O restante do mundo pode não ter um voto, mas deve se preparar para um governo dos EUA que pode ser errático, imprevisível e indisciplinado, mas com ambições globais
"O desfecho das eleições presidenciais dos EUA terá repercussões no mundo todo, e, dada a importância, grande parte do restante do mundo sente como se também devesse ter um voto".
O comentário é de Leslie Vinjamuri, diretora do Programa dos EUA e das Américas no instituto inglês Chatham House, e professora de Relações Internacionais na SOAS University of London, em artigo publicado por Foreign Policy, 04-01-2024. A tradução é de Arthur Lersch Mallmann.
Os parceiros e aliados de Washington estão alarmados com a possibilidade de Donald Trump retornar à Casa Branca e estão despreparados para enfrentar a perspectiva de um mundo desvinculado do poder e liderança dos EUA. Mas se as eleições são impulsionadas principalmente por problemas internos, isso levanta a questão de se elas realmente fazem diferença para a política externa.
Alguns analistas argumentam que a escolha entre os candidatos principais de hoje é insignificante quando se trata de política externa. Afinal, segundo o argumento, o presidente americano, Joe Biden, continuou as políticas de Trump sendo duro com a China, e sua agenda protecionista foi descrita como uma versão atualizada do mundo America First [América em primeiro lugar] de Trump. De acordo com essa perspectiva, a política americana reflete um consenso bipartidário: que Washington precisa estabelecer prioridades claras que reflitam as realidades geopolíticas atuais. Há também amplo consenso sobre a necessidade de adaptar o envolvimento econômico global dos EUA para um mundo mais competitivo e acomodar aqueles americanos que foram deixados para trás. Nessas dimensões críticas da política dos EUA, segundo o argumento, Biden, Trump ou qualquer outro candidato fariam basicamente a mesma coisa.
Mas há motivos para ser cauteloso com tais afirmações. Aqueles que afirmam que as políticas de Biden em relação à China são simplesmente uma continuação das de Trump estão simplificando demais. O estilo de Trump foi e continuaria sendo bombástico, caótico e disruptivo. Biden, ao contrário, buscou uma diplomacia de alto nível cuidadosamente coreografada e sequenciada, projetada para gerenciar tensões e evitar que acidentes ou mal-entendidos levem inadvertidamente a conflitos. A estratégia de Trump para domar a influência econômica da China se concentrava quase exclusivamente em tarifas. O retorno de Trump, no entanto, poderia ver o ex-presidente e sua equipe tentando implementar um desacoplamento total das duas economias mais poderosas.
Biden busca reduzir os riscos, mas não desacoplar a economia dos EUA da China. Seu governo está fazendo isso por meio de uma estratégia que combina controles de exportação sobre tecnologias sensíveis, restrições a investimentos e também tarifas. Medidas econômicas internas projetadas para aumentar a competitividade tecnológica dos EUA, ao mesmo tempo que criam empregos, são um componente essencial dessa estratégia mais ampla. Em relação a Taiwan, também, as duas posturas divergem. Trump insinuou que não defenderia a ilha autônoma. Biden fez várias declarações que sugerem um comprometimento muito mais forte com a defesa de Taiwan.
Alguns analistas argumentam que a escolha entre os candidatos principais de hoje é insignificante quando se trata de política externa. Na foto, o então vice-presidente Joe Biden em visita às tropas militares dos EUA no Iraque. (Foto: Wikimedia Commons)
Se Trump voltasse ao cargo, as consequências para as relações entre EUA e China seriam graves. Os parceiros do Indo-Pacífico e a Europa sentiriam os efeitos e seriam forçados a fazer uma escolha desconfortável entre um Estados Unidos bombástico e disruptivo e a China.
O risco é ainda maior em um momento em que a autoridade executiva do presidente sobre questões de política externa continua a aumentar. A supervisão do Congresso diminuiu, especialmente durante períodos de governo unificado. Isso significa que o espaço para um presidente com convicções fortes alterar o curso da política externa dos EUA é considerável. Em 2018, James Goldgeier e Elizabeth N. Saunders escreveram na Foreign Affairs sobre o que chamaram de unconstrained presidency [presidência irrestrita] e citaram a capacidade de Trump de retirar os Estados Unidos de várias organizações multilaterais importantes com surpreendentemente pouco retorno do Congresso.
A história também oferece razões para cautela. A eleição presidencial de 2000 foi conturbada, mas a Suprema Corte eventualmente entregou a Casa Branca a George W. Bush em uma decisão judicial que pode ter sido uma das mais consequentes, já que moldou o futuro da política externa dos EUA. Os ataques de 11 de setembro criaram uma janela de oportunidade para o presidente dos EUA tomar decisões políticas audaciosas. A decisão de invadir o Afeganistão não foi surpreendente, mas é difícil imaginar que Al Gore também teria ido à guerra no Iraque se tivesse sido eleito.
A eleição de 2024 pode prenunciar uma encruzilhada semelhante na política externa dos EUA. A diferença mais significativa para o mundo pode ser de natureza diplomática. Biden é o presidente mais atlanticista que os Estados Unidos viram desde a Guerra Fria. Trump, por outro lado, continuamente acusou a Europa de se aproveitar da generosidade dos EUA. Para o caso de um segundo mandato, ele ameaçou encerrar abruptamente o apoio dos EUA à Ucrânia e retirar os Estados Unidos da OTAN. Mesmo que não o fizesse, a ameaça diária de uma saída dos EUA criaria um nível de instabilidade e perturbação que reduziria drasticamente os benefícios que a organização proporciona aos seus membros.
Os dois homens também diferem radicalmente no que diz respeito às mudanças climáticas e a Taiwan, onde a perspectiva de uma mudança dramática na política seria iminente. O mais preocupante é que, sob ~um segundo mandato de Trump, o compromisso dos EUA com o multilateralismo seria diretamente atacado, tanto em princípio quanto na prática.
O mais preocupante é que, sob um segundo governo Trump, o compromisso dos EUA com o multilateralismo seria diretamente atacado, tanto em princípio quanto na prática. Na foto, Trump com o então presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. (Foto: Flickr | Palácio do Planalto)
Por mais de sete décadas, os Estados Unidos forneceram a espinha dorsal de uma ordem multilateral. A ambição que sustentou essa ordem era promover mais paz, mais estabilidade e mais prosperidade. Washington acredita que as chances de sucesso são maiores se trabalhar coletivamente com parceiros do que sozinho. Imperfeito como foi a ordem multilateral apoiada pelos EUA, ela incorporou um conjunto de princípios e regras que ajudaram a proporcionar maior previsibilidade, transparência e confiança.
O mundo de hoje é assolado por problemas que não podem ser enfrentados por nenhum país individual, não importa quão poderoso. A guerra da Rússia na Ucrânia demonstrou o poder e a necessidade da unidade ocidental. As mudanças climáticas estão causando estragos em muitos estados que não são uma fonte primária de suas causas. A maioria das soluções disponíveis requer cooperação internacional.
A pandemia de Covid-19 provou que as doenças sempre serão mais globais do que as respostas projetadas para derrotá-las. O nacionalismo de vacinas pouco fez para ajudar a promover uma recuperação global. Em vez disso, alienou os estados do Sul Global e, ao fazer isso, reduziu a capacidade do Ocidente de alcançar seus objetivos geopolíticos. Os perigos da migração não gerenciada, seja na fronteira sul dos EUA ou via Mediterrâneo, ameaçam criar não apenas um problema humanitário, mas também uma crise política na Europa e nos Estados Unidos. A necessidade de um novo esforço multilateral para gerenciar esses problemas sociais e econômicos críticos é cada vez mais urgente.
Mas assim como houve um aumento na necessidade de organizações multilaterais fornecerem soluções, elas têm lutado para cumprir essa função. Consequentemente, a visão de mundo básica que sustenta essa abordagem para a política externa tem sido alvo de críticas. Em 2016, Trump deu uma voz poderosa àqueles críticos do multilateralismo, vinculando-o ao surgimento da China e aos impactos negativos resultantes da globalização sobre os americanos da classe trabalhadora, especialmente a perda de empregos na indústria manufatureira. Ele culpou a Organização Mundial do Comércio (OMC) e acordos de livre comércio como o NAFTA.
Uma vez no poder, ele agiu com base nessas críticas. Sob a liderança de Trump, a previsibilidade dos compromissos multilaterais de Washington erodiu quase da noite para o dia com a decisão de retirar os Estados Unidos do acordo climático de Paris. Continuou, com Trump ameaçando repetidamente encerrar a participação dos EUA na OMC e na Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele retirou os Estados Unidos do Conselho de Direitos Humanos da ONU; as reuniões do G7 tornaram-se um cenário de caos em vez de cooperação. E, ao longo de seu mandato, ele lançou uma série de ataques à OTAN, a pedra angular da segurança transatlântica, ameaçando uma guerra tarifária com a Europa. Sua decisão abrupta de retirar os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã injetou um novo grau de instabilidade nas relações da América com a Europa que continua até hoje.
Desde que Trump deixou o cargo em 2021, vários fatores se combinaram para acelerar, aprofundar e intensificar o ressentimento de países mais pobres em relação aos Estados Unidos. O nacionalismo das vacinas do Ocidente e sua falha em fornecer uma resposta material adequada para ajudar os países do Sul Global a lidar com os impactos da inflação e do endividamento foram exacerbados pela invasão da Ucrânia pela Rússia e as sanções que se seguiram.
Com duas grandes guerras em curso, na Ucrânia e no Oriente Médio, a demanda por liderança dos EUA e soluções multilaterais é grande. O Sul Global, em particular, está sofrendo. Hoje, as restrições políticas internas significam que bens públicos globais são mais difíceis de fornecer e o acesso ao mercado está cada vez mais restrito. Alívio da dívida e assistência financeira estão em falta, especialmente onde são mais necessários: para ajudar os países em desenvolvimento a se adaptarem às mudanças climáticas.
A demanda por liderança dos EUA é acompanhada apenas pelo crescente apelo à hipocrisia dos EUA. Muitas pessoas no mundo em desenvolvimento criticam Washington por advogar um conjunto de normas internacionais às quais ele próprio não aderiu, como o respeito à soberania do estado e a proteção de civis.
Críticos acusam Washington de promover essas normas seletiva e desigualmente. A última guerra entre Israel e o Hamas intensificou esse sentimento. O forte apoio dos EUA a Israel, com pouca evidência de restrição, e o crescente número de mortos palestinos exacerbaram o sentimento antiamericano e alimentaram ainda mais acusações de hipocrisia. Para muitas pessoas no Sul Global, isso serve como um poderoso lembrete de que a política dos EUA é tendenciosa. Primeiro, os afegãos e agora os palestinos foram abandonados pelos Estados Unidos, enquanto a Ucrânia ainda recebe considerável apoio.
Mas os Estados Unidos também têm sido criticados pelo que muitas pessoas percebem como seu papel desproporcional nas principais instituições internacionais e, especialmente, sua incapacidade de resolver o problema de padrões desiguais para membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU. A influência desproporcional que os Estados Unidos exercem no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, devido em parte à distribuição agora distorcida dos direitos de voto, aumentou ainda mais a acusação de hipocrisia.
À medida que a eleição de 2024 se aproxima, muitas pessoas temem que o poder dos EUA não tenha durabilidade e que Washington possa dar passos irreversíveis em direção ao isolacionismo se Trump retornar.
O declínio do multilateralismo está longe de ser inevitável, mesmo que poucos eleitores americanos vão às urnas em 2024 com a política externa, muito menos o multilateralismo, em mente.
Os principais candidatos a serem os próximos presidentes dos EUA apresentam uma escolha entre duas visões radicalmente diferentes para a ordem mundial futura. Uma, defendida por Biden, coloca parceiros e parcerias no centro da estratégia dos EUA. Busca reformar o quadro multilateral quando possível e contorná-lo quando necessário, mas fazê-lo em parceria com outros.
A segunda, defendida por Trump, vê a ordem existente como antitética aos interesses dos EUA. Em vez de tentar reformar o quadro existente de instituições multilaterais ou construir estruturas institucionais menores, mais ágeis e flexíveis, ela abraça políticas transacionais e um sistema de conosco ou contra nós que busca perturbar a ordem internacional. Sua desconfiança do multilateralismo é tão ideológica quanto empírica.
(Curiosamente, a candidata republicana que está se destacando como a concorrente mais séria de Trump, Nikki Haley, oferece uma agenda internacionalista contrastante que poderia ver o uso ousado do poder dos EUA de maneiras que até mesmo Biden relutou em seguir.)
Essas duas visões de mundo não são meramente construções teóricas. Seus efeitos práticos foram visíveis ao longo da atual presidência e da anterior. Em seu primeiro ano de mandato, Biden agiu rapidamente para restaurar a participação dos EUA na OMS, nos Acordos de Paris e no Conselho de Direitos Humanos. Ele também buscou tranquilizar os parceiros da OTAN dos EUA sobre o compromisso contínuo dos EUA com a aliança.
Há uma questão em que pode não parecer haver uma diferença significativa na política externa entre Trump e Biden. À medida que os trabalhadores americanos sofreram os efeitos da globalização descontrolada e seus impactos na manufatura, e à medida que a desigualdade de renda continuou a crescer, o protecionismo tem se sobressaído sobre o comércio, que já foi o coração pulsante do internacionalismo dos EUA.
Ainda assim, é uma coisa pausar o progresso e outra completamente abandonar a aspiração. Se Trump retornar à Casa Branca, a perspectiva de os Estados Unidos desistirem totalmente da OMC se tornaria real. E a virada para o protecionismo daria um novo passo se ele seguir adiante com sua intenção declarada de adotar uma tarifa de 10 por cento sobre todos os bens importados.
De fato, o retorno de Trump à Casa Branca seria o golpe de misericórdia para o compromisso dos EUA com o multilateralismo. Enquanto Biden buscou avançar os interesses dos EUA por meio de parcerias, Trump, por instinto, rejeita e se empenharia em sabotar o multilateralismo. Um segundo mandato de Trump significaria que o compromisso oficial dos EUA em lidar com o problema mais existencial de longo prazo de nosso tempo — as mudanças climáticas — provavelmente entraria em colapso da noite para o dia. Da mesma forma, a diplomacia cuidadosa buscada pelo governo Biden em sua política em relação à China seria substituída por um unilateralismo explosivo.
Trump provavelmente abandonaria a agenda da segurança transatlântica e buscaria mais uma vez tornar a Alemanha um Estado pária e o presidente russo Vladimir Putin (na imagem) um amigo. (Foto: Divulgação | Kremlin )
De todas as regiões do mundo, a Europa foi a que mais se beneficiou dos mais de sete décadas de investimento dos EUA em uma ordem internacional que abraça o multilateralismo. Um segundo mandato de Trump poderia mudar isso muito rapidamente. A invasão em larga escala da Rússia à Ucrânia resultou em um aumento da unidade transatlântica e confirmou o compromisso dos EUA com a OTAN e com a segurança transatlântica. Trump provavelmente abandonaria ambos e buscaria mais uma vez tornar a Alemanha uma pária e o presidente russo Vladimir Putin um amigo. Uma retirada dos EUA da Europa poderia resultar em uma rápida reversão da sorte da Ucrânia, deixando a Europa vulnerável e com a tarefa difícil de ajudar a defender e depois reconstruir a Ucrânia.
Não todos os países do mundo estão cautelosos em relação a um segundo mandato de Trump. Aqueles ressentidos com a influência dos EUA e com a ordem multilateral liderada pelo Ocidente podem apreciar a fragmentação dessa ordem em dois blocos — um para o Ocidente e outro para o restante. A China está no topo dessa lista, mas a Rússia não está muito atrás.
Outros podem valorizar um escopo mais amplo para maior autonomia em um mundo livre das vicissitudes do poder dos EUA ou da pressão para tomar partido. A Índia estabeleceu seu próprio papel de liderança e usou sua presidência do G-20 para avançar seu poder no cenário internacional. Continua a pressionar por uma expansão da membresia permanente do Conselho de Segurança. Mas Nova Déli também continua a participar de reuniões do grupo BRICS e da Organização de Cooperação de Shanghai, se apenas para garantir que tenha um papel em conter a ambição dessas plataformas multilaterais que dão à China uma posição na formação da ordem internacional.
Os esforços dos EUA para conter a influência da China no Sul Global ainda estão em estágios iniciais. Em junho de 2021, o G-7 se reuniu em Cornwall, Inglaterra. O anúncio de um compromisso coletivo com a iniciativa Build Back Better World (posteriormente relançada como Parceria para Infraestrutura e Investimento Global) demonstrou que Biden buscava unir as principais economias ocidentais para apoiar uma alternativa de desenvolvimento baseada em valores. Esse esforço tem demorado a avançar, mas poderia estagnar em caso de uma transição disruptiva na Casa Branca.
O desfecho das eleições presidenciais dos EUA terá repercussões em todo o mundo, e, dada a importância, grande parte do restante do mundo sente como se também devesse ter um voto. Na ausência de uma cédula, a alternativa não é ficar de braços cruzados e assistir.
Agora é o momento de pensar estrategicamente, mas também taticamente, sobre como aproveitar o poder dos EUA. A Europa deve pensar em como pode ser uma parceira essencial para os Estados Unidos e não se concentrar exclusivamente na equação reversa. Além da Ucrânia, os países do G-7 devem agir rapidamente para concretizar suas ambições no Sul Global. Advertir líderes africanos, asiáticos e sul-americanos por seus registros deficientes em direitos humanos ou por corrupção persistente tem pouca ressonância na ausência de uma democracia sólida em casa e de um compromisso robusto em fornecer apoio material para amenizar os impactos do aumento da dívida, desastres relacionados ao clima, uma lacuna de infraestrutura de US$ 40 trilhões e escassez de alimentos. Acima de tudo, a Europa não deve permitir que se torne irrelevante na guerra entre Israel e o Hamas, mas deve trabalhar para fornecer ajuda humanitária e facilitar progressos em direção a uma solução política realista e sustentável.
O restante do mundo pode não ter um voto, mas deve se preparar para um governo dos EUA que pode ser errático, imprevisível e indisciplinado, mas com ambições globais.