Ruralistas pretendem derrubar vetos de Lula para promover, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a maior alteração legislativa dos direitos indígenas desde a Constituição de 1988; movimentos indígenas consideram levar o caso ao STF.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 07-12-2023.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, disse à InfoAmazonia que a decisão da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) de derrubar os vetos de Lula (PT) na lei do Marco Temporal, a 14.701/2023, “vai na contramão dos acordos e tratados internacionais de proteção do meio ambiente e de redução dos impactos da emergência climática”. Os pontos derrubados pelo presidente devem ser votados em sessão conjunta do Congresso Nacional.
A entrevista da ministra à reportagem ocorreu antes dela embarcar para a Conferência das Partes (COP28) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), em Dubai, onde tem buscado a inclusão dos povos indígenas nos acordos para financiamentos climáticos.
Encontro de povos indígenas para marcha na COP28. Ministra Sonia Guajajara e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, participaram do evento (Foto: Estevam Rafael/Audiovisual/PR)
Nas contas de Guajajara, a derrubada dos vetos é dada como certa, mas ela afirma que vai trabalhar até o último momento para manter os pontos barrados por Lula, inclusive com a possibilidade de proposição de um novo projeto de lei “que concilie os interesses envolvidos nos conflitos indígenas”, segundo afirmou, “sobretudo no processo indenizatório [dos ocupantes de boa-fé em terras demarcadas], que traga segurança jurídica aos envolvidos, mas sem abdicar dos direitos constitucionais indígenas”, explicou sem dar detalhes sobre quais interesses poderiam ser conciliados ou como essa nova lei seria construída com a bancada ruralista.
Após a sessão conjunta do Congresso para apreciar os vetos, o presidente Lula terá 48 horas para promulgar a lei, seja com a derrubada total ou parcial dos vetos. Se a bancada ruralista não atingir os votos mínimos para garantir maioria absoluta, segue valendo o texto com os artigos vetados.
Durante evento de diálogo com a sociedade civil na COP28, Lula encorajou a ministra a persistir nas negociações com o Congresso, mas reconheceu as dificuldades em reverter a pauta. “Querer que uma raposa tome conta do nosso galinheiro é acreditar demais”, disse o presidente fazendo referência à composição do Congresso.
A votação dos vetos da lei tem sido adiada desde o início de novembro por falta de consenso entre os líderes, fato considerado por Sonia como uma “sinalização importante para permitir essa reabertura do diálogo com o Congresso”.
Ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante participação em evento de diálogo com a sociedade civil em Dubai, na COP28 (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
“A Soninha vai ter que colocar mais pena nesse cocar e ir mais para dentro do Congresso Nacional para convencer os caras a não derrubarem os vetos da lei do Marco Temporal”, afirmou Lula.
Chamada de Lei do Genocídio pelos movimentos indígenas, a proposta defendida pelos ruralistas pretende de uma só vez promover a maior alteração legislativa dos direitos indígenas desde a Constituição de 1988, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O projeto defendido pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que tem maioria absoluta no Congresso, autoriza o uso de sementes transgênicas e a criação de gado em terras indígenas, e altera uma série de dispositivos que garantem a autonomia dos territórios, como a permissão de contato forçado com povos isolados e a construção de obras de infraestrutura sem consulta indígena, como hidrelétricas e rodovias.
No dia 20 de outubro deste ano, Lula vetou 23 dos 33 artigos da lei, incluindo o que tentava novamente criar a lei do Marco Temporal e todos os demais artigos considerados inconstitucionais pelo MPI. (Veja aqui o texto da lei com os vetos do Lula e aqui como foi aprovada no Senado).
Lula manteve apenas os parágrafos que abordam a transparência no processo demarcatório, e o que permitia o cultivo de transgênicos em terras indígenas. Também foram vetados trechos da lei que permitiriam questionamentos ao processo de demarcação a qualquer momento, a indenização pela “terra nua” a posseiros e a autorização para empreendimentos sem consulta prévia às comunidades indígenas. O Artigo 28, que permitiria contato com indígenas isolados, mesmo que controlado, foi vetado integralmente devido ao risco e inconstitucionalidade.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) aponta que, com a possível derrubada dos vetos do presidente pelo Congresso, as florestas nos territórios ficarão ainda mais vulneráveis, o que pode influenciar negativamente nas taxas de desmatamento no futuro e comprometer acordos para as metas climáticas.
“Nós vemos com preocupação o Congresso derrubar os vetos do presidente, porque nós entendemos que, de fato, esses vetos representam o compromisso do governo federal com o direito dos povos indígenas”, disse o MPI em resposta à reportagem.
Na COP28, Sonia Guajajara disse que os povos indígenas precisam de mais participação nas negociações. “A pauta indígena é civilizatória, é humanitária, por isso o mundo precisa entender a participação dos povos indígenas para conter as mudanças climáticas. Os líderes internacionais precisam entender o quanto os territórios indígenas são importantes nesse processo”, disse a ministra, que também criticou a composição do Congresso: “a maioria está totalmente contra os nossos direitos e com votos para aprovar o que quiserem”.
Antes de ir para o aval de Lula, a lei foi aprovada pelo Senado apenas uma semana após o julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF). A maioria dos ministros do Judiciário considerou inconstitucional o argumento de que só podem ser consideradas terras indígenas as áreas ocupadas até a data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Sessão do STF sobre a tese do Marco Temporal (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)
No Congresso, para derrubar os vetos do presidente, são necessários 257 votos na Câmara e 41 no Senado. Com a garantia de ter maioria dos deputados e senadores para atingir esses números, a Frente Agropecuária promete atropelar a posição do presidente e promulgar a lei com seu texto integral.
Acontecendo isso, abre-se a possibilidade da lei ser questionada no STF, a exemplo do que já ocorreu com a tese do Marco Temporal. Na semana passada, Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que a organização já trabalha com essa possibilidade.
E mesmo com a judicialização, segundo afirmou Tuxá à InfoAmazonia, ainda não é possível calcular os impactos que uma promulgação da lei forçada por decisão do Congresso pode causar de imediato nos territórios. “As consequências disso vão ser irreversíveis”, disse.
Diversos pontos que atualmente são considerados ilegais, como a introdução de sementes transgênicas e a criação de gado por terceiros, podem se tornar práticas legais.