23 Abril 2024
“Casa della Madia” lugar da escuta, do silêncio, do acolhimento, da fraternidade. Estamos na bela paisagem de Albiano d'Ivrea, num lindo dia de sol e somos recebidos com amizade e carinho pelo Irmão Enzo Bianchi.
A entrevista é de Stefano Zecchi, publicada por Rocca n. 9, 01-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caríssimo irmão Enzo, como vai você?
Estou bem, muito bem. Depois de alguns meses de doença, bastante grave, fui internado no hospital e submetido a algumas operações. Agora me recuperei, sinto-me como antes, apesar de ter que fazer diálise, mas minha vida continua a todo vapor, com a força que tinha antes. Fico contente com essa situação, que não esperava mais, levando em conta os meus oitenta e um anos.
Você pode nos contar como nasceu a Casa della Madia? E por que esse nome?
A “Casa della Madia” nasceu por acaso. Quando fui expulso de Bose, procurei imediatamente, apesar das dificuldades, porque era a época de pandemia e não era fácil se locomover dadas as restrições que existiam, procurei uma casa no Monferrato. Porque o Monferrato é a minha terra, tanto porque a amava particularmente como porque achava que era adequada para uma vida monástica. Encontramos umas vinte estruturas que poderiam ser adequadas, mas infelizmente o custo dessas estruturas no Monferrato é muito alto, preços proibitivos, a partir de um milhão de euros para cima e não tínhamos nenhuma possibilidade de cobrir valores semelhantes. Encontramos então, por acaso, essa estrutura abandonada pelos proprietários. Uma bela estrutura que se adaptava bem a uma vida comunitária, embora tivesse necessidade de reforma. Considerando também o preço, contraímos um empréstimo bancário e conseguimos adquiri-la e aos poucos fomos fazendo também as reformas. O nome também havia nos fascinado "Casa della Madia", porque eram construídas nesse local as “madie”, uma espécie de bancada onde se fazia o pão. Era auspicioso para nós, o lugar do pão, da partilha, onde se guarda o fermento e tudo isso nos acompanhou na escolha.
Você nasceu nas Langhe, no Monferrato, terra do bom vinho. Como ter nascido nesse lugar influenciou a sua vida?
Eu diria bastante. Quem leu meu livro, “Il pane di ieri”, percebe o quanto sou da região, pertencente ao Monferrato Langhe, porque estou na fronteira entre esses dois grupos de colinas de vinhas sem fim. Sempre carreguei dentro de mim o mundo camponês, o mundo da vinha, que a sinto como a minha espinha dorsal, o mundo do vinho, da uva e sobretudo das pequenas cidadezinhas que formam essa região. Aldeias onde havia a construção de uma humanidade outrora realmente diferente daquilo que está sendo construída hoje. Uma humanidade cheia de relações, de reconhecimentos, uma humanidade que certamente tinha os seus problemas, mas que, de alguma forma, fazia brilhar a esperança de todos nós juntos, porque estávamos juntos, juntos sentíamos que tínhamos um único destino, juntos tínhamos esperança.
Como surgiu o seu desejo, poderíamos dizer a vocação, para a vida monástica?
Devo dizer que houve uma combinação de situações. Minha mãe morreu quando eu tinha oito anos e meu pai não era crente e tínhamos ficado só nós dois. Duas vizinhas cuidaram de mim. Uma delas, que também era intelectualmente refinada, me deu um presente quando eu tinha treze anos, depois de ter-me dado aos doze anos a Bíblia, as regras de São Basílio, publicadas em 1932, que ainda as guardo.
Essas regras sempre estiveram na minha mesa de cabeceira, sempre me acompanharam. Quando chegou a juventude, me perguntei o que deveria fazer. Depois alguns meses de experiência com o Abbé Pierre, na periferia de Ruane, vivendo com os mendigos, com os rejeitados da sociedade, não como voluntariado, mas entre eles. Porque Abbé Pierre não queria voluntários, mas pessoas que se identificassem com esses rejeitados, com esses mendigos, com esses alcoólatras, vivendo debaixo das pontes do Sena. Essa experiência me mudou profundamente. Converteu-me de um cristianismo de Ação Católica para um Cristianismo do Evangelho. Eu não conseguia mais pensar naquela que era a estrada já traçada, a estrada da vida política, eu já era secretário do movimento juvenil provincial da Democracia Cristã em Asti. Mas larguei tudo e fui morar sozinho em Bose, naquela região abandonada, sem eletricidade, sem água potável, casas abandonadas em ruínas pelos agricultores na década de 1920. Tudo isso para levar uma vida monástica como aquela de Basílio que não fosse uma vida religiosa, que fosse a vida que todos os homens podem viver sem se tornarem uma casta ou algo separado ou privilegiado. Cristãos simples. Graças a Basílio e a Pacômio, consegui então construiu o que foi Bose, que tinha essa singularidade de cristãos simples, não religiosos que viviam essa presença na Igreja.
Como mencionou antes, você completou recentemente 81 anos, “…os anos de nossas vidas são setenta, oitenta para os mais fortes", diz-nos o Salmo 89. Você passou por toda a história da Igreja destes últimos anos. Que ideia elaborou de todas essas mudanças, desde o pré-Concílio até o Concílio e o pós-Concílio?
Vivi essa Igreja com muita atenção, com grande envolvimento porque sempre estive envolvido na vida eclesial. Dos seis anos até os dezenove, às seis da manhã, sempre servi a missa, tive uma vida eclesial muito intensa. Aos oito anos fui a Roma ver o Papa, ganhei um concurso no Piemonte porque fui quem melhor conhecia os Evangelhos. Cheguei ao Concílio como um verdadeiro cristão tridentino, com as rigidezes e os legalismos que eram próprios do pré-Concílio. O Concílio me converteu, me fez passar por todas as etapas. Depois segui o pós-Concílio que coincidiu com meus anos de universidade, a vida em Bose me deu a possibilidade de ver a vida da Igreja, de ver os seus desenvolvimentos e as sucessões dos papas, que conheci bem. João Paulo II, o Cardeal Ratzinger, de quem era amigo desde 1978, e depois Francisco, que teve por mim um amor realmente forte, ouso dizer que até me sinto indigno de tanto amor, de tanta atenção de parte dele. Hoje vejo uma Igreja desgastada, cansada e que tem dificuldades para avançar. Falta uma visão do futuro, não sabe bem para onde ir. O Papa tem visões proféticas, mas o povo de Deus não o segue.
Há um fosso muito grande entre o povo de Deus e o Papa, entre o Papa e os Bispos. O Papa está desacelerando, está parando, se vê isso por mil coisas. Ele é impedido de ir em frente como gostaria por um impulso interior do Espírito Santo, porque o povo de Deus está em dificuldades, está esgotado, se tornou uma minoria, parece perder constantemente o confronto com o mundo. Esse diagnóstico muitos outros não têm coragem de fazê-lo: um povo de Deus que perdeu a fé e a fraternidade. Quando se perde tudo isso, a Igreja desmorona. A própria Igreja se torna uma realidade apenas religiosa, mas não está mais viva, não caminha mais junto com os homens rumo ao amanhã.
Essa é a situação, tivemos grande esperança, especialmente no pós-Concílio. Eu tive esperança no ecumenismo, posso dizer que dei toda a minha vida pelo ecumenismo e hoje encontramos o ecumenismo em pedaços, entre as Igrejas e dentro da Igreja católica. Divisões que não conhecíamos certamente nestes últimos tempos.
Precisamente no que diz respeito ao ecumenismo, como é que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia afeta as relações com as igrejas ortodoxas?
É uma guerra que, na verdade, foi travada às escondidas muito antes, porque depois da queda do comunismo, os ortodoxos sentiram-se ofendidos pela invasão missionária católica. Eles não têm um aparato missionário como o nosso e acima de tudo uma dimensão do território, que chamam território canônico, para eles é mais importante que a dimensão de um povo. Isso havia criado atritos entre os greco-ortodoxos, havia criado atritos entre as Igrejas e depois apareceu um certo nacionalismo, começou a existir uma divisão das Igrejas dentro da própria Ucrânia. De forma que atualmente existem quatro Igrejas Ortodoxas na Ucrânia, sem contar os greco-católicos. A Rússia considerou essa agressão, na qual o patriarca se mostrou envolvido ao abençoar a guerra, como uma missão defensiva dos valores cristãos, contra os valores corruptos do Ocidente.
Tudo isso fez com que se criasse uma forte tensão entre as Igrejas, de modo que as Igrejas de origem grega se separaram daquelas de origem eslava e mesmo entre as de origem eslava não existe mais aquela sintonia que existia antes. O mundo ortodoxo está muito dividido e a Igreja Católica está paralisada, porque sempre teve como princípio o diálogo com toda a Ortodoxia e não com apenas uma Igreja ou com outra. Hoje se vê obrigada a não dialogar para não ofender uma, para não ofender outra, para não entrar em competição. O ecumenismo está realmente despedaçado e não sabemos quantos anos serão necessários para que se possa esperar num ecumenismo que traga realmente o rosto de quem quer a unidade das Igrejas e não que cada Igreja siga o seu caminho.
Na sua juventude você foi atuante na Fuci, uma verdadeira escola de formação para os católicos engajados na política. Hoje não existem mais escolas de formação, não existem mais católicos na política e, quando tem, são áfonos. Há um desinteresse pelos assuntos públicos. Como podemos recuperar, envolver especialmente os jovens no amor pela polis?
Acredito que um diagnóstico muito claro deve ser feito. Voltando à época em que, na década de 1990, os Bispos, especialmente com Ruini, cancelaram os católicos democráticos, aqueles que foram acusados com desprezo serem católicos adultos. Naquele momento os católicos se desorientaram, dentro da esquerda perderam o impulso e perderam a capacidade de envolvimento com os outros. Tornaram-se católicos alinhados com a esquerda, alinhados com o Partido Democrático e, consequentemente, sem entusiasmo, sem força, sem motivação. Os católicos devem redescobrir a sua identidade, que sem se tornar um partido (já não é mais o tempo do partido católico), mas em colaboração com outros, para poder percorrer o mesmo caminho de justiça, paz, igualdade, e realmente ser uma força marcante. É difícil para os jovens agora. Com as escolas já foi tentado diversas vezes, mas vi que não deu certo, mesmo nas escolas boas, basta pensar naquelas na Sicília, em Milão... o tecido católico deve redescobrir uma certa unidade, mas o problema é que na raiz esse tecido não existe mais. Até os padres não conseguem reunir um tecido que seja compacto e com capacidade de vínculos. As pessoas devem perguntar-se o que torna a Igreja uma fraternidade. Mas acredito que dessa maneira se possa fazer pouco. Se, no entanto, os cristãos tiverem vínculos, serão capazes de levar uma mensagem ao mundo e uma presença também na política. Não é possível que os cristãos vivam em minoria sem uma eficácia dentro da sociedade.
Os leigos e as mulheres ainda não têm um papel significativo dentro da Igreja. Ainda temos, apesar do Papa Francisco, uma Igreja clericalizada. Qual é a sua opinião sobre o Sínodo? Chegaremos a ter os viri probati? Na Igreja primitiva o papel da mulher era essencial, até mesmo como diáconas, por que esse fechamento ao diaconato feminino?
Eu tinha muitas esperanças, agora tenho menos. Principalmente após a divulgação de um documento que prepara a próxima sessão que deveria dar origem ao instrumentum laboris para a sessão de outubro. Um documento muito longo, pesado, todo atento ao mecanismo, ao desenvolvimento da máquina, à organização, não aos pontos. Parece que há mais interesse em como proceder do que em como indicar pontos sobre os quais prosseguir. Fala-se de um diaconato feminino, mas para mim não é essencial. Em vez disso, que seja inventado um ministério para a mulher, como fizeram no Novo Testamento, quando faltava um ministério, inventaram o ministério dos sete. Não eram diáconos, o ministério dos sete. Para a mulher, se não querem fazer o diaconato, que o inventem. Porque as mulheres devem ter absolutamente voz na liturgia, na pregação do Evangelho, durante a vida na Igreja, nos lugares onde se comanda. As mulheres são a outra parte do mundo, não se vê por que elas devem ser constantemente auxiliares dos homens, enquanto forem auxiliares dos homens, haverá clericalismo e isso não está certo. Quanto aos "viri probati", temo que não. Todos têm medo, o celibato dos padres que é uma lei, deveríamos vê-lo na sua glória, mas também na sua miséria.
Nós, porém, sempre o conservamos como uma pérola preciosa. Não se trata de tirá-lo, mas se trata de permitir também que homens sejam casados, que sejam “provados”, que possam exercer o ministério onde necessário. Sabendo que na Igreja isso foi possível por séculos, nas Igrejas orientais, Igrejas católicas orientais, ainda existem padres casados. Por que tanto medo? Vale mais a Eucaristia ou uma estrutura formal da Igreja? Temo... mesmo vendo esse documento confuso, que fala uma linguagem eclesial que é entendida talvez apenas por aqueles que o escreveram. Eu confesso que não entendi, li três vezes sem entender nada. Não há visão, não há uma orientação. Temo que, nesse caso, o Sínodo se transforme num aborto e isso seria triste, porque seria uma grande decepção para muitos cristãos que esperavam do Sínodo uma renovação da vida da Igreja, uma renovação na comunhão. Porque o Sínodo só serve para ter uma comunhão mais real, mais concreta, mais verdadeira entre os cristãos. Que a Igreja seja realmente uma fraternidade, como Pedro a chamava. Mas tenho muitas dúvidas, tenho muito medo.
Enzo, obrigado pela sua disponibilidade, pelo seu testemunho, pela sua amizade. Peço a Deus que possa continuar a dar frutos de santidade, de amor, de sabedoria e de paz. Que Deus o abençoe, a Casa della Madia e todos os seus.
A esperança é sempre forte em mim, porque mesmo nos momentos mais sombrios sinto meu coração cantar aquelas palavras de São Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?? Ninguém vai nos separar do amor de Cristo." E o amor de Cristo não é apenas algo pessoal, mas é algo para a humanidade, a humanidade se salvará, será melhor, apesar desses momentos sombrios, dessas quedas, dessa barbárie, que às vezes aparece, a humanidade se recuperará, se recuperará melhor. Devemos fazer de tudo para esse caminho da humanização, convencidos de que não estaremos mais aqui, mas aqueles que virão depois de nós serão homens melhores do que nós. A sociedade será melhor daquela de hoje. Essa é uma esperança que não pode falhar, a esperança humana. Como diziam os antigos, “o homem se mantém de pé graças à esperança”
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Esperança em tempos difíceis. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU