16 Janeiro 2024
"A Igreja deve rejeitar qualquer colateralismo e compromisso, mas também qualquer forma de anarquismo e zelotismo ou isolacionismo", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 14-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja, como Cristo, não deve fechar-se no oásis sacro e deve tornar-se espinho no lado da política, sem concordismos e conluios. Cerca de sessenta anos já se passaram, mas ainda tenho na minha memória visual a figura e no ouvido o francês rajado de tonalidades saxônicas daquele grande teólogo luterano nascido em Estrasburgo em 1902. Estou falando de Oscar Cullmann que estava em Roma na época, convidado como observador para o Concílio Vaticano II, quando eu era um jovem estudante de teologia na Universidade Gregoriana. Como outras figuras protestantes e ortodoxas que foram convidados na assembleia do Concílio, ele proferiu uma conferência em uma instituição católica e muitos de nós, estudantes que davam os primeiros passos naquela disciplina, fomos ouvi-lo.
CULLMANN, Oscar. Dio e Cesare, Ave (Foto: divulgação)
Naturalmente, só anos mais tarde, lendo as suas obras, é que compreenderia plenamente a originalidade do seu um pensamento que, aliás, se desenvolveu numa longa carreira acadêmica de Estrasburgo a Basileia, da Sorbonne à École Pratique des Hautes Études de Paris. Uma carreira acompanhada por uma vasta bibliografia distribuída ao longo de uma existência que atravessará todo o século XX (morreria, de fato, em Chamonix em 1999, à sombra do Mont Blanc). Sempre me impressionou uma das obras de Cullmann de 1946, Cristo e o Tempo (traduzida pela Mulino em 1946), cujo centro temático também estava na base aquela conferência distante.
Ao contrário do seu famoso colega, o alemão Rudolf Bultmann, que havia reduzido quase até dissolver a dimensão histórica de Cristo e dos seus fatos salvíficos, inseridos numa trama direcional que da criação conduz até os eventos do Israel bíblico, manifesta-se nas origens e nos séculos subsequentes cristãos e eleva-se até à parusia, ou seja, a "vinda" final de Cristo para selar a redenção. Estamos longe das "garras de um eterno círculo", como ensinava a concepção cíclica grega do tempo, uma visão da história que ignorava a espera, ao contrário do cristão que vive na tensão entre um “já” presente e um “não ainda” (a escatologia), um primeiro cumprimento e uma plenitude futura.
A imagem “bélica” que adotava era curiosa: numa guerra pode haver uma batalha decisiva, mas o conflito pode arrastar-se por muito tempo antes de chegar ao Dia da Vitória final. Deixando de lado a metáfora, "o evento arrebatador de Cristo" na cruz e na ressurreição encarna a batalha decisiva, mas a vitória definitiva ainda deve ser aguardada, na citada parúsia final. É nesse quadro de forte arranjo histórico tridimensional (passado-presente-futuro) que se coloca um ensaio agora reproposto, extraído da coletânea de seus Estudos de Teologia Bíblica (Ave 1969). O tema, de fato, envolve necessariamente história e a relação entre fé e política, entre Deus e César, para recorrer ao famoso ditado lapidar de Cristo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22,21, um tuite propriamente dito de apenas 54 caracteres, incluindo os espaços, no original grego do Evangelho).
Basta pensar no que foi escrito, dito, pensado, elaborado, afirmado e negado em torno desse lema, a partir daquela joia do século II que é a Carta a Diogneto sobre a relação entre cristãos e mundo (estou no mundo sem ser do mundo, mas sou a sua alma). O jesuíta Francesco Occhetta orienta o leitor no conceito cullmanniano com uma introdução preciosa, capaz de apreender a essência do ensaio sem esgotar a sua riqueza, impulsionando assim o leitor a acompanhar o texto. É construído quase como um políptico onde entram em cena Jesus e o movimento contra os romanos dos zelotes, a sua condenação à pena capital pelo Estado romano, a posição surpreendente de Paulo (e de Lucas) – de viés essencialmente positivo – em relação ao império e àquela radical negativa do Apocalipse joanino.
De fato, basta ler em paralelo o cap. 13 da Carta aos Romanos e o cap. 13 (ou outros) do Apocalipse: no primeiro caso o Estado é respeitado como instrumento de Deus, no segundo é simplesmente um ser diabólico.
Cullmann, através do exame das diversas documentações das origens cristãs, e tomando como bússola o referido ditado evangélico, delineia o desafio que a Igreja enfrenta na sucessão dos séculos e nas mudanças das coordenadas histórico-culturais. Por um lado, como Cristo, não deve alienar-se, encerrando-se na exclusividade do oásis sagrado; por outro lado, deve ser uma atriz na sociedade, tornando-se como um espinho no lado da política, sem concordismos interessados e conluios, mas também sem rejeições radicais.
Como escreve o teólogo alsaciano, no cristianismo o que domina é a expectativa da plenitude final e por isso é importante brandir a bandeira dos valores espirituais, morais e humanos; mas essa opção “não é de forma alguma no sentido de uma rejeição a priori do Estado como tal”. A Igreja deve rejeitar qualquer colateralismo e compromisso, mas também qualquer forma de anarquismo e zelotismo ou isolacionismo. A sua esperança e o seu projeto são mais elevados e, como observou o Pe. Occhetta, “é chamada a ser a voz da consciência moral que distingue o bem do mal e as escolhas humanas daquelas desumanas”.
CULLMANN, Oscar. Dio e Cesare, Ave, p. 142, 14€.
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A relação entre fé e política. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU