29 Novembro 2023
Governo, sua base e grandes empresas digladiam-se por renúncia fiscal secundária – enquanto estão bloqueados os recursos para financiar o resgate do país. Outras Palavras volta a examinar sistema de impostos e sua transformação necessária.
A reportagem é de Antonio Martins, jornalista e editor de Outras Palavras, publicada por Outras Palavras, 27-11-2023.
O texto a seguir é um relato do debate Radiografia de um Sistema Tributário Bizarro, com Clair Hickmann e Marcelo Lettieri.
Demais diálogos da série:
Como o Brasil apequena-se, quando foge de enfrentar seus enormes problemas. Uma nova rusga entre governo e Congresso começou na última quinta-feira (23/4), quando Lula, aconselhado pelo ministro Fernando Haddad, vetou lei que prorrogava a desoneração de imposto sobre a folha de pagamentos dos 17 setores econômicos que mais empregam no país. O tema é controverso mesmo entre os ministros do Executivo. Haddad pretende arrecadar R$ 9,4 bilhões a mais por ano, em seu esforço para alcançar o “déficit zero”.
Em princípio, a desoneração é um privilégio. Mas parte dos setores atingidos pelo veto (da construção civil, comércio varejista e transporte urbano a telemarketing e Tecnologia da Informação) alegam que, em ambiente de quase-estagnação econômica, ela é indispensável para evitar a desnacionalização dos serviços ou a substituição dos trabalhadores por inteligência artificial. A derrubada do veto é vista como provável, assim como um novo desgaste do governo no Congresso – onde os o interesse do grande poder econômico é bem representado e voraz…
Num país tão desigual e regredido, até quando será possível tratar com remendos a necessidade premente de financiar a reconstrução nacional?
Ao debaterem a Reforma Tributária em 14/11, dois grandes estudiosos da estrutura de impostos do Brasil partiram de uma perspectiva distinta. Clair Hickmann e Marcelo Lettieri, ambos auditores da Receita Federal (Clair está aposentada) e integrantes do Instituto Justiça Fiscal, dedicaram-se a um exercício quase ausente do debate nacional e das páginas da mídia. Eles fizeram uma radiografia da estrutura tributária brasileira, com vistas a transformá-la – e não meramente “simplificá-la”, como quer a proposta que tramita no Congresso. Seus objetivos centrais: a) Identificar os mecanismos concretos que produzem, no país, um dos [sistemas tributários] mais injustos do mundo; b) Apontar rumos para uma mudança real. As sessões são parte de um seminário sobre o tema, promovido por Outras Palavras em parceria com a Fundação Friedrich Ebert e o próprio IJF.
A íntegra do diálogo está no vídeo acima. Os pontos essenciais suscitados por Clair e Marcelo são os seguintes:
A injustiça fiscal brasileira expressa as desigualdades econômicas e políticas do país, e ecoam sua formação colonial, ressaltram Clair Hickmann e Marcelo Lettieri. Ao contrário das nações que construíram em Estado de bem-estar social avançado, e uma infra-estrutura moderna, o Brasil convive com mecanismos que eternizam a desigualdade e o atraso. Do ponto de vista fiscal, isso é feito de duas maneiras: redução das despesas públicas e transferência, às maiorias empobrecidas, da responsabilidade por sustentá-lo.
“A narrativa política da elite sustenta que ‘o Estado é grande demais’” – lembrou Clair. E completou: “Isso significa que devemos nos conformar com a existência, num país rico, de milhares de pessoas usando as calçadas como cama e as marquises como teto?” Para jogar o peso da tributação sobre o dorso dos mais pobres, há um conjunto de mecanismos. O primeiro é usar os impostos indiretos como pilar principal da arrecadação.
Um dos segredos do sistema tributário brasileiro é sua dependência dos impostos indiretos – aqueles que são por natureza desiguais, porque incidem com as mesmas alíquotas sobre qualquer pessoa, independentemente de sua capacidade contributiva. No Brasil, respondem por algo entre 50% e 60% da carga tributária – contra 30%, em média, na maior parte dos países. Oneram principalmente o consumo de bens e serviços. Hoje, são cinco; a ser “simplificados”, no pós-”reforma”, em dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, federal) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, estadual e municipal).
Estes impostos são chamados de “invisíveis”, lembra Marcelo Lettieri, porque sua cobrança não é explícita – mas embutida no preço das mercadorias. Cerca de 70% das pessoas ouvidas numa sondagem recente creem que não contribuem com o Fisco – por serem isentas do Imposto de Renda…
Mas desigualdade essencial dos impostos indiretos é agravada pelo uso diferente que as as classes sociais dão a sua renda. Os mais pobres, os assalariados e a maior parte da classe média quase não conseguem poupar. Consomem, a cada mês, praticamente tudo o que ganham. Ou seja: quase rendimento é quase integralmente tributado no consumo. Já os muito ricos entesouram, em aplicações financeiras, a maior parte de seus vencimentos. E sobre esta parcela entesourada, ou não há tributos, ou são muito mais suaves.
Clair e Lettieri destacaram dois dos problemas mais graves da “Reforma” em curso no Congresso. Ela manterá inalterado o peso dos impostos indiretos; e estabelecerá uma alíquota próxima de 30%, possivelmente a mais alta do mundo.
Em tese, a distorção implícita nos impostos indiretos não deveria se repetir nos tributos diretos – aqueles que cada pessoa ou empresa paga ao Fisco segundo sua renda, seus lucros, seu patrimônio, suas aplicações financeiras, sua fortuna ou suas heranças. Aí, seria possível estabelecer justiça fiscal.
Ocorre que, no Brasil, o poder econômico usou sua influência política para blindar-se deste efeito redistributivo. Há um cipoal de distorções. Marcelo Lettieri usa como exemplo o Imposto de Renda (IR), tributo mais conhecido. No passado, as alíquotas mais altas chegaram a onerar 50% das rendas. A partir dos anos 1980, elas foram achatadas, no rastro da mentalidade anti-tributos do neoliberalismo. Lula iniciou uma correção tímida, ao isentar do IR as rendas até dois salários mínimos. Mas a desigualdade continua a gritar. Hoje, qualquer pessoa com renda acima de R$ 4.664 para alíquota de 27,5%. Não importa se é um professor de escola pública, com salário de R$ 5 mil, ou um diretor de banco, com vencimentos de R$ 1 milhão mensais…
Ressalva? há, sim, distinção. Embora as alíquotas sejam muito planas, as normas asseguram, aos mais ricos, benefícios a que a maioria não tem acesso. Clair aponta um exemplo. Boa parte dos rendimentos do andar de cima é auferida na forma de lucros e dividendos – os rendimentos de uma empresas, ou a valorização da ações na bolsa, por exemplo. Estas rendas (ou rentas financeiras, para usar um termo proposto pelo economista Ladislau Dowbor) foram isentadas de imposto em 1995, por Fernando Henrique Cardoso – e assim permanecem, desde então. Sozinhas, gerariam, sob tributação adequada, R$ 100 bi ao ano, ou onze vezes o que o ministro Haddad quer arrecadar com o fim da desoneração da folha dos 17 setores que mais empregam.
Durante o diálogo, Marcelo Lettieri recorreu a dados da própria Receita Federal para apontar como, no caso particular do Brasil, o próprio caráter dos impostos diretos é deformado. A tributação do IR segue uma hierarquia em três degraus:
a) Os rendimentos tibutáveis, que compõem, cumulativamente, um valor, sobre o qual incide a alíquota. É o caso, por exemplo, de um assalariado descontado em 27,5% e que recebe, também, um aluguel. Sobre este, incidirá idêntico desconto;
b) Os rendimentos tributáveis exclusivamente na fonte: é o caso dos ganhos auferidos na valorização de ações ou dos capitais investidos em renda fixo (títulos públicos comprados por meio do Tesouro Direto, por exemplo). Sobre estes recai tributação não cumulativa entre 15% e 20%
c) Os rendimentos isentos, como os recebidos por meio de lucros e dividendos. Como diz o nome, sobre este a tributação é zero.
Os dados da Receita, que se tornaram públicos após ampla pressão social, revelam o seguinte quatro:
1) Para as pessoas com rendimentos entre 3 e 5 salários mínimos, 70% da renda é tributável; 20% são tributáveis exclusivamente na fonte; e apenas 10% são isentos;
2) Porém quando a renda sobre para 240 salários mínimos (a partir de R$ 316 mil mensais), a proporção se inverte. 70% dos rendimentos são isentos; 23% são tributáveis apenas na fonte; e apenas 7% são integralmente tributáveis…
Clair Hickmann, que atuou vários anos na fiscalização dos grandes contribuintes e dos contribuintes financeiros da Receita Federal, expôs a que ponto chegam os privilégios quando se trata de pessoas jurídicas – em especial, das grandes corporações com força financeira para operar a partir dos chamados “centros off-shore”, ou “paraísos fiscais”.
Os benefícios começam nas transações comerciais, as mais simples. Para evitar impostos, empresas que exportam commodities agrícolas ou minerais, por exemplo, simulam exportações fictícias. O destino de um navio abarrotado de minério de ferro pode ser a China. Mas a Vale venderá, no papel, não para os chineses — e sim para uma subsidiária em país de impostos reduzidos – a Suíça, por exemplo. A operação será subfaturada, de forma que o minério “chegue” à Suíça por preço reduzido, o que achatará o lucro auferido e o imposto a pagar no Brasil. Já a subsidiária instalada no país europeu que supostamente “importou” o ferro lucrará muito, mas não pagará quase nada, pois se beneficiará de isenção fiscal. Resultado final: a Vale notificará ao Fisco brasileiro um lucro contábil muito abaixo do real, para evitar tributação; sua subsidiária na Suíça também não pagará impostos, pela condição do país; e o grosso do lucro obtido com a exploração do subsolo brasileiro será embolsado pelos acionistas da corporação, na forma de dividendos também livroes de tributos…
Os mesmos privilégios repetem-se nas operações financeiras – em especial, as que vieram à tona recentemente, com os projetos de lei (em tramitação no Congresso) que estabelecem a taxação dos lucros obtidos no exterior ou em “fundos exclusivos” (aqueles cujos participantes aplicam ao menos R$ 10 milhões).
Nesses casos, especuladores brasileiros podem criar uma empresa de fachada no exterior; transferir parte de seu dinheiro para lá; e aplicá-lo no Brasil (onde se pagam os juros mais altos do mundo), já na condição de “estrangeiros”. Por meio deste artifício, serão favorecidos por alíquota zero de impostos. E mesmo após o “esforço arrecadatório” promovido pelo ministro Fernando Haddad, pagarão apenas 8% de imposto sobre a renda. A alíquota é tão baixa que, se fosse aplicada pela legislação brasileira sobre o próprio país, classificaria o Brasil como um “paraíso fiscal”…
O debate iniciado por Clair e Lettieri será ampliado no próximo dia 28/11, com o debate sobre as alternativas. A partir da radiografia traçada na sessão anterior, que novo sistema de tributos poderia estabelecer justiça fiscal no Brasil? De que forma ele poderá contibuir para igualdade e, além disso, proteger os trabalhadores e o meio ambiente? Por meio de que instrumentos fiscais?
O tema será debatido por Dari Krein, estudioso das relações laborais do Cesit-Unicamp; Kamila Vieira de Mendonça, que estuda há anos um sistema de tributos capaz de contribuir com a proteção da natureza; e Paulo Gil Introini, um dos principais pensadores do Instituto de Justiça Fiscal. Vale pena não perder.
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A Reforma Tributária real e as picuinhas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU