11 Mai 2013
McEnroy, Carmel. Guests in Their Own House: The Women of Vatican II. Nova Iorque: Crossroad, 1996
Carmel McEnroy explica que as mulheres não foram convidadas para o Concílio Vaticano II como indivíduos, mas como líderes e representantes de grupos
A entrevista é de Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães | Tradução de Ana Carolina Azevedo
Faz 17 anos que a religiosa Carmel McEnroy publicou o livro Guests in Their Own House: The Women of Vatican II (Hóspedes na própria casa: As mulheres do Vaticano II). No entanto, a obra é mais atual do que nunca, pois o lugar e o papel das mulheres na Igreja ainda é tema de debate em nossos dias. 50 anos depois do início do Concílio Vaticano II, a IHU On-Line entrevistou por e-mail Carmel, que resgata os aspectos fundamentais de sua obra. Ela recorda que, na ocasião do Concílio, as mulheres eram "especialistas em vida" e não em teologia acadêmica. “Seu papel foi o de trazer o mundo para o Concílio e, então, o Concílio para o mundo. Elas deram mais contribuições práticas, sociais e culturais na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje, documento que originou-se no próprio Concílio, não preparado com antecedência. A participação das mulheres na origem desse documento importante do Concílio nunca teria acontecido sem a intervenção profética do teólogo moral alemão Bernard Häring, que insistiu que ‘metade da humanidade’ — as mulheres — não estava presente na discussão. Depois disso, as mulheres e as leigas mobilizaram-se e certificaram-se de que seriam representadas em todas as subcomissões”.
Ela afirma: “esperamos que Francisco, o novo Papa, convoque um novo Concílio para ajudar a resolver os grandes problemas que surgiram na Igreja Católica nos últimos 50 anos. Já houve alguns sinais positivos, em seu primeiro mês de papado, de que iria também dirigir-se às mulheres”.
Carmel McEnroy é irmã religiosa da Congregação das Irmãs da Misericórdia. É graduada em Teologia pelo Marillac College e mestre em Teologia pela University of St. Michael's College, de Toronto (School of Theology). Menos de um ano depois que a carta Ordinatio Sacerdotalis foi publicada (por João Paulo II, em 1994), Carmelo McEnroy, das Irmãs da Misericórdia, foi removida do seu cargo titular de professora de teologia do Seminário St. Meinrad, em Indiana, por ter assinado uma carta aberta ao papa pedindo a ordenação de mulheres.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual o papel desempenhado pelas mulheres no Concílio Vaticano II?
Carmel McEnroy - A maioria das pessoas não sabe que havia mulheres presentes no Concílio Vaticano II (1962-65). Estes Concílios sempre foram executados pela hierarquia masculina, embora as mulheres constituam mais da metade da humanidade e sejam o componente central de nossa Igreja. A Igreja não seria capaz de existir sem elas, sem sua generosidade, participação e serviço voluntário. Havia 29 leigas e 23 mulheres convidadas como auditoras de 14 países. 13 eram leigas, nove eram religiosas e uma era parte de um Instituto Secular — na época, um novo fenômeno. Duas das mulheres mais jovens vieram da América Latina e foram incluídas por causa de seu trabalho internacional com jovens. A Margarita Moyano Llerna veio da Argentina. A Gladys Parentelli veio do Uruguai e, mais tarde, trabalhou na Venezuela. É claro, se compararmos com a quantidade de mais ou menos três mil bispos, 23 é um número muito pequeno; dessa maneira, pode-se perguntar como poderiam as religiosas ter algum destaque se eram superadas, em números, por homens. A presença das mulheres é significativa, porque é a primeira vez, na história, que havia mulheres presentes em um Concílio como esse.
As mulheres não foram convidadas como indivíduos, mas como líderes e representantes de grupos, especialmente se atuavam em âmbito internacional. Muita coisa dependeu também dos bispos que elas conheciam, pois os convites precisavam ser requeridos por eles. Paulo VI convidou as religiosas como "presença simbólica" das mulheres do mundo que outrora estiveram ausentes do Concílio. Por exemplo, duas italianas, viúvas de guerra, foram incluídas como uma condenação simbólica da guerra e sua tristeza, devastação e esperança por uma paz duradoura.
Especialistas em vida
Quando os documentos principais foram discutidos, elas foram divididas em subcomissões, ou seja, grupos menores. As auditoras, bem como suas contrapartidas masculinas, foram autorizadas a participar dessas discussões, e dividiram-se para que fossem representadas em vários grupos e pudessem dar sua contribuição em cada um. As religiosas não foram tratadas igualmente, pois não foram autorizadas a fazer parte do grupo de trabalho sobre o Perfectae Caritatis, documento que diz respeito especificamente à vida religiosa. Para compensar essa exclusão, elas escreveram recomendações e entregaram-nas aos bispos amigos que estavam trabalhando no documento; caso contrário, elas não teriam conseguido dar nenhuma contribuição na renovação de seu modo de vida.
As mulheres eram "especialistas em vida" e não em teologia acadêmica. Seu papel foi o de trazer o mundo para o Concílio e, então, o Concílio para o mundo. Elas deram mais contribuições práticas, sociais e culturais na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje (Gaudium et Spes) documento que originou-se no próprio Concílio, não preparado com antecedência. A participação das mulheres na origem desse documento importante do Concílio nunca teria acontecido sem a intervenção profética do teólogo moral alemão Bernard Häring, que insistiu que "metade da humanidade" — as mulheres — não estava presente na discussão. Depois disso, as mulheres e as leigas mobilizaram-se e certificaram-se de que seriam representadas em todas as subcomissões.
Havia apenas um casal no Concílio, os Alvarez-Icazas, do México, que foram os cofundadores do Movimento Familiar Cristão. Eles fizeram uma contribuição significativa para a teologia do matrimônio, que enfatizou a posição central do amor entre as partes de um casamento, ao invés de classificar suas extremidades primárias e secundárias, como era feito até então.
Enquanto bispos do mundo inteiro participaram plenamente nas discussões, deliberações, decisões e votações do Concílio, as mulheres eram meras "auditoras" — ouvintes —, não membros ativos da Assembleia Geral da Basílica de São Pedro, onde foram realizadas as sessões diárias. Os auditores foram autorizados a dirigirem-se ao Concílio uma ou duas vezes, porém, ouvir a voz de uma mulher na Basílica foi considerado um ato "prematuro"! Alguns bispos chegaram a cobrir seus olhos quando mulheres iam receber a comunhão durante a Missa do Concílio.
IHU On-Line - Após o Concílio Vaticano II, houve algum avanço na Igreja em relação à questão das mulheres?
Carmel McEnroy - As mulheres do Concílio Vaticano II viram sua presença como um começo. Elas tinham esperança de que, no futuro, as mulheres estivessem presentes em maior número e, um dia, seriam participantes de verdade do Concílio. Não houve nenhum concílio ecumênico desde então e, por isso, não sabemos se essa esperança vai se tornar realidade, se houver um novo Concílio. Entretanto, elas esperavam que as mulheres fossem também incluídas em sínodos episcopais nacionais, o que não aconteceu. Esperamos que Francisco, o novo Papa, convoque um novo Concílio para ajudar a resolver os grandes problemas que surgiram na Igreja Católica nos últimos 50 anos. Já houve alguns sinais positivos, em seu primeiro mês de papado, de que iria também dirigir-se às mulheres.
Desde o Concílio Vaticano II, as mulheres, bem como os leigos, tiveram um papel mais ativo em suas Igrejas locais, atuando na leitura das Escrituras e na oração dos fiéis, na Missa, além de participarem na procissão do ofertório e distribuírem a comunhão. No entanto, ao passo que alguns homens, casados e solteiros, tenham sido ordenados para o Diaconato Permanente, as mulheres foram excluídas, mesmo que tenha existido diáconas na Igreja Primitiva, como consta em registros de escrituras. A Igreja Católica Romana continua a excluir as mulheres da ordenação sacerdotal.
IHU On-Line - Pode-se dizer que, depois do Concílio, a maneira de pensar das mulheres mudou dentro e fora dos muros da Igreja?
Carmel McEnroy - As mulheres, especialmente as religiosas nos Estados Unidos, estudaram os documentos do Concílio Vaticano II e se atentaram a seus ensinamentos, especialmente nas seguintes áreas:
- Todo o povo de Deus constitui a Igreja, não apenas a hierarquia;
- O batismo é o sacramento essencial que abre o caminho para os outros sacramentos; dito isso, por que há sete sacramentos da Igreja Católica para os homens e seis para as mulheres?
- Antes do Concílio Vaticano II, o sacerdócio e a vida religiosa eram considerados "chamados superiores." Lumen Gentium, um dos documentos conciliares centrais na Igreja, terminou essa hierarquia e referiu-se à "chamada universal à santidade" de todos os fiéis através do batismo.
- Todas as mulheres da Igreja são leigas, então, tudo o que pertence à laicidade deve pertencer igualmente aos homens e às mulheres, por serem membros ativos de sua Igreja — como leitores leigos, distribuidores da comunhão e, em muitas Igrejas, existem também coroinhas meninas. Nossa Igreja ainda exclui todas as mulheres da ordenação para o Diaconato Permanente, que, a partir do Concílio, passou a aceitar leigos casados e solteiros.
No entanto, os documentos conciliares claramente mostram que todas as discriminações, sejam por causa de raça, sexo, classe ou religião, devem ser eliminadas por serem contrárias à vontade de Deus. Aqui, a Igreja não consegue implementar seu próprio ensino. Alguns homens e mulheres continuam a desafiar tal padrão duplo.
O Concílio Vaticano II tinha um documento sobre a liberdade religiosa, embora não tenha sido aplicado na prática dentro da Igreja. No entanto, o Concílio declarou que mulheres e homens têm o direito de apresentarem as suas necessidades. Ambos têm o direito e, por vezes, o dever de questionar o ensino e a prática em áreas de sua competência. A época pós-conciliar para discussões livres durou pouco. Sob o papado de Bento XVI, houve um retorno a práticas inquisitoriais, pois alguns teólogos dos sexos feminino e masculinos foram censurados por suas opiniões. Alguns foram demitidos de posições permanentes, sem qualquer devido processo, apenas por terem sugerido a discussão de temas proibidos, como a ordenação de mulheres. Até mesmo um bispo australiano foi afastado do cargo por sugerir a ordenação de mulheres por razões pastorais, para aliviar a escassez de sacerdotes. Quanto às ordenadas da Igreja Católica, quem quer que tenha as ordenado, e até mesmo alguns padres que participaram de sua ordenação, foram excomungados. Toda a "medicina da misericórdia" e compaixão defendidas pelo Papa bom (Papa João XXIII) foi por água abaixo.
IHU On-Line - Quais ainda são os principais desafios das mulheres na vida religiosa e na sociedade?
Carmel McEnroy - Nos últimos tempos, várias mulheres qualificadas atuaram e continuam a atuar em cargos importantes na sociedade, tais como presidente, primeira-ministra, chanceler, secretária de estado, procuradora-geral, chefe de Justiça, senadora, representantes e posições dentro da Organização das Nações Unidas, etc., embora essa atuação ainda não se dê em igual proporção à dos homens. No entanto, essas mesmas mulheres não têm permissão de atuar até mesmo no mais baixo cargo de ministro ordenado na Igreja Católica, embora algumas denominações protestantes tenham ordenado bispos e sacerdotes mulheres e existam algumas rabinas.
A LCWR (Conferência de Lideranças das Religiosas, em português), que representa a maior parte das religiosas nos Estados Unidos, é o grupo do Concílio Vaticano II com as pessoas mais educadas, mais dedicadas, mais socialmente ocupadas e mais fiéis à Igreja. Sob o papado de Bento XVI, as mulheres da LCWR foram investigadas e acusadas de não seguirem os ensinamentos da Igreja. Três bispos foram nomeados para supervisionar um programa de reforma do grupo. A grande questão agora é se o Papa Francisco abandonará a questão inquisitorial que herdou, deixará de investigar as mulheres e permitirá que continuem com sua missão em prol dos mais negligenciados na sociedade.
A maior parte das comunidades de religiosas consiste em integrantes mais velhas que doaram seus melhores anos para o ensino, a enfermagem, o serviço social, etc. Elas não estão recebendo novas recrutas e, por isso, estão desaparecendo. Elas sabem o propósito de suas vidas muito melhor do que qualquer um em Roma, e deveriam ser deixadas em paz para que possam continuar a servir, pelo bem da Igreja, enquanto podem.
IHU On-Line - Que tipo de espaço as mulheres têm em outras religiões?
Carmel McEnroy - Eu não estudei o papel das mulheres em outras religiões do mundo. Tudo que posso dizer é que, se as mulheres não são valorizadas em pé de igualdade com os homens da religião predominante de um dado país, elas são mais suscetíveis de serem abusadas na sociedade desse país. Tal é o caso, por exemplo, em países pobres e superpovoados, como a Índia e África do Sul, sobre os quais ouvimos trágicas histórias de mulheres jovens e crianças que sofreram estupros coletivos, foram abusadas e descartadas, sem qualquer respeito por sua dignidade como humanas. Nós não ouvimos, de nossas Igrejas, nenhum pedido mundial contra esse tipo de situação.
O tratamento que a Igreja Católica Romana reserva às mulheres como seres humanos inferiores serve como legitimação da negligência e do abuso de mulheres e seus filhos na sociedade. Nossa Igreja precisa assumir a responsabilidade pelo escândalo mundial do abuso sexual no clero, algo que não foi feito pelas mulheres. A Igreja desmente a alegação, dizendo que os sacerdotes masculinos são os modelos exclusivos, atuando in persona Christi (na pessoa de Cristo). Isso contrasta nitidamente com o milagre de carregar e dar a luz às crianças, milagre em que as mulheres participam corporal e simbolicamente, como imagens mais críveis de um Deus que é pai, mãe, filho e criador, que foi totalmente eclipsada pelo Pai único e divino. A maior parte das denominações cristãs protestante incluem as mulheres, pois contam com mulheres e homens casados que são ministros - não só sacerdotes, mas também bispos.
IHU On-Line - Qual é a contribuição que as mulheres oferecem ao debate teológico?
Carmel McEnroy - Antes do Concílio, as mulheres católicas não tinham permissão para estudar Teologia e receber diplomas em instituições católicas. Nenhuma das auditoras eram teólogas. Depois do Concílio, mais mulheres, especialmente religiosas, receberam diplomas de pós-graduação em Teologia e áreas afins, desta forma preparando-se para as posições ministeriais que esperavam que lhes fossem surgir.
Muitas mulheres são, hoje em dia, teólogas altamente qualificadas, e desempenham um papel de liderança na publicação de suas obras e em sociedades teológicas, como a Sociedade Teológica Católica da América (CTSA), a Sociedade Teológica Canadense, a Sociedade de Literatura Bíblica (SBL), a Academia Americana de Religião (AAR) e a Associação Europeia de Teologia Católica (AETC), e continuam a desempenhar cargos eleitos de presidente, entre outros. Esperamos que, no próximo Concílio, os bispos tenham coragem de convidar essas teólogas tão altamente qualificadas para acompanhá-los como peritae, assim como faz o periti masculino.
No entanto, embora essas mulheres sejam muito mais qualificadas do que muitos dos bispos e a maioria dos sacerdotes, elas não têm permissão para pregar na missa. Até mesmo uma mulher que é presidente da CTSA não deve pregar na missa da sociedade para a adesão de membros durante a convenção anual. Esta mulher deve oferecer uma "reflexão", enquanto seu colega masculino e celebrador é, tecnicamente, o pregador, e dá uma breve introdução.
IHU On-Line - Por que as mulheres ainda têm pouco espaço na Igreja?
Carmel McEnroy - Aqueles que dão nome ao mundo governam o mundo. Mesmo no século XXI, as mulheres ainda são excluídas da linguagem cotidiana, quando são referidas como "homens" e "irmãos", exceto quando isso faz diferença: por exemplo, quando o Direito Canônico afirma que só "homens" podem ser ordenados. A linguagem sexista para Deus e os seres humanos permeia a liturgia e é ainda pior na liturgia recente, introduzida pelo Papa Bento XVI, apesar do fato de que alguns bispos conciliares pediram por uma linguagem inclusiva há 50 anos, para que as mulheres pudessem ser chamadas de "mulheres", não "homens". A Igreja poderia ser a catalisadora de uma mudança na sociedade, se não fosse a principal agressora. Pelo menos em inglês falado, há pouca ou nenhuma sensibilidade ao sexismo, mesmo entre os repórteres.
Mulheres constituem mais de metade da humanidade, da Igreja e das participações ativas em serviços religiosos, atuando como parte da Congregação, mas não como ministras dirigentes. Não há nenhum bispo, cardeal, líder ou membro da Cúria que seja mulher. Enquanto as mulheres forem excluídas da liderança e das tomadas de decisões, elas nunca serão tratadas como seres humanos iguais e completos. Isso é por causa da dominação masculina hierárquica de Roma que persiste, apesar do fato de que a exclusão das mulheres é baseada no sexismo, não em boa educação.
A questão da ordenação de mulheres foi levantada, na maior parte das vezes, pelo grupo europeu St. Joan’s Alliance (Aliança de Santa Joana) nas margens do Concílio, mas não no debate público. O Papa Paulo VI nomeou uma Pontifícia Comissão Bíblica especial para estudar as Escrituras e descobrir se alguma coisa nelas proibia a ordenação de mulheres. A Comissão concluiu que não havia nada na escritura que representasse um obstáculo à ordenação de mulheres. No entanto, Paulo VI escreveu Inter Insigniores, o primeiro documento contra a ordenação de mulheres, usando argumentos não legítimos das Escrituras, que contradiziam diretamente os resultados de sua própria Comissão.
David Stanley, jesuíta canadense professor de Escrituras, membro da Comissão, renunciou em protesto. O Papa João Paulo II repetiu tal ensinamento defeituoso com a mesma utilização errônea das Escrituras em Ordinatio Sacerdotalis em 1994. O Papa Bento XVI manteve o ensinamento de ambos seus antecessores e tentou atribuir-lhe infalibilidade, algo que seus autores não alegaram.
Paulo VI agiu da mesma forma em relação à questão do controle de natalidade, que teve impacto direto sobre a vida das mulheres. O Papa criou uma Comissão de controle de natalidade, que recomendou mudanças no ensino e na prática da Igreja. Ignorando as conclusões e recomendações dos peritos, Paulo VI escreveu a Humanae Vitae, que continua sendo problemática para muitas pessoas, apesar de que o ensinamento mais antigo e oficial da Igreja mantém a supremacia da consciência em relação a decisões morais.
Se a Igreja seguiu seu próprio ensino em igualdade humana, reconhecendo o batismo como a porta de entrada para todos os sacramentos, proibindo todas as discriminações, praticando o principal mandamento do amor, defendendo a supremacia da consciência para todas as pessoas, ambas a Igreja e o mundo seriam diferentes hoje em dia.
IHU On-Line - Qual é o significado da analogia que você dá para o título do livro, Guests in Their Own House [Hóspedes em sua própria casa, em tradução livre], e a relação das mulheres com a Igreja?
Carmel McEnroy - De acordo com o ensino bíblico, todos os seres humanos, masculinos e femininos, são feitos à imagem de Deus e são de igual valor aos olhos de seu Criador. Todos são igualmente convocados à santidade e à auto-realização de várias maneiras, de acordo com seus dons. Cristãos batizados que livremente professam a fé na Igreja Católica são o povo de Deus que constitui essa Igreja. Quando essa Igreja realiza uma sessão plenária, como um Concílio, todos os membros têm direito de estar lá ou de serem representados. Pessoas de fora podem participar como convidadas. Elas estarão lá por convite, não por direito. Este foi o caso com os observadores protestantes e ortodoxos que foram convidados para o Concílio antes mesmo dos auditores católicos.
Eu dei esse título ao meu livro, "Hóspedes em sua própria casa", porque não era esperado que as mulheres católicas automaticamente surgissem no Concílio Vaticano II ou em qualquer outro Concílio. Tradicionalmente, as mulheres não eram aceitas como seres humanos completos como membros da Igreja em pé de igualdade com os homens. Os homens do clero tinham classificação superior até mesmo aos leigos. Eles assumiram o governo de Igreja e estabeleceram estruturas hierárquicas, bem como os leigos fizeram em outras áreas da sociedade. As mulheres eram ignorantes, em sua maioria, e foram relegadas à esfera doméstica, onde o trabalho da mulher é ter filhos, ficar em casa e importar-se com eles e cuidar de seus maridos, que obtinham o pão de cada dia. A domesticação e, eventualmente, a educação e a libertação das mulheres constitui uma história complexa. Até mesmo mulheres educadas foram, em grande parte, condicionadas a permanecerem ao fundo da Igreja e da sociedade. Era assim que funcionava. Sem surpresa alguma, a maioria das mulheres nunca sequer pensou que teria o direito de estar presente em um Concílio de sua Igreja. Este era o reino do Papa, dos bispos e dos sacerdotes. Assim, quando aquelas 23 mulheres foram convidadas a participar do Concílio Vaticano II, mesmo que como ouvintes silenciosas, consideraram como um grande privilégio, não como um direito de nascença e batismo.
Ao passo que estavam bem acostumadas com ter de cuidar do lado interno de sua Igreja, educar seus filhos e prepará-los para os sacramentos, as mulheres não estavam preparadas para andar lado a lado com seu bispo diocesano, muito menos com os outros três mil ou mais bispos em todo o mundo. Elas não estavam acostumadas a serem incluídas — mesmo em segredo — em questões e problemas verdadeiros da Igreja. Os ensinamentos da Igreja, até mesmo os que governavam suas vidas, poderiam mudar! Isso era novidade para elas. Os bispos estavam até mesmo interessados em ouvir o que elas pensavam sobre questões da vida e da morte! Suas opiniões importavam! Isso era novo. Elas estavam acostumadas a ouvirem seu pastor dizer-lhes o que pensar e fazer.
Quanto às mulheres religiosas, estas estavam acostumadas com a santa obediência de seguir qualquer coisa que a reverenda dissesse. Suas vidas eram governadas pelo direito canônico, produzido por homens, e pela Regra Sagrada, que teve de ser aprovada por Roma. O Concílio pediu-lhes para focarem no carisma ou no dom especial de seu fundador, com o objetivo de reformar e renovar suas vidas, para melhor adequarem-se aos "sinais dos tempos". Até mesmo o hábito estava em discussão! Afinal de contas, este também precisou ser modernizado ou, em alguns casos, até mesmo descartado e substituído pelo véu, na medida em que abandonaram sua mentalidade fechada para transformarem-se em "as freiras no mundo" — em referência ao título do livro do cardeal belga Suenens ("The Nun in the World", no original inglês, e "A religiosa no mundo", em tradução livre). O livro tornou-se um best-seller entre religiosas progressivamente inclinadas em todo o mundo, colocando Suenens no mapa como o bispo mais progressista do Concílio — um elogio do qual gozou pela maior parte de sua vida. Pouco antes de sua morte, o cardeal revelou a inspiração para muitas de suas ideias criativas, inclusive o seu manual moderno de vida religiosa, a irlandesa Veronica O'Brien, a quem chamava de "a mão esquerda de Deus" — e, por dedução, "a mão direita de Suenens"!
IHU On-Line - Para a Igreja, as mulheres ainda são vistas como "convidadas" ou “hóspedes”? Por quê?
Carmel McEnroy - Roma não quer ouvir críticas sobre seu sexismo, sua compreensão equivocada dos ensinamentos da Bíblia e seu abuso de poder enquanto investiga religiosas e desperdiça seu tempo e dinheiro em uma inútil caça às bruxas, desviando-se de sua missão dedicada na vida. Pode-se dizer que essas mulheres que fazem críticas são "convidadas indesejadas", em sua própria casa. Isso também é verdade sobre as católicas ordenadas sem a permissão de Roma, aqueles que as ordenaram e aqueles que compareceram às ordenações. A visão do Concílio Vaticano II, de uma Igreja servidora, não se materializou. A Igreja continua a ser uma instituição dominada por homens, hierárquica, com clérigos interessados em subir no status, na posição, em aumentar seu poder e controle, especialmente na Cúria Romana, como foi mostrado recentemente. Nós ficamos sabendo sobre o "papel da mulher na Igreja" ao invés das mulheres como Igreja.
IHU On-Line - O objetivo principal do Concílio era o progresso. Você acredita que a Igreja atualizou-se em relação aos homossexuais e a temas polêmicos como o aborto? Estas questões foram abordadas no Concílio Vaticano II? Em que sentido?
Carmel McEnroy - Geralmente, costumava-se realizar concílios quando havia um problema grave, por exemplo, uma heresia condenável. O Papa João XXIII surpreendeu o mundo ao convocar o Concílio Vaticano II e dizer que não haveria nenhuma condenação, que este seria um concílio pastoral para atualizar a Igreja, para que esta pudesse corresponder mais eficazmente às demandas do mundo moderno. João não queria profetas de melancolia e desgraça.
O objetivo geral do Concílio foi fazer um aggiornamento, o que significa, basicamente, reforma e renovação. Na verdade, o documento conciliar central, o Lumen Gentium, disse que a Igreja deveria servir como uma luz para todas as pessoas, refletindo a Cristo, a luz do mundo. Também era para ser uma "ecclesia semper reformanda," uma Igreja em constante necessidade de reforma. Daí, reconheceu-se uma coleção de seres humanos que não apenas constitui uma Igreja santa, guiada pelo Espírito Santo, mas também uma Igreja de pecadores que falham muitas vezes e precisam da misericórdia para remediar-lhes e colocar-lhes em pé, em consonância com a mensagem central de Jesus de Nazaré.
O documento que relaciona a Igreja com o mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, foi escrito tendo em vista a leitura dos sinais dos tempos e a atualização da Igreja nesse sentido, levando em conta a mensagem do Evangelho. Este foi um reconhecimento da natureza histórica da Igreja, moldada pelos tempos em que vive. Hoje em dia, algumas coisas estão desatualizadas. Como surgiram novas questões, estas precisavam ser abordadas de uma forma que fazia sentido e que fosse boa notícia para as pessoas modernas. A Igreja não é um fim em si mesma. É uma entidade temporária que serve o reinado eterno de Deus.
Sabemos, a partir da Bíblia, que as pessoas de orientação homossexual faziam parte da sociedade mesmo naquela época, mas não eram compreendidas ou tratadas de forma justa. Nos tempos modernos, a psicologia e a psiquiatria iluminaram a diversidade e a complexidade do ser humano e ajudaram a promover a compreensão, o respeito e a aceitação de todos como criações de Deus, feitas à imagem e semelhança Dele próprio, com uma dada orientação sexual que não é de sua própria escolha.
Não houve nenhuma discussão aberta sobre homossexualidade no Concílio. Há 50 anos, "Direitos dos gays" e "casamento gay" eram assuntos inéditos em conversas em geral. Hoje, esses assuntos fazem parte de nossa experiência diária, embora a maioria das Igrejas ainda não tenham positivamente aceitado eles. Precisamos ouvir experiências diferentes das nossas e sermos guiados pelo maior dos mandamentos — o de amar um ao outro, em uma relação monogâmica compromissada, ou numa vida solteira ou celibatária, livremente escolhida e vivida de forma responsável. Aqui, como em outros assuntos, a supremacia da consciência deve ser acolhida.
Há muitos sacerdotes e alguns bispos que admitem ser homossexuais, embora Roma tenha tendência a fazer vista grossa quanto a isso.
A lei do celibato católico também se aplica a eles. A maior parte desses ministros são pessoas direitas, eficazes e atentas aos problemas alheios, que não têm nenhuma participação no escândalo da pedofilia no clero.
Na época do Concílio Vaticano II, a principal questão conjugal em voga, na teologia moral, era o controle de natalidade, muito discutido e repercutido por casais. O Papa Paulo VI criou uma comissão especial, para estudar a questão e fazer recomendações, que foi abandonada no final das contas. As pessoas casadas desconsideraram a encíclica papal Humanae Vitae e aprenderam a seguir as suas próprias consciências. As pessoas não falavam abertamente sobre aborto na época. A Igreja católica cometeu o erro de proibir igualmente o controle de natalidade e o aborto, sem distinguir entre prevenir a concepção e interromper uma gravidez, uma questão muito mais séria.
A Igreja docente continua a influenciar a legislação civil, que criminaliza o aborto em países católicos, como a Irlanda. Isso foi demonstrado recentemente em um trágico caso de grande visibilidade, que apareceu nas manchetes do mundo todo, em que uma jovem hindu, residente na Irlanda, que passava por uma gravidez problemática, teve seu pedido de aborto negado, falecendo em consequência disso. Esse caso trouxe ao governo civil a necessidade de abordar a questão do aborto em uma Irlanda moderna, internacionalmente, culturalmente e religiosamente diversa, hoje mais do que nunca. A lei da terra classifica o aborto como ilegal, mas isso não o previne. Essa decisão apenas exporta o problema, na medida em que mulheres, desesperadas para interromper uma gravidez indesejada, acabam viajando para um país onde o aborto é legalizado.
A Igreja Católica defende, com razão, a santidade da vida humana. Todavia, em todas as coisas que envolvem humanos, as circunstâncias alteram as situações. Eu não sou "a favor do aborto". Felizmente, eu nunca me encontrei na situação de considerar essa trágica opção. Como teóloga, reflito sobre a questão complicada que toca a vida de muitas mulheres. Aqui, a supremacia da consciência também deve ser honrada. A justiça deveria exigir que uma mulher grávida, em consulta com um médico familiar e de sua confiança, tenha o direito de tomar a decisão final sobre sua própria situação problemática. Seus motivos podem ser sérios motivos de saúde, ou um sofrimento traumático, como uma gravidez indesejada resultante de estupro ou incesto. Ninguém tem o direito de traumatizá-la ainda mais, criminalizando a sua ação caso opte por um aborto, preferencialmente, tão cedo quanto possível. As leis não são um fim em si mesmas, mas destinam-se a servir o bem-estar das pessoas.
IHU On-Line - Quem eram as 23 mulheres que participaram no Concílio Vaticano II? Qual foi o papel delas no Concílio?
Carmel McEnroy - Na reedição do meu livro, incluí uma página com os nomes e as fotos das 23 auditoras. Ao responder as 10 perguntas anteriores, descrevi o papel das mulheres como auditoras no Concílio, bem como suas contribuições nas discussões, sempre que surgiu a oportunidade. Eles também ocuparam-se de conversar informalmente com os bispos durante os coffee-breaks, embora esta oportunidade tenha sido reduzida na medida em que, por vezes, as mulheres desfrutavam dos seus coffee-breaks separadamente dos homens. Nem as mulheres e nem os bispos aderiram estritamente a essa segregação!
Quando vemos o fraquejar pós-conciliar de Papa Paulo VI em duas das principais questões que tocaram profundamente a vida do povo de Deus — a vida matrimonial e familiar e o sacerdócio, em especial, a ordenação de mulheres e homens casados —, podemos apenas imaginar como o Papa sequer teve a coragem de romper com séculos de tradição exclusiva e convidar mulheres para serem auditoras conciliares.
Para ser justa com ele, Paulo VI teve uma tarefa difícil em lidar com alguns dos antigos conservadores pré-conciliares, a saber, o Cardeal Ottaviani, antigo prefeito do "Santo Ofício", que não queria ver nenhuma mudança. Para um Papa, mudar alguma coisa que seu antecessor realizou seria como negar a infalibilidade papal. Ottaviani ameaçou o Papa fazendo-o lhe garantir que não renunciaria. Eles não chegaram ao ponto de fazer o mesmo que outros fizeram no Concílio de Trento, no qual um bispo puxou a barba de outro! Frequentemente, Ottaviani e outros chegavam aos montes para apresentar ao Papa seu protesto, após o relatório da comissão de controle de natalidade e as conclusões a respeito da ordenação de mulheres.
Convidar auditoras provavelmente não foi uma ideia original de Paulo VI, embora ele conhecesse algumas das auditoras desde antes de se tornar Papa e apreciasse a importância de seu trabalho para a Igreja e a sociedade. Paulo VI ouviu as ideias de bispos que sugeriram convidar mulheres. Muitas daquelas que foram, por fim, convidadas para ser auditoras estavam em alerta máximo, seguindo a direção do Concílio e seus documentos desde o início. Um desses foi o espanhol Bellosillo Pilar, que incorporou a visão global das 36 milhões de mulheres integrantes da WUCWO (União Mundial das Organizações Femininas Católicas).
A religiosa americana Mary Luke Tobin, Irmã de Loretto, foi Presidente da LCWR (Conferência de Lideranças das Religiosas), dessa maneira representando a maioria das religiosas nos Estados Unidos. Tobin estava indo a Roma para ver o que estava acontecendo quando soube que havia sido convidada para ser auditora.
Toda vez, no decorrer da história mundial, que alguma mudança positiva aconteceu na vida das mulheres, o que quer que tenham conquistado não foi entregue de bandeja a elas. Elas tiveram de escalar seu caminho até o topo, e lutar por seus direitos de sufrágio e todo o resto. No decorrer da história, várias mulheres sábias foram queimadas na fogueira como "bruxas" na Europa, ou afogadas em lagoas no Novo Mundo, por possuírem sabedoria à frente de seu tempo e ficarem inconformadas com a ideia geralmente atribuída a elas de que têm cérebro de passarinho. Sempre houveram mulheres "incontroláveis revolucionárias", que se atreveram a fazer diferença e insistiram em começar a mudança. Nós precisamos de mulheres assim mais do que nunca hoje em dia, e em maior quantidade. Também saudamos todos os homens apoiadores de nossa causa, para que todas as mulheres do mundo, finalmente, sejam reconhecidas. Portanto, a Igreja e a sociedade enriquecem juntas ao respirarem com ambos os pulmões — feminino e masculino —, como era a intenção do Criador de tudo e todos.
LISTA DE AUDITORAS NO CONCÍLIO VATICANO II
Luz-Marie Alvarez-Icaza (México)
Constantina Baldinucci, Irmãs de Caridade (Itália)
Pilar Bellosillo (Espanha)
Jerome Maria Chimy, Irmãs Servas de Maria Imaculada (rito ucraniano, Canadá)
Gertrude Ehrle (Alemanha)
Cristina Estrada, Servas do Sagrado Coração de Jesus (Espanha)
Claudia Feddish, Ordem de São Basílio Magno (rito ucraniano, EUA)
Henriette Ghanem, Congregação dos Sagrados Corações (rito copta, Líbano)
Rosemary Goldie (Austrália)
Ida Grillo (Itália)
Suzanne Guillemin, Filhas da Caridade (França)
Marie de la Croix Khouzam, União das Religiosas do Egito (rito copta, Egito)
Catherine McCarthy (EUA)
Alda Miceli, Instituto Secular (Itália)
Marie-Louise Monnet (França)
Marchesa Amalia di Montezemolo (Itália)
Margarita Moyano Llerena (Argentina)
Gladys Parentelli (Uruguai)
Anne-Marie Reloffzen (Bélgica)
Hedwig Skoda (Tchecoslováquia)
Juliana Thomas, União das Superioras da Alemanha (Alemanha)
Mary Luke Tobin, irmã de de Loretto (EUA)
Sabine de Valon, Religiosas do Sagrado Coração de Jesus (França)
Nota: A fonte da imagem que ilustra a entrevista é http://migre.me/euWBn
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Hóspedes na própria casa. A presença das mulheres no Concílio Vaticano II. Entrevista especial com Carmel McEnroy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU