16 Fevereiro 2024
A ascensão da ultradireita não encontra limite. Ao aprofundamento da crise capitalista e a falta de projeto da esquerda, soma-se o desafio da emergência climática. Sem mudanças radicais, as fórmulas autoritárias ultraliberais irão substituindo as democracias.
O artigo é de Eros Labara, analista político, publicado por La Marea, 15-02-2024. A tradução é do Cepat.
Estamos em um ano eleitoral histórico. Em 2024, mais da metade da população mundial irá às urnas. Trata-se do chamado superano eleitoral que fornecerá bases representativas a 76 países e os seus líderes determinarão, de uma forma ou de outra, as políticas que marcarão a próxima década.
Este importante momento de inflexão política ocorre também em um cenário internacional turbulento, com diversas frentes de guerra ativas como a do Oriente Médio, Ucrânia e Mar Vermelho. Portanto, carregado de grande incerteza e tensão social onde, como se sabe, as forças políticas de direita estão crescendo e se movem com agilidade.
Desse modo, a onda mundial de movimentos reacionários continua sem encontrar o seu limite. Já são a primeira ou segunda força em vários países da Europa e, sem excessiva dificuldade, encontram como aliados as forças conservadoras, democrata-cristãos e partidos tradicionais de direita que não hesitam em aplicar suas políticas e adoptar os argumentos dos ultradireitistas.
Como se não bastasse esta perspectiva, nos Estados Unidos, o magnata e ex-presidente Donald Trump, aquele que foi um exemplo de linha de ação a ser imitada por diversos movimentos reacionários e ultraliberais em todo o planeta - observe o Make [insira o país] Great Again -, muito provavelmente voltará a ocupar a presidência do país mais poderoso do mundo se, como aponta a maioria das pesquisas, conseguir vencer as eleições presidenciais, em novembro deste ano.
Enquanto isso, na América Latina, o cenário de incerteza econômica propiciou a ascensão de vários outsiders e renovou as forças de políticos simpatizantes das ditaduras do século passado, que ressurgiram e colocaram sobre a mesa de debate políticas neoliberais que pareciam superadas.
Foi o caso de Jair Bolsonaro, no Brasil. É o caso de José Antonio Kast, no Chile, bem como os recentes triunfos do ultraliberal anarcocapitalista Javier Milei, na Argentina, e do bilionário bananeiro Daniel Noboa, no Equador.
Todos são uma prova da guinada mundial para uma forma de fazer política que se nutre da violência, da insegurança e das desigualdades para ter o seu êxito político. Quanto mais caos, mais êxito político: águas turbulentas, ganho dos pescadores.
Consequentemente, é possível deduzir que um futuro sociopolítico e econômico que parece ser muito mais incerto e complexo de gerir só aplainará o caminho ao poder para toda uma série de políticos de ultradireita, em todo o mundo. O capitalismo neoliberal globalizado das últimas décadas, com suas múltiplas crises financeiras e seu papel central na crise climática, sem dúvida, propiciou o terreno fértil para que isto aconteça.
Além disso, o medo de algum tipo de desastre ou colapso parece estar inserido no cerne da sociedade, basta ver como gela o sangue ver como não tão distantes alguns dos filmes distópicos lançados recentemente. Diante de uma sociedade atemorizada, começamos a ser testemunhas, pouco a pouco, do avanço da assimilação da concepção de vida prepper, aquela que desconfia de tudo e de todos - daí o aumento do sentimento de conspiração -, que força a pessoa a estar sempre alerta e preparada para quando os recursos institucionais e normativos desmoronarem, cedo ou tarde.
É por isso que as políticas da ultradireita negam na base os desafios e problemas da época, como, por exemplo, o aquecimento global, o poder das grandes empresas tecnológicas e o uso obscuro dos dados e da inteligência artificial e a enorme desigualdade e injustiça social mundial, sendo que são consequência direta do modelo capitalista que eles próprios defendem.
A finalidade de todas as propostas políticas coincidentes com estes novos líderes de ultradireita se reduz à simples prorrogação do modelo de livre mercado, que favorece os mais ricos sob o pretexto da defesa dos valores tradicionais e da identidade nacional, em uma tentativa habitual de apagar as desigualdades de classe.
Desse modo, o resultado de varrer para debaixo do tapete os problemas estruturais do sistema e suas consequências parece que só conduz a uma degradação ainda maior das condições de vida da maioria social e, portanto, gerará, indubitavelmente, um aumento do mal-estar e um descontentamento generalizado.
Enquanto isso, os políticos de marca progressista, quando ainda não aplicam as políticas ultradireitistas - como é o caso do Partido Social-Democrata dinamarquês na questão migratória ou as assumem como próprias, como a promissora Sahra Wagenknecht, após a sua cisão com o Die Linke, na Alemanha -, insistem em uma estratégia de eficácia eleitoral duvidosa, tendo como elemento central uma espécie de lamento impotente que supõe a razão inexplicável de que suas políticas socioliberais, de tíbia intervenção - as mesmas políticas que levaram ao crescimento do descontentamento e da desigualdade em prol do laissez faire mercantil -, não estejam inclinando a balança a seu favor.
Impávidos e indolentes, testemunham diante do violento avanço das forças ultradireitistas que, sem paliativos, propõem aplicar duros choques econômicos, talvez confiantes, no foro interno, de que a proteção de suas boas posições socioeconômicas pessoais lhes dará, independentemente das políticas ultraliberais que potencialmente sejam aplicadas, a salvaguarda de seu futuro.
Não só o progressivo esvaziamento dos Estados e de suas capacidades institucionais, após anos de políticas de privatização e liberalização, geraram este cenário de inusitada desigualdade econômica, injustiça social e aumento do custo de vida que se padece atualmente, mas principalmente o enorme enfraquecimento de uma posição política férrea, de corte socialista, supôs a quase destruição dos mecanismos sociais que constituíam esses diques de direitos que colocavam limites ao desejo inerente do modelo capitalista de crescimento econômico ilimitado e de busca incessante de lucros.
Com efeito, a perda de influência das ideias socialistas em detrimento da inserção do capital na cotidianidade da concepção vital das ideias economicistas e mercantis facilitam essa conformação de espaços comunitários inseguros e ultracompetitivos, que acabam reconvertendo as relações humanas em relações meramente comerciais.
No capitalismo ultraliberal projetado pelas forças reacionárias, a busca pela rentabilidade do capital, sem uma oposição organizada a qual realmente temer, está resultando em um enorme enriquecimento empresarial, sobretudo de alguns poucos multimilionários. Enquanto ocorre a rápida acumulação de riquezas através de uma desapropriação impiedosa, boa parte da população – certamente desorientada e politicamente desarmada – age irascível ou assiste atemorizada à espetacularização que supõe essa estranha e perturbadora sensação de presenciar a degradação de suas próprias vidas pelas forças esmagadoras do mercado em seu caminho.
Uma vez dinamitados os esteios políticos e institucionais sobre os quais seus direitos eram exercidos, sem outra riqueza além de suas mãos, a população se vê empurrada à força ao abismo da insegurança produzida pelo ‘salve-se quem puder’ social, o hiperindividualismo e a concorrência total ditada pelo mercado.
Não causa estranhamento que, diante de um sistema que obriga a consumir para sobreviver e, além disso, martela continuamente o falso mantra de que o sucesso depende de si mesmo e de seus méritos, a criminalidade e as máfias acabem sendo uma das poucas formas acessíveis de sobreviver que habilitam a esperança de almejar um futuro com acesso a esse consumo libertador.
Há pouco a perder. Na falta de futuros desejáveis em ambientes sociais conflituosos e degradados, com uma perspectiva institucional que favorece a desigualdade econômica e a expulsão para as margens sociais, a inserção no mundo do crime é a fuga natural e desesperada para a qual muitos se veem empurrados.
Por outro lado, em outros ambientes onde ainda existe certo amparo das instituições, mas o Estado de bem-estar esmorece, a falta de futuro e a pauperização das condições de vida sob sistemas democráticos acarreta a conformação de espaços férteis para a frustração e o ódio que, sem dificuldade excessiva, facilitam a desconfiança em relação ao governo e, por consequência, à própria democracia.
Também não é por acaso que o aumento do custo de vida e a degradação dos ambientes comunitários e de trabalho, somados à pressão acrescida em produzir sine die para conseguir mais dinheiro e continuar consumindo, acabem facilitando a porosidade das ideias ultradireitistas que agitam o medo.
Além disso, o apontamento de certos coletivos - LGBT, feministas, migrantes, forças de esquerda etc.- por parte das forças direitistas como causa da atual situação de crise corresponde à estratégia habitual de criar um inimigo interno que favoreça a segregação em chave identitária e o reforço antagônico da ameaça do outro frente a um nós nacional, núcleo do populismo reacionário e base sobre a qual se assenta o seu discurso. E se tem algo que a extrema-direita sabe é explorar o medo eleitoralmente.
Como se viu, as consequências da constante ampliação das dinâmicas mercantis na busca pela rentabilidade, somada à progressiva degradação institucional e dos serviços básicos, geram uma enorme desigualdade que cresce a cada ano, resultando em uma crescente tensão geopolítica e em um clima de insegurança geral que injeta desconfiança e que fratura as comunidades. Paradoxalmente, é esta mesma crise do capitalismo que parece fornecer as melhores ferramentas aos precursores ultradireitistas do livre mercado para alcançarem os seus mais altos níveis de poder.
Se tomarmos o exemplo não só das crises econômicas e de criminalidade que assolam a América Latina, mas também o aumento do custo de vida e a ascensão das máfias na Europa e as politicamente desestabilizadoras crises migratórias dos últimos anos, vemos como a direita ultraliberal se posicionou como a única solução capaz de reestabelecer a ordem e a paz social.
Isso se faz sob a promessa de desbancar aquelas políticas sociais que consideram inúteis, a privatização do público e a eliminação dos subsídios a grandes camadas da população que consideram um gasto desmedido e um desperdício. Como vem sendo habitual, essas promessas vêm acompanhadas da necessidade de impor políticas de mão dura através do reforço das forças de segurança do Estado, a ampliação de prisões e, inclusive, a liberação da posse de armas.
Consequentemente, o investimento público em matéria social diminui, enquanto o investimento em Defesa – armamento e segurança – cresce exponencialmente nos últimos anos, movimentando mundialmente milhares de milhões de euros por ano, favorecido pelo aumento da insegurança, os diferentes conflitos bélicos e as crises geopolíticas existentes.
Desse modo, os governos investem uma porcentagem maior do PIB mundial no reforço da segurança e isto está acarretando um aumento dos rendimentos e a valorização das ações das empresas de armamento e de seus muitos investidores privados. O rearmamento mundial é uma realidade muito presente. Nada é suficiente para que o lucro nunca pare de fluir para cima. Custe o que custar.
O capitalismo gera alguns problemas sobre os quais mercantiliza a sua solução: diante das ameaças à estabilidade que o mercado necessita para funcionar, recorre tanto a facilitar maiores espaços de rentabilidade quanto à militarização e as políticas de mão dura para, em primeiro lugar, proteger os interesses empresariais e, em segundo, justificar suas ações e violações dos direitos humanos para a população.
Segurança versus liberdade e democracia. Esta é disjuntiva que enfrentamos e através da qual a extrema-direita tem tudo para ganhar. É por isso que boa parte do mundo empresarial, com todo o seu poder cultural, político e midiático, não hesita em facilitar ou financiar diretamente a inserção das ideias promovidas pelos partidos de ultradireita no debate público, pois supõem a via mais segura para obter o poder total do Estado e seus fundos públicos, ao mesmo tempo em que se desfazem de qualquer oposição a seus interesses.
Em um mundo sem política social, sem instituições fortes e sem democracia, estamos à mercê do mercado, do dinheiro e da liberdade que se possa adquirir através do consumo. Nesta atmosfera constante e irrespirável, movem-se as massas de trabalhadores precários e empobrecidos do mundo sobre as quais toda a esperança se desvanece e as distopias começam a ser assimiladas como cotidianas.
Existem milhares de pessoas em todo o mundo sem acesso a serviços básicos, sem poder fazer três refeições por dia, sem água potável e sem assistência médica. O mundo é um espaço inóspito para boa parte de seus habitantes – incluindo todos os seus seres vivos – e a ameaça climática só está piorando sua situação e perspectivas de futuro.
As catástrofes meteorológicas virulentas – e menos espaçadas no tempo – estão provocando uma insegurança alimentar e habitacional que está levando a uma tensão social e geopolítica maior nas regiões afetadas. Se as recentes crises de refugiados na Europa, após a Guerra na Síria e na Ucrânia, e as crises migratórias da América Central representaram um desafio sociopolítico para os Estados Unidos e a Europa, que deram asas à ultradireita, o que nos espera em um futuro climático que, segundo os modelos científicos, apontam para uma agudização de suas consequências, com milhões de deslocados climáticos e novas crises econômicas?
No entanto, diante desta perspectiva, muitos políticos do arco socialista e ambiental parecem continuar confiando inertes no ditado de que quanto pior, melhor: de alguma forma, a evidência do desastre e dos fatos demonstrará à população toda a verdade contida em suas propostas políticas. A realidade, ao contrário, pode ser muito diferente e descubramos que quanto pior, pior. A política é uma forma de manipulação da percepção e dos imaginários sociais na qual intervêm imbricadas hegemonias culturais, mas também emoções identitárias.
Em um mundo onde a cultura tem sido profundamente mercantilizada e os impactos da informação através das redes sociais vêm determinados por algoritmos com interesses e coordenadas ideológicas bem delimitadas, é possível que a batalha ocorra em cenários políticos viciados, onde são empregados os termos da ultradireita e as emoções limítrofes tendem a favorecer suas proclamações reacionárias. A frustração e a negação do futuro têm sua resposta sociopolítica e, talvez, o discurso da ultradireita já tenha penetrado no mais profundo da política mundial, construindo uma hegemonia de difícil contraposição.
Embora alguns se agarrem a seus pilares fracos, como quem se agarra a uma tábua, após um naufrágio, determinadas políticas intermediárias que Joe Biden ou os poucos líderes progressistas que permanecem de pé podem muito bem representar não deixam de ser um falso muro de contenção que busca abrandar – às vezes, com uma simples, mas rimbombante retórica – as ferozes dinâmicas do mercado. É por isso que Trump voltará a ser presidente e as forças de ultradireita, com suas políticas autoritárias, perseguem com os dentes afiados os governos das maiores economias do mundo.
As lógicas de mercado, aquelas que necessitam do crescimento econômico sustentado e que se nutrem da obtenção de rendas, há décadas arrebentam com tudo, dos direitos trabalhistas e humanos mais básicos a qualquer ambiente ecológico que seja apto a gerar lucros. A democracia começa a ser concebida como algo secundário frente à imposição de certa política de mão dura e reforço da identidade nacional.
Caso se persista sem a aplicação de políticas de lógica igualitária radical e um planeamento econômico que gere bem-estar e justiça social, dentro dos limites físicos da terra, e que consigam, assim, reverter o cenário que favorece a ultradireita e as suas fórmulas antidemocráticas, não parece haver muitas dúvidas de que os problemas atuais vão se acentuar e, então, o rolo do método Bukele e das políticas ultraliberais acabará esmagando todos nós. Se tudo seguir assim, podemos ter certeza de que o futuro continuará trazendo muitos êxitos para a ultradireita.
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O ‘método Bukele’ e o futuro da ultradireita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU