convence de que o desejo das irmãs em vincular a espiritualidade com o serviço social irá trazer inspiração e energia a novas gerações de pessoas que buscam por justiça.
As irmãs fornecem um modelo que, penso eu, pode ajudar ativistas sociais que estão cansados ou que buscam um aspecto espiritual para o seu serviço”, diz Parrish. “Não importa se você é católico ou alguém que não crê, as religiosas mostram que se pode realizar um serviço a partir de um ponto de vista espiritual de forma que este seja um apoio para o trabalho”.
“Radical Grace” está atualmente pequenas partes, “drops” de episódios, mas Parrish antecipa que ele terá uma divulgação tanto na televisão quanto em festivais. Ela também planeja usar o filme como parte de uma campanha organizadora de base.
“Realmente queremos que o documentário seja uma ferramenta para se construir comunidades”, disse Parrish. “Adoraríamos que o filme fornecesse inspiração a comunidades de fé no próprio trabalho social delas, ou que ajudasse a Igreja a se reformar e renovar”.
Ela também deseja que o documentário seja um construtor de pontes entre organizações de justiça social seculares e aquelas baseadas na fé. “Esperamos que ele crie espaços para o diálogo entre organizações que são avessas à religião e grupos progressistas baseados na fé”.
Depois de uma campanha inicial bem-sucedida, a equipe do documentário continua angariando fundos para o mês de abril em seu website. Aos doadores há uma variedade de presentes em agradecimento pelas doações, que vão desde camisetas e bolsas com mensagens a acesso online a uma meditação com a Irmã Campbell.
Embora Parrish esteja atualmente focada em metas como a de angariar fundos e centrada nas edições de pós-produção, ela não perdeu de vista o propósito mais profundo do documentário.
“O que aprendi durante a produção deste filme é que o trabalho pela justiça social se torna uma prática espiritual quando, no ato de servir, a fronteira entre o eu e o outro se rompe”, disse ela. “Torna-se uma comunhão. E o que é muito interessante a meu ver é que todos nós podemos participar nesta espiritualidade de justiça social, independentemente de nossa fé”.
Para ver o documentário Radical Grace em inglês, clique aqui.
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Documentário traz respostas de irmãs à avaliação doutrinal da LCWR - Instituto Humanitas Unisinos - IHU